Com o susto valente que o Dr. Salles
conta desafogadamente, mas que dá para imaginar os muitos mais, em outros locais
do globo, em cruzeiros que o coronavírus virou em indesejadas ilhas flutuantes.
POR
TORDESILHAS ALÉM… - 10 – Um Bando
de Leprosos
HENRIQUE SALLES DA FONSECA A
BEM DA NAÇÃO, 29.03.20
Ondas
como as do Lago de Genève. Fazendo horas para o jantar, a Graça e eu estávamos
na varanda do camarote a ver o Sol a caminho da noite e olhávamos para
nenhures. O que se espera ver num mar que parece infinito e plano? Um tsunami que
nos vire de borco? Não! Talvez se veja uns golfinhos, umas baleias, um
navegador solitário ou uns náufragos… Nada disso. A novidade não estava no mar,
tinha sido posta num papel por baixo da porta do camarote.
Era
uma comunicação formal de alguém colocado na hierarquia determinante do navio a
informar que aportaríamos a Colón na manhã seguinte pelas 7 horas e que
seríamos todos metidos em autocarros e escoltados até ao aeroporto de Panamá
City. Que tratássemos de mudar de vida. E que, como com o bode a ser ordenhado,
não haveria mé nem meio mé.
O
nosso programa de festas previa desembarcarmos, termos um carro à nossa espera
para nos levar ao hotel em Panamá City onde ficaríamos mais dois dias a ver o
que por lá houvesse de interessante e, então e só então, voarmos para Cancún,
no México. Nada disso, seríamos escoltados até ao aeroporto e dali não
poderíamos sair a não ser por uma porta de embarque para um avião que nos
tirasse para fora do Panamá. No Panamá é que não podíamos ficar. Escorraçados
como um bando de mal-cheirosos. E mais: o problema não era apenas connosco, os
quatro portugueses, era com todos os passageiros do navio com desembarque
previsto em Colón, «apenas» cerca de 850 pessoas. Se a esta multidão somarmos
os tripulantes não panamianos em fim de contrato que também desembarcariam,
tratar-se-ia de cerca de mil pessoas à deriva, sem solução muito diferente da
de terem (termos) que dormir espojados no chão do aeroporto. Estariam 16
autocarros à nossa espera no cais e seríamos escoltados pela Polícia. E que
desamparássemos a loja, neste caso, o navio. À saída, haveria uma equipa médica
que nos mediria a temperatura: se apiréticos, tudo bem; se febris, não nos
disseram onde estaria a máquina de picar carne para de seguida mandarem os
restos para o crematório local.
- E
não podemos ir no barco até Cartagena de las Índias e tentar resolver o
problema a partir da Colômbia?
-
Nem pensar nisso, até porque o problema lá é igual ao daqui. Têm que sair e desenrascarem-se.
No
check in, aquele mesmo funcionário tinha sido mais afável e não perdi a
oportunidade de chamar Pilatos a quem assim se livrava de nós. Desapareceu e
não foi mais visto nas redondezas daquele balcão de «apoio» aos passageiros do
nosso deck.
A
Graça e o Pepe – os reais organizadores das viagens que fazemos em conjunto –
tinham 12 horas para conseguirem antecipar o voo do Panamá para Cancún e para
anteciparem dois dias a nossa chegada ao hotel em Playa del Carmen. Como se
imagina, as comunicações do barco entupiram de imediato com tanta gente a
querer resolver os respectivos problemas equivalentes ao nosso. Valeu-nos a
diferença horária entre o Panamá e Portugal, 5 horas, pelo que quem tudo
reorganizou com inexcedível dedicação e profissionalismo foi a nossa agência de
viagens em Lisboa, a Lusanova, a quem daqui presto merecido aplauso. É que,
quando desembarcámos, já sabíamos que voaríamos no voo tal e tal, que no
destino teríamos quem nos levasse ao hotel, tudo perfeito.
Formada
a coluna de 16 autocarros, fomos escoltados por polícia motorizada e armada de
metralhadora como se fôssemos uma leva de criminosos ou um bando de leprosos. E
isto era sabendo que estávamos todos apiréticos. O que seria se alguém
estivesse com febre por causa de um panarício ou por um ataque de caspa?
Chegados à cerca do aeroporto, ordem para parar. E começámos a ser
ultrapassados por todos os que não pertenciam à coluna. Assim estivemos cerca
de uma hora até que duas dúzias dos nossos, exaltados, fizeram um cordão humano
a impedir o trânsito. Foi ver a Polícia a dar ordem para seguirmos. Pensei que
esses cívicos armados ou eram cobardes ou não estavam convictos de alguma ordem
absurda que estavam contrariadamente a cumprir.
À
hora prevista chamaram-nos para o avião. Não nos virámos para trás a fazer um
gesto feio até porque os passageiros depois de nós na fila de embarque não
tinham culpa nenhuma. Mas dissemos «Adiós Panamá».
Voo
de duas horas e aterragem tão suave que só me apercebi que já estávamos no chão
porque senti o piloto pôr o reverse e travar.
Bom
augúrio, México! (Continua) Março de 2020 Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Francisco G. de Amorim 29.03.2020: Tá
tudo louco sem saber como lidar com a Covid !
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