Contadas por quem investiga e conclui. A
nós, cabe recordar, após a sua leitura, outras ocasiões de iguais lutas pelo
poder, lá nos Estados Unidos, algumas com remates bem trágicos. Afinal, Trump
não é só arrogante e rico. É também corajoso, digno adversário de outros povos
bastante influentes, por sinal. Não sei se ganhará a USA com a troca.
América, América: Trump vs Sanders ou vs Biden?/premium
Se o espírito dominante entre os
democratas é impedir um segundo mandato de Trump, faltará saber se, para parar
Trump, os radicais de Sanders estarão dispostos a votar em massa no centrista
Biden.
JAIME NOGUEIRA PINTO OBSERVADOR, 06 mar 2020,
A eleição presidencial de Novembro de 2020 é uma
eleição decisiva para a América e para o mundo. Se estivesse a escrever este
artigo há duas semanas diria, contra a generalidade das sondagens, que Donald
Trump seria reeleito. E não só por a situação económica dos Estados Unidos
ter melhorado muito neste quadriénio – no aumento do emprego, e do emprego das
“minorias”, na subida dos salários reais, na valorização dos índices de Wall
Street (que até à crise viral nunca tinham estado tão altos), com a reforma dos
tratados de comércio externo com a China e os acordos no espaço NAFTA com o
México e o Canadá –, mas também por causa das profundas e reais divisões dos
seus adversários.
A minha reserva quanto à reeleição de Trump é agora a progressão e as
consequências económicas do coronavírus que podem, pela recessão, alterar a
situação económica actual no mundo e também na América. Voltando aos adversários do
actual Presidente, aos Democratas, a divisão político-ideológica é clara; uma
divisão entre o que podemos chamar uma ala centrista, com variantes à esquerda
e à direita, e uma ala de esquerda radical.
Dados e regras do jogo
É que apesar de os Democratas e de alguns
independentes estarem unidos na rejeição de Trump, é muito difícil encontrar um
candidato que faça a convergência dessas várias rejeições. Ou seja, não se vê
bem qual será a forma de reconciliar as diversas correntes do Partido
Democrático até à Convenção, em Julho, a fim de que se realize o grande
objectivo, comum a todos os Democratas: bater Trump.
Os candidatos que podemos considerar centristas, isto
é, pertencentes ao establishment
do Partido Democrata – como Joe Biden, Michael Bloomberg (ex-republicano) e
ainda Pete Buttigieg e Amy Klobuchar –acabaram de desistir para endossar
Biden. De um modo
geral, todos eles coincidem com os radicais quanto à liberalização dos costumes
e quanto a algumas das chamadas “questões fracturantes”: são pró-aborto e imigração livre e aceitam o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Mas como, contrariamente à ala esquerda do Partido, são também liberais
em economia, isto é, globalistas, próximos
do grande capital financeiro (Bloomberg é um dos homens mais ricos da
América), aliaram-se contra Sanders, seguindo a clara hostilidade do establishment do Partido ao
candidato “socialista”.
Mas o meticuloso exame censório da nova ortodoxia não
perdoa e a Correcção também já chegou a Biden, que teve de andar a explicar e a justificar as suas
condutas passadas julgadas menos ortodoxas, como a sua oposição ao desegregation busing e o racismo
de que o acusou a sua companheira de partido e pré-candidata radical Kamala
Harris.
Elisabeth Warren e Bernie Sanders diferem dos centristas na visão da economia. Warren tem uma retórica anti-capitalista, defende o aumento dos
impostos e uma burocratização da economia através dos controlos progressivos do
Governo Federal; Sanders proclama-se socialista,
embora ressalvando que o seu socialismo é mais “dinamarquês” do que
“bolchevique- comunista”.
Mas a verdade é que o Senador Sanders, de Vermont, chegou a defender a nacionalização da
Banca, da Energia e das Manufacturas, um radicalismo muito pouco “dinamarquês”
e claramente excessivo para o gosto do comum dos americanos. E em 1988, logo a seguir ao
seu casamento com Jane Driscoll, fez uma viagem que alguns dos seus críticos
conservadores disseram ter sido “de núpcias” à União Soviética; e ainda que
a viagem não tenha sido de núpcias (Sanders era Mayor de Burlington e foi à
URSS com uma delegação de que fazia parte a sua nova consorte fazer uma
geminação com Yaroslavl), a visita ao paraíso socialista quando ainda havia
mísseis soviéticos apontados às cidades americanas continua a ser indigesta
para grande parte dos estômagos democráticos.
Radicais e moderados
Mas o discurso radical tem poder; e o poder do
discurso radical é indissociável da inquisitória Correcção Política, que domina
a Academia e os grandes media.É por isso natural que os
candidatos democratas – que precisam do endorsement
dos media liberais ou, pelo menos,
de evitar que eles os hostilizem em ano de eleições – se intimidem e se
acomodem aos fracturantes artigos de fé do novo credo.
