Em outras partes do mundo o desconforto é arrepiante.
Gente graúda, gente miúda, por exemplo, na ilha de Lesbos, gente que fugiu das
suas guerras, que pede auxílio e que vive no abandono, guetos de crueldade, às
portas de uma Europa naturalmente reticente. Até nos sentimos de mal connosco
por apreciarmos quem continua a zurzir sobre a nossa pequenez. Moral.
I -Na loja do mestre André /premium
Por mais que os seus apoiantes julguem o sr. Ventura um
perigo para a esquerda, o sr. Ventura é o estereótipo da “direita” com que a
esquerda sempre sonhou. E é uma garantia para o “sistema”.
ALBERTO GONÇALVES,
Colunista do Observador
OBSERVAGOR, 07 mar 2020
Há
dias, escrevi nas famosas “redes sociais”: “Na CMTV está um candidato
presidencial a dizer que um futebolista não tocou com a mão na bola. Portugal é
grande.” Esta insignificância teve perto de 100 comentários, boa parte deles a
lembrar-me que o prof. Marcelo chegou a Belém após participar em variedades
televisivas desse tipo, que o prof. Marcelo também fala de futebol e se deixa
filmar com cachecóis alegóricos, que o prof. Marcelo é igualmente pródigo em
comentar banalidades confrangedoras, e que o prof. Marcelo, em suma, não é
melhor do que o sr. Ventura.
Por
acaso, concordo: o prof. Marcelo não é melhor do que o sr. Ventura. Só não digo
que ambos são casos de miséria porque há para aí umas leis que proíbem a ofensa
de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República. Senão dizia. A mim, porém,
a circunstância de achar igualmente lamentável o desempenho público dos dois
dá-me para não gostar de nenhum. Aos apoiantes do sr. Ventura, os mesmos
pressupostos permitem-lhes tirar conclusões bastante distintas: se o prof.
Marcelo não é melhor do que o sr. Ventura, eles naturalmente apreciam – perdão,
veneram – o sr. Ventura. E não reparam, ou fingem não reparar, na contradição.
Aliás, os apoiantes do sr. Ventura são óptimos a apoiar o seu líder espiritual.
E péssimos a reparar nas inúmeras contradições que o líder espiritual arrasta.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura reclame o regime de exclusividade dos
deputados e o deputado do Chega acumule rendimentos provenientes de duas
empresas privadas.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura prometa largar os bitaites futebolísticos “em
Março” e na prática os prolongue por tempo indeterminado.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura se afirme inequivocamente contra a corrupção
e inequivocamente esteja a favor de uma instituição que é vasculhada pela
polícia semana sim, semana não.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura denuncie a proximidade do prof. Marcelo ao
banqueiro Salgado e disfarce mal a sua proximidade ao sr. Vieira do Benfica.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura condene o “sistema de extorsão fiscal
transformado em terrorismo de Estado” e seja funcionário (hoje de licença)
dessa “máquina de assalto ao cidadão” que é a Autoridade Tributária.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura afirme que trabalhava no fisco para perseguir
os “grandes devedores” e ande ao serviço do tal sr. Vieira, que é dos maiores.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura critique os subsídios excepto quando os ditos
venham a jeito para patrocinar os “media” que o empregam e correspondem à
vontade do chefe que lhe paga.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura recite estrofes sobre a importância da
educação e assine romances deliciosamente analfabetos.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura exalte o primado da lei, para uns assuntos, e
deseje reescrever a Constituição, para outros.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura se preocupe com o terrorismo islâmico
enquanto rabisca teses aflitinhas com a “estigmatização das minorias” que a
prevenção do terrorismo pode produzir.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura agora defenda a polícia e antes abominasse a
“expansão dos poderes policiais”.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura que propõe mutilar (química ou, confessou só
meio a brincar, literalmente) pedófilos seja o sr. Ventura que lamentava o
“populismo penal”.
Para
eles, é natural que o sr. Ventura meta os pés pelas mãos ao tentar explicar as
brutais contradições acima.
