De Jaime
Nogueira Pinto, a quem só temos que ficar gratos.
Tempos de Peste /premium
Não sei até que ponto as experiências
do passado servem para o presente. Tudo será diferente, mas podemos estar
certos de que vamos sentir na pele, a curto e longo prazo, as consequências da
pandemia.
JAIME NOGUEIRA PINTO
OBSERVADOR, 20 mar 2020
Para tirar algum proveito da reclusão e exorcizar o
medo generalizado que nos chega sob a forma de uma pandemia num tempo que Yuval Noha Harari tinha previsto como o tempo
do Homo Deus (e que agora nos confronta
com a nossa finitude, com a nossa fragilidade, com a nossa insuficiência mas
também com a nossa resistência, com os nossos recursos em tempos extremos e com
a nossa humanidade comum), sigo o conselho de Jean Delumeau e mergulho nas raízes e na
crónica dos comportamentos colectivos perante epidemias passadas.
Delumeau dedica o terceiro capítulo de La Peur
en Occident às pestes: “Typologie des comportements
colectifs en temps de peste”.
Além das pestes célebres da Antiguidade – a
peste de Atenas, narrada por Tucídides, a
peste de Tebas, contada por Sófocles, as pestes de Galeno e de S.
Cipriano nos séculos II e III, a
praga de Justiniano no século VI bizantino –, entre 1347, com a chegada da Peste Negra, e os
princípios do século XIX, as pragas, as pandemias, são um fenómeno recorrente
na Europa.
Durante todo este período, as pestes repetem-se com
picos de dez em dez anos e atingem 20, 30, às vezes 40 por cento das populações
urbanas. Todas as grandes cidades
europeias passaram por elas: Florença, Marselha, Milão,
Sevilha, Paris, Lyon, Londres. E Lisboa também. As
epidemias têm geralmente um itinerário geográfico, caminhos mais ou menos
semelhantes, pelas rotas da seda. Rotas que agora são mais globais.
A Peste
Negra – a praga mais mortífera da História – terá tido o seu ponto de
partida para a Europa no cerco de Caffa, uma feitoria genovesa no Mar Negro, na
Crimeia, no ano de 1346. Os sitiantes eram mongóis da Horda de Ouro, que
traziam a pestilência da Ásia e que, visivelmente, praticavam a guerra
bacteriológica, catapultando para dentro das muralhas de Caffa os cadáveres dos
pestíferos. Ao mesmo tempo os ratos negros, Mus ratus (não confundir com as ratazanas de esgoto, Mus
decumurus, que os haviam de exterminar) traziam as pulgas portadoras do vírus, que
circulavam com grande promiscuidade entre sitiados e sitiantes.
Quando os mongóis desistiram do cerco e negociaram uma
trégua, os navios comerciais genoveses puderam partir rumo à Europa e aí tudo
se complicou: em 1347 aportaram em Constantinopla – que
contaminaram – e seguiram depois para Ocidente, para Messina, Génova e Marselha, com
a sua carga de pulgas, ratos e marinheiros infestados. Aí abriram-se as
portas do Inferno. A peste chegou a Florença em 1348: lembro
o Decameron, de
Bocaccio, cujo ponto de partida é o encontro de 10 jovens – três homens e
sete mulheres – que a peste obriga à quarentena comum perto da cidade, e que
contam histórias uns aos outros, dez histórias cada um. Seguem-se, nesse mesmo verão
de 1348, Paris e
Londres. Chaucer, nos Canterbury
Tales, também tem um
conto, “The
Pardoner’s Tale”, a propósito da peste. Pier Paolo Pasolini, na sua Trilogia da Vida,
faz uma interpretação livre, mais brejeira e anti-clerical, dos originais de Bocaccio e Chaucer. O outro clássico é as Mil e
Uma Noites. Os dois autores fazem uma crítica satírica e feroz à sociedade florentina
e à sociedade inglesa, sobre as quais está a cair a cólera de Deus.
A Peste Negra matou muito. Embora não haja um número certo, a mortandade na Europa terá andado entre
os 30 e os 50 milhões de almas. Fora a Ásia, o Médio Oriente e o
Norte de África. A quebra demográfica que causou levaria mais de um
século a reequilibrar-se. Entretanto, apressou o fim do feudalismo, a
libertação dos servos da gleba e a revolução na agricultura.
Mas entre 1400 e 1800, do fim da Idade Média ao fim do
Ancien Régime, aquilo a que
Braudel chama o “Ancien Régime biologique”, as pestes seriam uma constante no
continente europeu e na Inglaterra. A Inglaterra,
nos finais do século XVII, sofria a Grande Peste de Londres, uma epidemia
célebre porque contada por dois grandes escritores – Samuel Pepys e Daniel
Defoe. Foi em 1665, no reinado de Carlos II, e matou cerca de 100.000 pessoas
numa população de meio milhão, ou seja, 20 por cento da população.
