sexta-feira, 20 de março de 2020

Um certo bom senso



Dois textos de JMT que a maioria achará levianos, por uma dureza inaceitável, mas que são ditados por uma preocupação justa, por um país em vias de uma vez mais ter de vir a perder os trilhos de uma evolução indispensável, para quem o ama. Mas contra um fenómeno de oculta e traiçoeira virulência, quem se atreve a condenar as medidas governamentais de emergência? Os outros países erguer-se-ão depressa, afinal, desde sempre mais ordeiros e orientados culturalmente. Nós, os cada vez mais na cauda, os obstáculos à recuperação serão grandes, JMT não deixa de ter razão na sua aflição real de homem honrado e amante do seu país.
I - OPINIÃO CORONAVÍRUS: Apagar eventos para não apagar vidas
Não se mobiliza um país inteiro sem uma liderança forte. Precisamos de apagar eventos para não apagar vidas, mas precisamos também de apagar hesitações e circunlóquios.
  PÚBLICO, 14 de Março de 2020, 6:20
Parte do meu dia de ontem foi passada a apagar eventos no telemóvel. Compromissos que tinha e deixei de ter, lugares onde precisava de levar os meus filhos e já não preciso. Cada confirmação de “apagar evento” infecta a economia da mesma forma que o coronavírus  infecta o nosso corpo – é menos uma refeição, menos uma viagem, menos uma conferência, menos uma compra, menos um negócio, multiplicado por milhões e milhões de pessoas. A covid-19 está a destruir os nossos sistemas de saúde; o combate à covid-19 irá destruir a nossa economia.
O impacto em áreas como a aviação será catastrófico e o desaparecimento de milhões de consumidores irá empurrar empresas para a falência e fazer disparar o desemprego. Por muito que os governos queiram ajudar, nunca haverá liquidez suficiente para acorrer a todas as situações. No meio destas péssimas notícias, há, contudo, uma boa: na quinta-feira à noite, o governo não enfiou a cabeça na areia e fez o que tinha a fazer. António Costa incumpriu – felizmente – a sua promessa de aceitar as sugestões que lhe fossem apresentadas pelo Conselho Nacional de Saúde Pública, borrifou-se para as conclusões daquele ilustre conjunto de especialistas, e assumiu a sua responsabilidade política, em vez de se escudar atrás de uma qualquer “decisão técnica”.
Fez muitíssimo bem. A resposta a uma pandemia desta gravidade não pode consistir apenas numa análise profissional da circulação do vírus, mas na interpretação inteligente de uma dinâmica complexa, que envolve quer a circulação do vírus, quer a reacção da população a essa circulação. Ora, o alarme social estava instalado, e com boas razões. Esta pandemia é nova não só pela especificidade da estirpe de coronavírus, mas também por ela ocorrer num mundo globalizado e dominado pelas redes sociais, que permitem a propagação de informação em tempo recorde. As redes sociais têm a má fama da distribuição de fake news, mas elas fazem muito mais do que isso: também transmitem notícias úteis, permitindo-nos estabelecer ligações com um largo conjunto de pessoas cultas, informadas e que pensam bem.
Não é preciso ser especialista em epidemiologia para distinguir informação de qualidade da mera tanga, ou um bom cientista de um vendedor de banha da cobra. Este acesso a tantos dados exteriores exige que a informação que vem do governo seja precisamente o contrário daquela conferência desastrosa dada pela ministra Marta Temido e por Graça Freitas, cheia de derivações sobre netinhos em quarentena. Para histórias coloridas já temos o Facebook, obrigado. A informação oriunda do Estado deve ser seca, curta e directa, e estar impregnada de convicção e de autoridade. Frases do género “não estivemos parados, mas tememos não estar preparados, porque não depende só de nós”, como Marta Temido proferiu esta sexta-feira no Parlamento, não ajudam em nada a um combate que se antevê duríssimo. Apenas agravam a convicção de que temos uma ministra da Saúde impreparada para lidar com um problema desta dimensão.
É evidente que a actual pandemia não se combate sem a mobilização de todo o país. Mas não se mobiliza um país inteiro sem uma liderança forte. Precisamos de apagar eventos para não apagar vidas, mas precisamos também de apagar hesitações e circunlóquios, para que a ancestral desconfiança portuguesa nas instituições não nos faça perder tanto a guerra da saúde como a guerra da economia, acabando todos nós a ter de lidar com o pior dos dois mundos. Jornalista
COMENTÁRIO: viana EXPERIENTE: "Não é preciso ser especialista em climatologia para distinguir informação de qualidade da mera tanga, ou um bom cientista de um vendedor de banha da cobra." Não é exactamente o que está escrito no texto, mas podia bem ser. No entanto, JMT nunca utilizou tal frase. Porquê? Porque é que agora há, de repente, tanta fé no método científico e nos cientistas (a sério)?... Será que é a cegueira ideológica que faz JMT escolher acreditar nuns cientistas mas não noutros? 14.03.2020
