sábado, 7 de março de 2020

E enquanto isto por cá


Em outras partes do mundo o desconforto é arrepiante. Gente graúda, gente miúda, por exemplo, na ilha de Lesbos, gente que fugiu das suas guerras, que pede auxílio e que vive no abandono, guetos de crueldade, às portas de uma Europa naturalmente reticente. Até nos sentimos de mal connosco por apreciarmos quem continua a zurzir sobre a nossa pequenez. Moral.
I -Na loja do mestre André /premium
Por mais que os seus apoiantes julguem o sr. Ventura um perigo para a esquerda, o sr. Ventura é o estereótipo da “direita” com que a esquerda sempre sonhou. E é uma garantia para o “sistema”.
ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador
OBSERVAGOR, 07 mar 2020
Há dias, escrevi nas famosas “redes sociais”: “Na CMTV está um candidato presidencial a dizer que um futebolista não tocou com a mão na bola. Portugal é grande.” Esta insignificância teve perto de 100 comentários, boa parte deles a lembrar-me que o prof. Marcelo chegou a Belém após participar em variedades televisivas desse tipo, que o prof. Marcelo também fala de futebol e se deixa filmar com cachecóis alegóricos, que o prof. Marcelo é igualmente pródigo em comentar banalidades confrangedoras, e que o prof. Marcelo, em suma, não é melhor do que o sr. Ventura.
Por acaso, concordo: o prof. Marcelo não é melhor do que o sr. Ventura. Só não digo que ambos são casos de miséria porque há para aí umas leis que proíbem a ofensa de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República. Senão dizia. A mim, porém, a circunstância de achar igualmente lamentável o desempenho público dos dois dá-me para não gostar de nenhum. Aos apoiantes do sr. Ventura, os mesmos pressupostos permitem-lhes tirar conclusões bastante distintas: se o prof. Marcelo não é melhor do que o sr. Ventura, eles naturalmente apreciam – perdão, veneram – o sr. Ventura. E não reparam, ou fingem não reparar, na contradição. Aliás, os apoiantes do sr. Ventura são óptimos a apoiar o seu líder espiritual. E péssimos a reparar nas inúmeras contradições que o líder espiritual arrasta.
Para eles, é natural que o sr. Ventura reclame o regime de exclusividade dos deputados e o deputado do Chega acumule rendimentos provenientes de duas empresas privadas.
Para eles, é natural que o sr. Ventura prometa largar os bitaites futebolísticos “em Março” e na prática os prolongue por tempo indeterminado.
Para eles, é natural que o sr. Ventura se afirme inequivocamente contra a corrupção e inequivocamente esteja a favor de uma instituição que é vasculhada pela polícia semana sim, semana não.
Para eles, é natural que o sr. Ventura denuncie a proximidade do prof. Marcelo ao banqueiro Salgado e disfarce mal a sua proximidade ao sr. Vieira do Benfica.
Para eles, é natural que o sr. Ventura condene o “sistema de extorsão fiscal transformado em terrorismo de Estado” e seja funcionário (hoje de licença) dessa “máquina de assalto ao cidadão” que é a Autoridade Tributária.
Para eles, é natural que o sr. Ventura afirme que trabalhava no fisco para perseguir os “grandes devedores” e ande ao serviço do tal sr. Vieira, que é dos maiores.
Para eles, é natural que o sr. Ventura critique os subsídios excepto quando os ditos venham a jeito para patrocinar os “media” que o empregam e correspondem à vontade do chefe que lhe paga.
Para eles, é natural que o sr. Ventura recite estrofes sobre a importância da educação e assine romances deliciosamente analfabetos.
Para eles, é natural que o sr. Ventura exalte o primado da lei, para uns assuntos, e deseje reescrever a Constituição, para outros.
Para eles, é natural que o sr. Ventura se preocupe com o terrorismo islâmico enquanto rabisca teses aflitinhas com a “estigmatização das minorias” que a prevenção do terrorismo pode produzir.
Para eles, é natural que o sr. Ventura agora defenda a polícia e antes abominasse a “expansão dos poderes policiais”.
