segunda-feira, 9 de março de 2020

Nobreza



De pensamento. De um jovem estudante de Medicina. Julgávamos já ultrapassado, na geração jovem, um tal pensamento que vem de encontro ao nosso, de condenação do que consideramos pura diarreia criminosa nacional, trazida pelos ventos da desagregação de princípios cada vez mais implantada, por uma sociedade que repousa num mecanismo manual os seus contactos mediatizados com a vida, manipulados dessa forma e sem consistência verdadeiramente humana, porque absorventes e alienantes. Confesso que fiquei encantada com este texto de Francisco Costal sobre o problema da despenalização da eutanásia.
Ensinar para a morte ou ensinar a matar?
Altere-se o que se tiver que alterar nas faculdades de Medicina, de modo a redescobrirmos o valor da compaixão nesses momentos decisivos, a humildade de confortar ao invés de tratar a todo o custo.
OBSERVADOR, 09 mar 2020
O conceito de vida humana não está sujeito a redefinição, como também não o estão o respeito que por esta se deve ter e a sua inviolabilidade. As ideias expressas no artigo de isso de pensar opinião de Mar Mateus Costa, presidente da ANEMAssociação Nacional de Estudantes de Medicina, vão, por isso, contra os ditames da Ciência e da leges artis, e merecem ser desmistificadas.
Embora o Juramento de Hipócrates tenha caído em desuso, como explicado correctamente por Mar Mateus Costa, alguns dos desafios que se apresentavam ao médico antigo continuam actuais. Sobre a eutanásia e a morte a pedido da vítima, por exemplo, o sábio grego não poderia ter sido mais esclarecedor:Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei”. Este ensinamento está também plasmado na actual Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial, a qual afirma perentoriamente que o médico deve guardaro máximo respeito pela vida humana”. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos reforça ainda o valor da vida na sua totalidade, ditando que “o médico deve guardar respeito pela vida humana desde o momento do seu início” até ao “momento do fim da vida”. Como se tal não bastasse, o mesmo Código é muito claro sobre a ajuda ao suicídio: “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia”. Primum non nocere, “não farás o mal”, foi-me dito no primeiro dia, como estudante de Medicina, e repetido ao longo de quase três anos de faculdade.
Este tipo de asserções bastariam para que qualquer jovem estudante, em especial a presidente da ANEM, expressasse sérias desconfianças sobre esta lei, aprovada na generalidade no dia 20 de Fevereiro.
O artigo de Mar Mateus Costa torna-se particularmente gravoso quando manifesta incertezas quanto aos conceitos de “máximo respeito” e “vida humana”. Não se entende a separação elaborada no texto entre “meramente estar vivo” e “vida humana”. A presidente da ANEM passa a discussão do reino da Ciência para o reino da metáfora, de forma a levantar dúvidas sobre este problema e, a meu ver, afirmar uma posição sem se comprometer com a mesma.
No entanto, o conhecimento científico e médico são muito claros: a vida humana inicia-se no momento da fecundação (onde todos os elementos genéticos e todo o potencial para se ser humano já estão presentes) e termina com a morte cerebral. Assim, no intervalo que decorre entre estes dois momentos-chave não há mais ou menos vida, nem mais ou menos humanidade: há vida humana!
Aliás, aquilo que é subscrito por esta lei não é, como refere a presidente da ANEM, uma mera redefinição do conceito de vida humana. O legislador afirma que, havendo vida, esta pode perder dignidade e tornar-se disponível. Ora, isto é falso. Uma vida não é menos digna nem, como parece ser sugerido pelo artigo de Mar Mateus Costa, é menos vida devido às circunstâncias que a rodeiam ou ao sofrimento a que, a dado momento, possa estar sujeita. Não cabe sequer ao médico o poder que lhe é agora outorgado de afirmar que alguma vida é passível de disposição.
De facto, como sugere a presidente da ANEM, o currículo das Escolas Médicas pode e deve ser alterado para que olhemos para a vida humana, não apenas de forma científica (embora esta seja fundamental para discernir o seu começo e o seu término), mas com o espanto e o respeito além-Ciência que merece; para que ao observar um doente vejamos, em primeiro lugar, uma pessoa; e para que, chegados ao final do curso de Medicina, não vejamos a vida humana como algo que possa ser diminuído, nem digamos que um ser humano possa estar “meramente vivo” (como se estar vivo e ser- se humano pudessem ser considerados, em alguma altura, conceitos menores).
Sim, é verdade que, como classe e como sociedade, ainda temos medo de nos depararmos com o sofrimento e a morte. Altere-se, pois, o que se tiver que alterar nas faculdades de Medicina, de modo a redescobrirmos o valor da compaixão nesses momentos decisivos, a humildade de confortar ao invés de tratar a todo o custo e a importância do acompanhamento dos sós e dos sofredores. Ensinar para a morte é o exacto oposto de ensinar a matar! Nunca, em qualquer circunstância, devem os nossos professores, mestres e tutores sugerir que há momentos em que o valor da vida humana é diminuído, que podemos alterar este conceito, ou que podemos matar alguém, ainda que a seu pedido. Tal seria um verdadeiro atentado à arte médica, à relação médico- doente e ao princípio do “máximo respeito”.
Depois do parecer negativo de tantas ordens profissionais ligadas à área da saúde, incluindo o da Ordem dos Médicos, o que espera a ANEM para, de forma clara e assertiva, rejeitar a prática da eutanásia?
A dignidade, a inviolabilidade e o próprio conceito de vida humana não se redefinem. Reflectem-se, sentem-se, observam-se nas acções dos médicos, desde a Grécia Antiga até Genebra, desde Hipócrates até aos estudantes de Medicina do século XXI.

COMENTÁRIO
Carolina Nunes: Excelente artigo! Muito bem fundamentado. "A vida humana é inviolável." É o que está (e bem!) na nossa Constituição, mas não está nas Constituições da Bélgica ou Holanda. Não está lá escrito que "todos têm direito à vida" porque isso significaria que qualquer pessoa poderia dispor legalmente da sua vida. Aceitar isso implicaria aceitar o duelo, deixaríamos de punir o sobrevivente como homicida. Ou que perante pensamentos suicidas os médicos/psicólogos nada fariam para salvar o doente… já que ele poderia fazer da sua vida o que quisesse.



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