segunda-feira, 16 de março de 2020

O corona, os oitenta e a calçada à portuguesa



Ouvi uma vez mais as recomendações telefónicas do João e refutei, pois tenho necessidade de andar, nem que sejam só alguns metros, para desentorpecer ideias e esqueleto: não devo sair de casa, blá blá blá, a fragilidade da idade, um corona traiçoeiro... É o que tenho feito, de resto, tirando as compras, em estranhas condições de racionamento e obtenção, mas nem me vou pronunciar. A informação mais estranha foi a de que a nossa amiga tinha caído e magoado um pulso. Telefonei-lhe logo e, a seguir, à minha irmã a avisar.
Fora na calçada à portuguesa, com quem temos um contencioso de anos, devido às lombas e aos buracos. A nossa amiga uma vez mais usou a voz timbrada e o gesto largo e nervoso que o telefone deixou adivinhar, para protestar reiteradamente contra a calçada antiga. Eu lá vou convivendo com ela, fugindo dos buracos e subindo as lombas causadas pelas raízes das árvores, caminhando de olhos baixos, perscrutadores, a sugerir que qualquer dia a canadiana ou a bengala serão companheiras inseparáveis, numa momentânea distracção, de visualização mais a direito e mais distante.
A nossa amiga, uma vez mais, mostrou-se mordaz contra a calçada, eu receitei, “regianamente”, “coisas que terei pudor de contar seja a quem for” da minha gaveta dos remédios, incluindo álcool canforado, mas a nossa amiga falou em gelo, uma tal pomada e um comprimido para as dores, que lhe deram alívio, nunca quer dar parte de fraca, preferindo ironizar contra as pedras soltas da tal calçada da nossa denguice nacional, ou antes, penúria na questão do cimento, mais liso e mais prático e protector dos saltos, o cimento dos países amantes das energias e do progresso.
Mas também falei nos telefonemas insistentes do João para que não saia de casa, na minha idade de risco, e logo a nossa amiga justificou, com a sagacidade costumeira, de quem talvez receba iguais avisos do filho Quim Miguel:
-“O corona, quando chegou, a primeira coisa que ele avisou foi que não pode com os oitenta, a novidade foi logo essa. É por isso que os filhos estão todos assustados.”
Cá por mim, lembrei que o corona vinha então a calhar numa sociedade como a nossa lusa, que propõe a eutanásia para se libertar desses da inimizade do Covid 19, um benfazejo, pois, social…

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