Para eles, é natural que o sr. Ventura que propõe mutilar (química ou, confessou só meio a brincar, literalmente) pedófilos seja o sr. Ventura que lamentava o “populismo penal”.
Para eles, é natural que o sr. Ventura meta os pés pelas mãos ao tentar explicar as brutais contradições acima.
É verdade que os apoiantes do sr. Ventura são bastante activos. É vê-los nas “redes” e nas “caixas” de comentários, a proclamar a vitória do sr. Ventura em debates em que o sr. Ventura aplicou os métodos aprendidos na CMTV e berrou sem parança nem grande conteúdo. Ou a desvalorizar os cépticos nas capacidades do Mestre, para eles gente “que não percebe o que está a acontecer”. Eu percebo que, embora brilhantes (eles percebem tudo), os apoiantes do sr. Ventura não são muito exigentes.
A ver se nos entendemos, eu e os apoiantes do sr. Ventura que não anseiam por dois Salazares, os que não padecem de frémitos patrióticos, os que não batem continência à passagem da “alma”, da “raça” ou da “identidade” lusitana, e os que não pairam por ali à cata de um eventual emprego. Com os restantes, partilho o nojo a um país subjugado à esquerda (não digo corrupta na medida em que dispenso redundâncias), e a um regime que oscila entre os compadrios e as alucinações, e a uma república dominada por criaturas incapazes de limpar a baba. Ao contrário deles, não contribuo para que a subjugação seja permanente, ou no mínimo demasiado longa.

É que, por mais que os seus apoiantes julguem o sr. Ventura um perigo para a esquerda, o sr. Ventura é o estereótipo da “direita” com que a esquerda sempre sonhou. É um maná para a esquerda que o guru da “direita” seja assim débil e entalado em incongruências. E é uma garantia para o “sistema” que o paladino “anti-sistema” seja assim fácil de atacar, de caricaturar e de reduzir a meia dúzia de clichés, alguns até razoáveis, todos amanhados à pressa. Não custa admitir o imenso vazio do lado de cá do PS: custa preenchê-lo com a cabeça oca do sr. Ventura, que acaba por prestar um favor à esquerda, ao sistema e à república que promete destruir – e começa por prestar diversos favores a ele próprio. Certo é que o sr. Ventura ocupou o espaço de uma oposição necessária e que, por isto ou por aquilo, abdicou de existir. Perdeu-se uma oportunidade, ganhou o oportunismo: eis o “sistema” a funcionar.
COMENTÁRIO: f Teixeira: Leio da suas crónicas por apreciar a sua escrita - quase sempre, e as suas ideias - às vezes. A de hoje parece-me particularmente relevante, exceptuando os remoques ao Benfica - desnecessários e injustificados, a meu ver! Depois de ler o seu texto apetece-me dizer outra vez: volte Passos, e até pode trazer o Portas... Estão mais do que perdoados! Nos últimos 25 anos (pelo menos) ninguém governou Portugal melhor do que esta dupla... 
OPINIÃO
II - OPINIÃO: Os óculos de André Ventura
O “enviesamento da negatividade” não é exclusivo de André Ventura. Dos taxistas às elites, é um tom usado e abusado. Ver só os becos escuros de Portugal dá votos, mas faz mal à saúde.
BÁRBARA REIS - REDACTORA PRINCIPAL
PÚBLICO, 6 de Março de 2020
Pus-me a ler os jornais com os óculos do deputado do Chega, André Ventura. É uma estratégia repetitiva, mas simples e tem a vantagem de ser à prova de bala. Pomos os “óculos Ventura” e Portugal fica assustador. Não falha.
O método tem a desvantagem de anular o prazer que é ler jornais e ir descobrindo o que vai surgindo, ao folhear as páginas ou a fazer scroll no ecrã, a magia do acaso a que em inglês chamam serendipity. Sem os “óculos Ventura”, vamos lendo sobre os progressos e os atrasos de Portugal e do mundo, sobre as guerras e os acordos de paz, sobre as descobertas científicas e as dificuldades em fazer a vacina da malária ou da Covid-19. Lemos que no “pico” da crise do coronavírus a Linha SNS24 não atendeu o telefone a 3569 pessoas, mas na frase seguinte percebemos que essas pessoas desistiram de esperar que alguém as atendesse ao fim de 15 segundos — 15 segundos — e que nesse dia a equipa da SNS24 atendeu 13.532 chamadas. Lemos que os “motociclos envolvidos em acidentes rodoviários aumentaram 80% em Janeiro”, na primeira linha, e que no mesmo mês houve “menos um terço de vítimas mortais” (segunda linha).