Depois, as epidemias vão rareando, à medida que a
medicina progride e que os conceitos de higiene e salubridade pública vão sendo
impostos nas cidades, sobretudo com o Despotismo Iluminado e a racionalização urbanística, no século XVIII.
A última grande pandemia no Ocidente, já no século XX,
foi a Pneumónica, a Influenza ou a Gripe Espanhola, iniciada aparentemente nas
trincheiras da Grande Guerra, na Primavera de 1918. Outras versões dizem que
foi no Kansas, nos Estados Unidos, que começou. O segredo de guerra, a coincidência de mortes pela
doença e de mortes em combate e a censura militar deram lugar a que se chamasse
“espanhola” à epidemia, cujas notícias iniciais chegavam de Espanha, país
neutral e com uma imprensa mais livre. O
grande surto da gripe foi no Outono-Inverno de 1918-19 quando, depois do
Armistício, as tropas foram desmobilizadas e os soldados voltaram para casa,
espalhando o vírus pelas famílias, pelas cidades, pelos campos. Terão morrido
30, 40, ou 50 milhões de pessoas, ainda hoje é incerto. Em Portugal foram mais
de 60.000. A epidemia começou em Vila Viçosa, junto à fronteira com Espanha, e
entre as suas vítimas contam-se São Francisco e Santa Jacinta Marto, de Fátima,
Amadeo de Souza Cardoso e os compositores Pedro Blanco, António de Lima Fragoso
e David de Souza.
Não sei até que ponto as experiências do passado
servem para o presente; servirão, pelo menos, para nos irmanar no tempo e no
espaço. Independentemente das suas
razões ou “causas naturais”, a interpretação da causa última das pestes
passadas e a razão dos grandes medos foi quase sempre metafísica, uma punição
dos deuses ou de Deus pelos descaminhos dos homens. E as pestes tiveram,
sobretudo até ao século XVIII, características que hoje não se verificam. Como
bem nota Braudel, uma das explicações para as grandes mortandades foi o facto
de as epidemias caírem em cima de populações já debilitadas pela fome e em
comunidades onde não havia grandes cuidados higiénicos. Sempre ouvi dizer que a
recomendação de “lavar as mãos” com frequência nos chegou só com Pasteur, o descobridor dos micróbios.
Hoje as
grandes fomes e as grandes imundices desapareceram, pelo menos no mundo
euro-americano; e há menos quem se preocupe com as razões metafísicas dos males
que nos assolam ou do Mal em geral (embora abundem
teorias da conspiração a responsabilizar potências e sociedades mais ou menos
secretas pela presente pandemia).
De qualquer
forma, não nos faltam “causas naturais” – outros
humanos descaminhos, debilidades e imundices – para explicar o mal que de
repente se abate sobre nós; nem experiência histórica para saber que há-de ter
outras consequências.
Sabemos, por exemplo, que as pestes do século II e III
tiveram influência na decadência e queda de Roma; que a “praga de Justiniano”
enfraqueceu o império bizantino e o império persa, abrindo caminho para a
ascensão do Islão no século seguinte; que a Peste Negra apressou o fim do
feudalismo e abriu portas à concentração do poder real e à libertação dos
camponeses. E que a Gripe Espanhola de 1918-19 teve, nos Estados Unidos, efeitos
económicos negativos nos serviços e nas indústrias de diversão e positivos nas
indústrias e nos serviços de saúde, matando sobretudo os que estavam na força
da vida (entre os 20 e os 40 anos) e assolando mais as cidades do que o mundo
rural – sendo que a relação urbanos/rurais nos Estados Unidos que era então de
50/50 é hoje de 80/20.
Sabemos, também por experiência histórica, que tudo
será diferente, porque o futuro acaba sempre por nos surpreender e porque muito
mudou de há cem anos para cá. Mas porque também sabemos que o que fica do que
passa é a natureza das coisas e a natureza humana, que nunca mudam muito, podemos estar certos de que vamos sentir na pele, a
curto e a longo prazo, as mudanças físicas, económicas e geopolíticas desta
pandemia.
Quanto às consequências físicas mais imediatas desta
avassaladora “peste chinesa”, só espero – e
penso que serei acompanhado por muitos – que, entre as indecisões e as decisões
de quem em Portugal pode e deve decidir, se arranjem ventiladores a tempo de
não terem de ser os médicos a enfrentar a alternativa diabólica de determinar
quem morre e quem fica vivo; ou de não terem de ser eles a enfrentar também a
própria morte, por exaustão e falta de equipamento.
Que Deus nos ajude. E que não nos abandonem a coragem,
a vontade, a perseverança, a responsabilidade, o empenho e a caridade de todos
os que aqui podemos ser o Seu braço.
A SEXTA
COLUNA CORONAVÍRUS SAÚDE PÚBLICA SAÚDE
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