Há, entretanto, resistências: no New
York Times de 12 de Fevereiro, Sheryl Stolberg escrevia que a ascensão
de Sanders nas primárias estava a “causar receio entre os democratas centristas
de que a inclinação do partido para a esquerda lhes pudesse custar, não só a
possibilidade de reconquistar a Casa Branca, mas também a hegemonia na Câmara
dos Representantes e a oportunidade de ganhar o Senado”.
Esta ansiedade e preocupação são compreensíveis,
sobretudo em relação aos cerca de 40 congressistas democráticos
conservadores que, em 2018, conseguiram conquistar circunscrições onde Trump
venceu, atraindo eleitorado republicano e religioso; eleitorado esse e
circunscrições essas que, se Sanders for o candidato, os Democratas poderão
perder, já que a eleição do total dos Representantes e de 1/3 do Senado acompanham
estas presidenciais.
Mas a questão de fundo e mais importante é talvez
outra. Como observou Robert W. Merry no National
Interest há, na realidade, uma crise na velha ordem mundial, ou melhor,
podemos estar a assistir ao seu colapso. E as elites dirigentes das grandes
potências ocidentais parecem não se dar conta disso e, por isso, têm vindo a
ser destronadas por movimentos e líderes emergentes aos quais, à falta de
melhor, chamam “populistas” e “demagogos”, quando não “neofascistas” ou
“neonazis”.
Isto acontece
também e muito especialmente nos Estados Unidos. Depois da vitória na Guerra
Fria e do fim da União Soviética, a pressão da imposição do modelo ideológico
“ocidental” a áreas que nada tinham que ver com a tradição histórico-cultural
do “Ocidente” – desde a Rússia ortodoxa ao Próximo Oriente islâmico ou à África
Subsaariana – levou a uma série de conflitos inúteis e, até agora, perdidos. De George W. Bush no Iraque, a Barak
Obama na Líbia, Washington perdeu milhares de homens e triliões de dólares em guerras
sem sentido; provocou a Rússia, avançando ou deixando avançar as fronteiras da
NATO até à Ucrânia e aos Estados Bálticos, criou revoltas e abandonou os
revoltosos à sua sorte.
E enquanto
isso, descurou as infra-estruturas, as fronteiras e desindustrializou a
América; e criou um fosso entre as elites financeiras e académicas da
Califórnia e da Nova Inglaterra e a América profunda do Sul e do Midwest, um
fosso não só no leque dos rendimentos mas também nos valores comunitários. Talvez
por isso e pela desatenção das elites político-partidárias ao fundo das coisas,
haja hoje uma emergência de lideranças radicais no Partido Republicano e no
Partido Democrático.
Como se viu na comédia do Impeachment,
Donald Trump faz o pleno dos dirigentes e eleitores republicanos (com a
excepção do Senador Mitt Romney). Apesar dos seus ímpetos, das suas mudanças de
humor e da sua rodagem e reciclagem de colaboradores; apesar também da raiva
quase patológica com que os grandes media
da América e da Europa o atacam, Trump mantém-se imperturbável e imutável – e
passando sempre ao contra-ataque. Não sendo, de raiz, um conservador social,
religioso e austero, tomou como seus esses valores, defendendo-os em termos de
política interna e económica. E dentro de um nacionalismo económico
e anti-globalista, é um defensor do mercado livre na América, da baixa dos
impostos, da reconstrução das infra-estruturas, da protecção das fronteiras.
Sanders, o antiglobalista da esquerda
Curiosamente, o seu ainda possível adversário em
Novembro, Bernie Sanders, também não é um entusiasta da globalização. Em 2016, logo a seguir ao
Brexit, o então candidato à nomeação do Partido Democrático comentava assim o
referendo inglês: “Sejamos claros: a economia global não está a servir a
maioria das pessoas no nosso país e no mundo. Este é um modelo económico
desenvolvido pela elite económica para favorecer a elite económica. Precisamos
de uma mudança real”.
Ainda que o argumento de Sanders possa não
corresponder exactamente à verdade e que os globalistas tenham razão quando
dizem que a globalização favoreceu economicamente mais gente no mundo do que
a que prejudicou, também não deixa de ser verdade o que escrevia na Time Ian Bremmer: que “as
grandes vítimas da globalização” foram “os blue-collars
norte-americanos, que viram os empregos na Indústria perdidos para as economias
em desenvolvimento.” E os europeus da mesma condição. Também por isso um
outro colunista, Dana Milbank, comparava no Washington
Post de Abril de 2019 os dois “velhos septuagenários” (Trump vai
fazer 74 anos e Sanders tem 78), chamando a Sanders o “Trump da
Esquerda”. Acrescentava ainda que, apesar das profundas diferenças
ideológicas e de percurso de vida, Trump e Sanders tinham estilos parecidos:
eram “ambos vociferantes e pouco sorridentes, ambos anti-establishment e anti-media, e ambos absolutamente
convencidos da própria razão.” O seu confronto seria o confronto de duas Américas
radicais, opostas entre si mas igualmente opostas a uma outra América, a
América do establishment.