Com os “óculos Ventura” é diferente. Só vemos os becos às escuras, aqueles lugares onde nem a polícia passa, nem a EMEL multa.
O que mostram os “óculos Ventura”? Há dias, aqui no PÚBLICO, Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico e especialista em inteligência artificial, escreveu sobre os “enviesamentos cognitivos” que nos enganam a ler a realidade. Um deles é o “enviesamento da negatividade”, que conduz à sobreavaliação dos riscos e tomada de decisões erradas. “Este enviesamento está relacionado com outra falácia comum, documentada há milénios”, escreve o cientista. “A ideia de que a civilização humana está em declínio e que o futuro será pior do que o passado.”
Os óculos do “enviesamento da negatividade” são os óculos de André Ventura. Como é ler jornais com esses óculos?
— “Ex-dirigente do Benfica condenado a 11 anos de prisão e a pagar mais de 5 milhões em indemnizações”, diz outro título recente. Conclusão de quem usa “óculos Ventura”: o Benfica é corrupto, temos de acabar com a vergonha do Benfica.
— “Benfica condenado por barrar Jornal de Notícias no estádio da Luz”. Conclusão de quem usa “óculos Ventura”: o Benfica não respeita a liberdade de imprensa, uma vergonha antidemocrática.
— “Dois adeptos do Benfica condenados por desacatos. Não podem ir a estádios”, diz notícia. Diz quem usa “óculos Ventura”: não há segurança para ir a jogos com claques benfiquistas porque os adeptos são arruaceiros e perigosos.
— “Miccoli, ex-futebolista do Benfica, condenado a três anos de prisão”, título de outra notícia recente. Diz quem usa “óculos Ventura” e leu estas quatro notícias: no Benfica, nada se safa, nem dirigentes, nem adeptos, nem jogadores.
Isto no futebol, tema de que o deputado gosta e por isso é comentador da televisão. Nas questões sociais é igual.
“Cinco inspectores da ASAE detidos por suspeitas de passarem informações a restaurantes”, diz um título. Conclusão de quem usa “óculos Ventura”: a ASAE é corrupta, temos de acabar com esta vergonha na ASAE.
— “Polícias condenados por sequestro trataram vítima como lixo” / “Pena suspensa para polícia que deixou criança fechada num carro” / “Multas para três polícias condenados por agressão a jovem em pleno tribunal” / “Polícia condenado a quase três anos e a pagar 10 mil euros a homem que agrediu” / “Oito polícias de Alfragide condenados, nove absolvidos”. Diz quem usa “óculos Ventura”: e isto só em sete meses, o que será no ano inteiro!
Nos políticos, ui. As lentes destes óculos confirmam que os políticos “são todos iguais” e por isso é urgente refundar o regime e inaugurar a IV República. As bases para isso? Vejam-se os últimos dias: o presidente da Câmara de Torres Vedras foi condenado a uma multa de 5000 euros por plágio na tese de doutoramento e um autarca de Oliveira do Bairro foi condenado por abuso de poder. Aí vai o PS e o PSD. Há duas semanas, um autarca de Lisboa do PSD foi condenado a oito anos de prisão por seis crimes de peculato. PS:1; PSD: 2. Em Abril, o presidente da Câmara de Vila Viçosa foi condenado por peculato. O PCP entra no grupo. Lentes peculiares mostram um país de autarcas corruptos, onde o PSD ganha. Mas em Portugal, há 40 mil autarcas e, nos anos de democracia, não há muitos casos de autarcas condenados em casos de corrupção. O “enviesamento da negatividade” não é exclusivo de Ventura. Dos taxistas às elites, é um tom que se usa e de que se abusa. Ver só os becos escuros de Portugal dá votos, mas faz mal à saúde.


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