É
verdade que os apoiantes do sr. Ventura são bastante activos. É vê-los nas
“redes” e nas “caixas” de comentários, a proclamar a vitória do sr. Ventura em
debates em que o sr. Ventura aplicou os métodos aprendidos na CMTV e berrou sem
parança nem grande conteúdo. Ou a desvalorizar os cépticos nas capacidades do
Mestre, para eles gente “que não percebe o que está a acontecer”. Eu percebo que,
embora brilhantes (eles percebem tudo), os apoiantes do sr. Ventura não são
muito exigentes.
A
ver se nos entendemos, eu e os apoiantes do sr. Ventura que não anseiam por
dois Salazares, os que não padecem de frémitos patrióticos, os que não batem
continência à passagem da “alma”, da “raça” ou da “identidade” lusitana, e os
que não pairam por ali à cata de um eventual emprego. Com os restantes,
partilho o nojo a um país subjugado à esquerda (não digo corrupta na medida em
que dispenso redundâncias), e a um regime que oscila entre os compadrios e as
alucinações, e a uma república dominada por criaturas incapazes de limpar a
baba. Ao contrário deles, não contribuo para que a subjugação seja permanente,
ou no mínimo demasiado longa.
É
que, por mais que os seus apoiantes julguem o sr. Ventura um perigo para a
esquerda, o sr. Ventura é o estereótipo da “direita” com que a esquerda sempre
sonhou. É um maná para a esquerda que o guru da “direita” seja assim débil e entalado
em incongruências. E é uma garantia para o “sistema” que o paladino
“anti-sistema” seja assim fácil de atacar, de caricaturar e de reduzir a meia
dúzia de clichés, alguns até razoáveis, todos amanhados à pressa. Não custa
admitir o imenso vazio do lado de cá do PS: custa preenchê-lo com a cabeça oca
do sr. Ventura, que acaba por prestar um favor à esquerda, ao sistema e à
república que promete destruir – e começa por prestar diversos favores a ele
próprio. Certo é que o sr. Ventura ocupou o espaço de uma oposição necessária e
que, por isto ou por aquilo, abdicou de existir. Perdeu-se uma oportunidade,
ganhou o oportunismo: eis o “sistema” a funcionar.
COMENTÁRIO: f Teixeira: Leio da suas crónicas por apreciar a sua escrita - quase
sempre, e as suas ideias - às vezes. A de hoje parece-me particularmente
relevante, exceptuando os remoques ao Benfica - desnecessários e injustificados,
a meu ver! Depois de ler o seu texto apetece-me dizer outra vez: volte Passos,
e até pode trazer o Portas... Estão mais do que perdoados! Nos últimos 25 anos
(pelo menos) ninguém governou Portugal melhor do que esta dupla...
OPINIÃO
OPINIÃO
II - OPINIÃO: Os óculos de André Ventura
O “enviesamento da negatividade” não é
exclusivo de André Ventura. Dos taxistas às elites, é um tom usado e abusado.
Ver só os becos escuros de Portugal dá votos, mas faz mal à saúde.
BÁRBARA REIS - REDACTORA
PRINCIPAL
PÚBLICO, 6 de Março de 2020
Pus-me
a ler os jornais com os óculos do deputado do Chega, André Ventura. É uma
estratégia repetitiva, mas simples e tem a vantagem de ser à prova de bala.
Pomos os “óculos Ventura” e Portugal fica assustador. Não falha.
O
método tem a desvantagem de anular o prazer que é ler jornais e ir descobrindo
o que vai surgindo, ao folhear as páginas ou a fazer scroll no
ecrã, a magia do acaso a que em inglês chamam serendipity.
Sem os “óculos Ventura”, vamos lendo sobre os progressos e os atrasos de
Portugal e do mundo, sobre as guerras e os acordos de paz, sobre as descobertas
científicas e as dificuldades em fazer a vacina da malária ou da Covid-19.
Lemos que no “pico” da crise do coronavírus a Linha SNS24 não atendeu o
telefone a 3569 pessoas, mas na frase seguinte percebemos que essas pessoas
desistiram de esperar que alguém as atendesse ao fim de 15 segundos — 15
segundos — e que nesse dia a equipa da SNS24 atendeu 13.532 chamadas. Lemos que
os “motociclos envolvidos em acidentes rodoviários aumentaram 80% em Janeiro”,
na primeira linha, e que no mesmo mês houve “menos um terço de vítimas mortais”
(segunda linha).
