E amargura, naturalmente. Nada a fazer.
Mas faça sempre, único, pelos vistos. Onde pairam os outros, os que protestaram
durante os 21 anos desses 30? Longa vida a Nuno
Pacheco. O extracto da sua biografia no final do texto.
OPINIÃO
Aprende-se muito, ao rever 30 anos
Dir-se-á que português não tem
tradução, mas cada cultura tem os seus códigos. Basta ler a Wikipédia.
PÚBLICO, 5 de Março de 2020
Passam
depressa, 30 anos. Mas não passa, porque nada a apaga, a memória dos tempos que
viram nascer o PÚBLICO: 1988-89, quando ele foi idealizado e teve “luz
verde”; e 1990, quando finalmente chegou às bancas, no dia 5 de Março. Eram
anos de optimismo, em que, por imprevisíveis circunstâncias históricas (desde
logo a queda do infame muro de Berlim), o mundo parecia abrir-se auspiciosamente
a realidades bem menos sombrias, despedindo-se do veneno que ainda sobrava das
duas guerras mundiais. Abriam-se fronteiras, abraçavam-se antigos
adversários e tudo parecia entusiasmante, naquele distante início de década.
Ora 30 anos passados, sem esquecer o muito de positivo
que se viu e se fez, erguem-se muros, há fronteiras que se fecham, aliados que
se apartam e velhos ódios ou medos que renascem, para lá dos que aproveitam o
alarmismo do novo coronavírus.
Deles falaram já neste jornal, e de forma claríssima, Jorge Almeida
Fernandes (“O medo é um vírus e a informação é a
vacina”), Teresa
de Sousa (“Há um outro vírus a infectar a Europa”) ou Vicente Jorge
Silva (“Os vírus e as quarentenas do mundo”). Não perdendo um só minuto a baixar os braços perante cenários
sombrios, como nos parecem, à vista deles, pueris as ilusões de 90!
É
instrutivo passar em revista o que de mais relevante sucedeu nestes 30 anos e
que o PÚBLICO acompanhou em milhares de edições (chega hoje à n.º 10.907).
Como? Uma solução prática e acessível é a Wikipédia. Há uma súmula desses factos,
para cada ano, e em português. Universal? Isso é coisa que não
existe, apesar da ilusão, que também surgiu em 1990 sob a forma de um acordo
ortográfico internacional, de uma “unificação”. Na verdade, tais textos
estão escritos em legítimo português do Brasil e, por isso, neles lemos coisas
que por cá se escrevem de outra maneira (e nada relacionado com ortografias): “metrô
de Moscou”, “vai ao ar [o último episódio de Friends]”, “lançado videogame”,
“[sonda] aterrissa em Titã”, “Microsoft lança o novo console de jogos”, “festividades
de virada de ano”, “primeiro turno [de eleições]”, “pandas marrons”, “ônibus
espacial”, “Copa do Mundo”, “Quênia decreta toque de recolher”, “[inaugurado]
primeiro trem-bala chinês”, “governo de coalizão”, “vítima de parada cardíaca”,
“terremoto”, “Madri”, “Copenhague”, “Irã”, “Teerã”, “Bagdá”, “tênis”,
“Aids”, “usina nuclear”, “astrônomos”, “colisão entre trem, ônibus e caminhão”,
“decolagem do aeroporto”, “restos mortais de 1.270 detentos”, “ministro do
trabalho se demite após 1 mês de denúncias de propina”, “torcidas de times de
futebol”, “Facebook atinge um bilhão de usuários cadastrados”, “Cuba concede
anistia”, “fenômeno astronômico permite ver Vênus próximo da Lua”,
“alunissagem”, “Ronaldo ganha o prêmio da FIFA”, “narrador esportivo”, “israelenses
e palestinos”, “sofria de câncer”, “disparos contra policiais”, “no Marrocos”,
“dezesseis pessoas”, “caminhoneiros [em greve]”, “caminhões-bombas”, “Donald
Trump e Kim Jong-un fazem reunião de cúpula”, “Suprema Corte da Índia derruba
lei colonial”, “primeira espaçonave a pousar no lado oculto da Lua”, “mortos
após um vazamento de gás”, “contêiner refrigerado de um caminhão”, “1917 vence
prêmio de Melhor Filme”, “Brigid Kosgei quebra recorde mundial de maratona”,
“[astronauta] aterrissa na Soyuz MS-13”, etc.
Dir-se-á que português não tem tradução, mas cada cultura tem os
seus códigos. Se estes textos fossem escritos em
Portugal, usar-se-iam outras palavras, que por sua vez soariam estranhas no
Brasil. Nenhum acordo consegue iludir isto. E a ortografia? Tomemos o exemplo do coronavírus. Aqui sim, vemos que
são possíveis os almejados “textos conjuntos”. Ou não? Em Portugal, na
televisão, revistas e jornais (tirando honrosas excepções) lemos: infetado, infetada,
infecioso, infeção, infeções, infetou, infetar, desinfeção. No Brasil, em
breves rondas pelo Globo, Folha de S.Paulo ou BBC Brasil,
lemos: infectado, infectada, infectados, infecção, infecções, infecciosas, infectologista,
desinfecção. Tal como se escrevia em Portugal antes da dita
“unificação” ortográfica. Não só:
também se lê “detectado” e “detectada”, onde aqui passou a escrever-se
“detetado” e “detetada”. Custa muito perceber que, de todas as
ilusões de 1990, esta foi a mais idiota e inútil?
COMENTÁRIOS
mzeabranches INICIANTE:
Bravo, Nuno Pacheco, e parabéns e longa
vida ao "Público", por estes 30 anos ao serviço da inteligência, do
espírito crítico, da independência, do exercício da cidadania e da democracia
em Portugal, sempre no respeito pela nossa língua materna, que nos permite
existir de forma própria e única, no contexto humano universal! 05.03.2020
chagas_antonio INICIANTE:
Respondendo à pergunta com que terminou a
sua lúcida coluna, é evidente que não custa perceber que o AO
é idiota e inútil. Mas será
durante os próximos 30 anos, previsivelmente uma continuidade da salgalhada de
significantes que refere, que o AO cairá de podre, com o número cada vez maior
de falantes do português que está a pô-lo de lado. Para tal, e até lá:
resistir, sempre. 05.03.2020
BIOGRAFIA:
NUNO PACHECO
REDACTOR-PRINCIPAL
Integrar em 1989 a equipa
fundadora do PÚBLICO, após oito anos no Expresso, foi um dos grandes desafios
da minha vida, faltavam ainda uns anos para o advento revolucionário da
Internet. Que não mudou a essência do que acredito que deve ser o jornalismo: uma
mistura de ética, arte e busca incessante do que é novo. E isso é inseparável
do tratamento dado à palavra, na forma como se escreve uma história, se formula
uma ideia, se incentiva um debate. Por isso sou defensor acérrimo da
diversidade da língua portuguesa, nas suas riquíssimas variantes, e adversário
do acordo ortográfico de 1990. Em apoio desta posição, invoco o facto de
escrever sobre música brasileira há quase duas décadas. Nasci no ano (e no mês)
da morte de Carmen Miranda, Agosto de 1955, mas não acho que isso conte para
esta história.
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