II - OPINIÃO CORONAVÍRUS: Isto não é uma guerra e espalhar o pânico é um erro
Utilizar a bomba atómica da contenção radical pode matar o vírus, mas também provoca a destruição total da economia. A médio prazo, isso pode matar tanto ou mais que a covid-19.
JOÃO MIGUEL TAVARES      PÚBLICO, 19 de Março de 2020
Nós não estamos em guerra, e por respeito a todas os que sabem aquilo que uma guerra é, sugiro que comecemos por não infectar o vocabulário com o vírus do nosso medo. Há uma diferença gigantesca entre apelar à prudência e inteligência da população e desatar a pôr o país inteiro em polvorosa, como se estivéssemos na antecâmara do apocalipse. Calma. O país estava (e está) manifestamente impreparado para combater o coronavírus, e ele irá causar muitos milhares de mortos. Mas nada justifica a estúpida ciclotimia que leva cada português a saltar do encolher de ombros (“isto não tem perigo nenhum”) ao grito de pânico (“é o princípio do fim do mundo!”), turbinada pela ausência de uma estratégia clara de acção por parte do Estado.
Não, isto não é uma guerra, mas se estiverem desesperados por utilizar a palavra “guerra”, então tripliquem logo a dose, porque não há uma, mas três: 1) a guerra biológica; 2) a guerra económica; e 3) a guerra psicológica. É preciso (1) proteger a saúde dos mais vulneráveis, (2) manter um funcionamento mínimo da economia e (3) promover a estabilidade mental dos portugueses, que se forem obrigados pelo Estado a permanecerem enfiados em casa durante um mês, e a fazer filas de três quartos de hora para entrar em supermercados, irão rapidamente dar em doidos. É por isso que o vocabulário bélico me parece tão mal escolhido – o verdadeiro problema é bastante mais subtil, e tem a ver com a extrema dificuldade de decidir todos os dias em cima da corda bamba, com um número de variáveis tão extensa que a probabilidade de errar é muito maior do que a de acertar. O entusiasmo popular pela declaração presidencial do “estado de emergência” está mais próximo do fetichismo do que de outra coisa qualquer. O povo espera que três palavras mágicas pronunciadas por Marcelo curem alguma coisa, o que é tanto mais absurdo quanto o Governo nem sequer sentia necessidade delas (e António Costa não se cansou de sublinhar isso mesmo). Seria óptimo que a autorização que concedemos ao Governo para agir à bruta e meter toda a gente dentro de casa fosse a solução para todos os males. Não é. O combate ao coronavírus é um exercício dificílimo de equilibrismo e de doseamento de acções contraditórias: medidas de contenção a menos levam à propagação do vírus; e medidas de contenção a mais levam ao extermínio da economia e à loucura dos portugueses.
Isto está muito longe de ser apenas um problema de saúde. Nós precisamos de políticos focados e com extremo bom-senso, apoiados por bons especialistas, que saibam encontrar o balanço perfeito entre o combate epidémico e o combate económico. Rui Tavares escreveu ontem um artigo a discordar de mim com um título bonito – “A economia recupera; os mortos não”. Infelizmente, não é assim tão simples, como o próprio Rui acabava por reconhecer no corpo do artigo: “Não deixar a economia funcionar com normalidade também provoca mortos evitáveis.” Pois provoca. As epidemias passam; a economia não – eis um título alternativo. Utilizar a bomba atómica da contenção radical pode matar o vírus, mas também provoca a destruição total da economia. A médio prazo, isso pode matar tanto ou mais que a covid-19. É muito lindo ver toda a gente a elogiar o civismo dos portugueses, mas ele só existe porque as pessoas estão em casa há menos de uma semana com o salário integral na conta. É melhor não contar com o mesmo nível de civismo quando deixar de ser assim.  Jornalista
COMENTÁRIO: Luis_Morgado INICIANTE: João Miguel Tavares, as epidemias passam e as crises económicas também. Percebo o que diz no seu texto, mas como os acontecimentos o demonstram, o desafio é o de evitar as mortes e depois proteger a economia. Tentou-se proteger a economia, ignorando a gravidade da situação, e agora, em desespero, tenta-se evitar a morte. Vejam-se as reviravoltas vergonhosas do senhor Boris Johnson e dos seus acólitos experimentalistas. Queriam salvar a economia com a teoria da "manada" e dias depois perceberam que não podiam brincar ao Monopólio com a vida das pessoas. Pode ler artigos onde se fala de guerra e da situação actual. Recomendo um do Político "The 5 WW2 lessons that could help the Government fight Coronavirus". Não tenha medo das comparações. Se não gosta de "guerra" use "combate". 19.03.2020


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