Com os “óculos Ventura” é diferente. Só vemos os becos às escuras,
aqueles lugares onde nem a polícia passa, nem a EMEL multa.
O
que mostram os “óculos Ventura”? Há dias, aqui no PÚBLICO, Arlindo Oliveira,
professor do Instituto Superior Técnico e especialista em inteligência
artificial, escreveu sobre os “enviesamentos cognitivos” que nos enganam a ler
a realidade. Um deles é o “enviesamento da negatividade”, que conduz à
sobreavaliação dos riscos e tomada de decisões erradas. “Este enviesamento
está relacionado com outra falácia comum, documentada há milénios”, escreve o
cientista. “A ideia de que a civilização humana está em declínio e que o futuro
será pior do que o passado.”
Os óculos do “enviesamento da
negatividade” são os óculos de André Ventura. Como é ler jornais com esses
óculos?
—
“Ex-dirigente do Benfica condenado a 11 anos de prisão e a pagar mais de 5 milhões
em indemnizações”, diz outro título recente. Conclusão de quem usa “óculos
Ventura”: o Benfica é corrupto, temos de acabar com a vergonha do Benfica.
—
“Benfica condenado por barrar Jornal de Notícias no estádio da Luz”.
Conclusão de quem usa “óculos Ventura”: o Benfica não respeita a liberdade de
imprensa, uma vergonha antidemocrática.
—
“Dois adeptos do Benfica condenados por desacatos. Não podem ir a estádios”, diz
notícia. Diz quem usa “óculos Ventura”: não há segurança para ir a jogos
com claques benfiquistas porque os adeptos são arruaceiros e perigosos.
—
“Miccoli, ex-futebolista do Benfica, condenado a três anos de prisão”, título de outra notícia
recente. Diz quem usa “óculos Ventura” e leu estas quatro notícias: no
Benfica, nada se safa, nem dirigentes, nem adeptos, nem jogadores.
Isto no futebol, tema de que o
deputado gosta e por isso é comentador da televisão. Nas questões sociais é
igual.
—“Cinco inspectores da ASAE detidos por suspeitas de passarem
informações a restaurantes”, diz um título. Conclusão de quem usa “óculos
Ventura”: a ASAE é corrupta, temos de acabar com esta vergonha na ASAE.
—
“Polícias condenados por sequestro trataram vítima como lixo” / “Pena
suspensa para polícia que deixou criança fechada num carro” / “Multas
para três polícias condenados por agressão a jovem em pleno tribunal” /
“Polícia condenado a quase três anos e a pagar 10 mil euros a homem
que agrediu” / “Oito polícias de Alfragide condenados, nove absolvidos”. Diz
quem usa “óculos Ventura”: e isto só em sete meses, o que será no ano inteiro!
Nos
políticos, ui. As lentes
destes óculos confirmam que os políticos “são todos iguais” e por isso é
urgente refundar o regime e inaugurar a IV República. As bases para isso?
Vejam-se os últimos dias: o presidente da Câmara de Torres Vedras foi condenado a uma multa de 5000 euros por plágio na tese de
doutoramento e um
autarca de Oliveira do Bairro foi condenado por abuso de poder. Aí vai o PS
e o PSD. Há duas semanas, um autarca de Lisboa do PSD foi condenado a oito anos de prisão por seis crimes de peculato.
PS:1; PSD: 2. Em Abril, o presidente da Câmara de Vila Viçosa foi condenado por peculato. O PCP entra no grupo. Lentes
peculiares mostram um país de autarcas corruptos, onde o PSD ganha. Mas em
Portugal, há 40 mil autarcas e, nos anos de democracia, não há muitos casos de
autarcas condenados em casos de corrupção. O “enviesamento da
negatividade” não é exclusivo de Ventura. Dos taxistas às elites, é um tom que
se usa e de que se abusa. Ver só os becos escuros de Portugal dá votos, mas faz
mal à saúde.
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