De pensamento. De um jovem estudante de
Medicina. Julgávamos já ultrapassado, na geração jovem, um tal pensamento que
vem de encontro ao nosso, de condenação do que consideramos pura diarreia
criminosa nacional, trazida pelos ventos da desagregação de princípios cada vez
mais implantada, por uma sociedade que repousa num mecanismo manual os seus
contactos mediatizados com a vida, manipulados dessa forma e sem consistência
verdadeiramente humana, porque absorventes e alienantes. Confesso que fiquei
encantada com este texto de Francisco
Costal sobre o problema da
despenalização da eutanásia.
Ensinar para a morte ou ensinar a matar?
Altere-se o que se tiver que alterar nas faculdades de
Medicina, de modo a redescobrirmos o valor da compaixão nesses momentos
decisivos, a humildade de confortar ao invés de tratar a todo o custo.
OBSERVADOR, 09 mar
2020
O conceito de vida humana não está sujeito a redefinição, como também
não o estão o respeito que por esta se deve ter e a sua inviolabilidade. As ideias expressas no artigo de isso de pensar opinião de Mar Mateus Costa,
presidente da ANEM – Associação
Nacional de Estudantes de Medicina,
vão, por isso, contra os ditames da Ciência e da leges artis, e
merecem ser desmistificadas.
Embora
o Juramento de Hipócrates tenha
caído em desuso, como explicado correctamente por Mar Mateus Costa, alguns
dos desafios que se apresentavam ao médico antigo continuam actuais. Sobre a eutanásia e a morte a pedido da vítima,
por exemplo, o sábio grego não poderia ter sido mais esclarecedor: “Mesmo
instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei”. Este ensinamento está também plasmado na actual
Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial, a qual afirma
perentoriamente que o médico deve guardar “o máximo respeito pela vida humana”. O Código Deontológico da Ordem dos
Médicos reforça ainda o valor da vida na sua
totalidade, ditando que “o
médico deve guardar respeito pela vida humana desde o momento do seu início”
até ao “momento do fim da vida”. Como se
tal não bastasse, o mesmo Código é muito claro sobre a ajuda ao suicídio: “Ao
médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia”. Primum non nocere, “não farás o mal”, foi-me dito no
primeiro dia, como estudante de Medicina, e repetido ao longo de quase três
anos de faculdade.
Este tipo de asserções
bastariam para que qualquer jovem estudante, em especial a presidente da ANEM,
expressasse sérias desconfianças sobre esta lei, aprovada na generalidade no
dia 20 de Fevereiro.
O artigo de Mar Mateus Costa torna-se
particularmente gravoso quando manifesta incertezas quanto aos conceitos de
“máximo respeito” e “vida humana”. Não se entende a separação elaborada no
texto entre “meramente estar vivo” e “vida humana”. A presidente da ANEM passa
a discussão do reino da Ciência para o reino da metáfora, de forma a levantar
dúvidas sobre este problema e, a meu ver, afirmar uma posição sem se
comprometer com a mesma.
No
entanto, o conhecimento científico e médico são muito claros: a vida
humana inicia-se no momento da fecundação (onde todos os elementos genéticos e
todo o potencial para se ser humano já estão presentes) e termina com a morte
cerebral. Assim, no intervalo que decorre entre estes dois momentos-chave não
há mais ou menos vida, nem mais ou menos humanidade: há vida humana!
Aliás,
aquilo que é subscrito por esta lei não é, como refere
a presidente da ANEM, uma mera redefinição do conceito de vida humana. O legislador afirma que, havendo vida, esta pode
perder dignidade e tornar-se disponível. Ora, isto é falso. Uma vida não é
menos digna nem, como parece ser sugerido pelo artigo de Mar Mateus Costa, é menos
vida devido às circunstâncias que a rodeiam ou ao sofrimento a que, a dado
momento, possa estar sujeita. Não cabe sequer ao médico o poder que lhe é agora
outorgado de afirmar que alguma vida é passível de disposição.
De
facto, como sugere a presidente da ANEM, o currículo das Escolas Médicas pode e
deve ser alterado para que olhemos para a vida humana, não apenas de forma
científica (embora esta seja fundamental para discernir o seu começo e o seu
término), mas com o espanto e o respeito além-Ciência que
merece; para que ao observar um doente vejamos, em primeiro lugar, uma pessoa;
e para que, chegados ao final do curso de Medicina, não vejamos a vida humana
como algo que possa ser diminuído, nem digamos que um ser humano possa estar
“meramente vivo” (como se estar vivo e ser- se humano pudessem ser
considerados, em alguma altura, conceitos menores).
Sim, é verdade que, como classe e
como sociedade, ainda temos medo de nos depararmos com o sofrimento e a morte. Altere-se, pois, o que se tiver que alterar nas
faculdades de Medicina, de modo a redescobrirmos o valor da compaixão nesses
momentos decisivos, a humildade de confortar ao invés de tratar a todo o custo
e a importância do acompanhamento dos sós e dos sofredores. Ensinar
para a morte é o exacto oposto de ensinar a matar! Nunca,
em qualquer circunstância, devem os nossos professores, mestres e tutores
sugerir que há momentos em que o valor da vida humana é diminuído, que podemos
alterar este conceito, ou que podemos matar alguém, ainda que a seu pedido. Tal
seria um verdadeiro atentado à arte médica, à relação médico- doente e ao
princípio do “máximo respeito”.
Depois do parecer negativo de tantas ordens profissionais ligadas à
área da saúde, incluindo o da Ordem dos Médicos, o que espera a ANEM para, de
forma clara e assertiva, rejeitar a prática da eutanásia?
A dignidade, a inviolabilidade e o próprio conceito de vida humana não se
redefinem. Reflectem-se, sentem-se, observam-se nas acções dos médicos, desde
a Grécia Antiga até Genebra, desde Hipócrates até aos estudantes de Medicina do
século XXI.
COMENTÁRIO
Carolina Nunes: Excelente
artigo! Muito bem fundamentado. "A vida humana é inviolável." É o que
está (e bem!) na nossa Constituição, mas não está nas Constituições da Bélgica
ou Holanda. Não está lá escrito que "todos têm direito à vida" porque
isso significaria que qualquer pessoa poderia dispor legalmente da sua vida.
Aceitar isso implicaria aceitar o duelo, deixaríamos de punir o sobrevivente
como homicida. Ou que perante pensamentos suicidas os médicos/psicólogos nada
fariam para salvar o doente… já que ele poderia fazer da sua vida o que quisesse.
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