Surpresa na
Super Terça-Feira
Foi neste quadro idilicamente radical que caiu a Super Tuesday, e com ela a ressurreição
de Biden. Depois de umas primeiras
primárias quase desastrosas, o ex-vice-presidente de Barack Obama iniciou a
sua recuperação na Carolina do Sul e veio depois a vencer numa dezena de
Estados em disputa. As desistências de Buttigieg e Klobuchar ajudaram-no e a retirada
de Bloomberg, que estava claramente a tentar “comprar” a eleição por alguns milhões mas
que acabou por endossar Biden, fez o resto. Nos Estados
do Sul, a sua grande base de apoio foram os afro-americanos.
Em contrapartida, Sanders continua forte entre os eleitores mais jovens e não
está mal entre os chamados Latinos – brancos de origem hispânica. Elisabeth Warren, senadora pelo Massachussets,
que ficou em terceiro lugar no seu Estado, depois de Biden e Sanders, acabou
agora de desistir.
O Socialismo e
os democratas na América
Sanders, “o socialista”, não é filiado no Partido Democrático. A história dos
socialistas no Partido Democrático começa em 1934, quando Upton Sinclair, um famoso escritor socialista
utópico, autor de romances neo-realistas, se apresentou como candidato
democrático para Governador da Califórnia. Até aí os radicais
tinham-se mantido fora do sistema bipartidário e o candidato do Partido
Socialista norte-americano, em 1932, tinha tido apenas 2%. Nos anos 30,
seguindo o modelo de alianças da esquerda europeia, entre comunistas,
socialistas e radicais, as organizações sindicalistas americanas alinharam com
o Partido
Democrático de F.D. Roosevelt e apoiaram a ala esquerda do New Deal.
Foi uma relação instável: em 1948, quando Trumman virou à direita e iniciou a contenção da União Soviética e a Guerra Fria,
o seu vice-presidente, Henry Wallace, tentou um terceiro partido à esquerda. Nos anos 60, com a guerra do Vietname, repetiu-se a cena por causa
da posição intervencionista de Lyndon Johnson, com vastos sectores da esquerda a apoiarem um terceiro partido – o Peace and Freedom Party –, enquanto a “nova
esquerda” optava pela rebelião e pela contestação de rua. Em 72, com
George Mc Govern, o partido volta a virar à esquerda e teve uma esmagadora
derrota eleitoral contra Nixon. O problema é que esta radicalização à esquerda dos Democratas
custou-lhes votos, num eleitorado que estava longe das causas radicais. Mas a
autonomização de candidaturas pessoais ou partidárias também sempre foi
perigosa. O Green
Party de Ralph Nader foi a razão por que Al Gore perdeu a Flórida – e a Presidência – em 2000, contra George W.
Bush.
O sistema bipartidário tem penalizado sempre os
candidatos que têm dissidências na sua área político-ideológica: em 1992, George H.
Bush perdeu contra Bill Clinton, também pela concorrência no seu campo do conservador independente Ross Perot. Por isso a alternativa
para os movimentos mais integristas ou radicais tem sido optar pela “longa
marcha” e tomar as estruturas por dentro.
A “longa
marcha” dos intelectuais conservadores no Partido Republicano, a partir da
fracassada campanha de Barry Goldwater, em 1964, teria reflexos muito
mais tarde, no reaganismo. O mesmo sucederia depois
com o Tea Party. Trump acabou por triunfar na nomeação, em 2016,
também graças a presença dentro do Partido de grupos mais ortodoxos, como os Evangélicos e oTea
Party.
O duelo final
Sem dúvida que a partir de agora – e talvez até à
Convenção de Julho – serão Biden e Sanders quem vai disputar a guerra
pela nomeação democrática. Sanders pode ser visto como socialista mas também
como herdeiro da linha progressista radical do New
Deal. Houve candidatos democráticos, como George McGovern e Michael
Dukakis, que seguiram essa linha radical. E perderam.
Biden é agora o candidato do establishment
do Partido para parar Trump. E Buttigieg e Bloomberg, que
se candidataram ao posto – até porque Biden, com as suas permanentes gaffes
e os rabos de palha dos negócios do filho, na Ucrânia e por outras paragens, se
mostrava claramente vulnerável ao escândalo –, mal fracassaram,
apressaram-se a endossá-lo. Mas é
de esperar que a luta entre Biden e Sanders prossiga. Até porque, com os votos
e os delegados da Califórnia, Sanders acabou por não ficar muito atrás de Biden
e é provável que os votantes de Elisabeth Warren, que agora desistiu sem
endossar nenhum dos candidatos, venham a reforçar as suas hostes. De qualquer modo, se é
certo que o espírito dominante entre os democratas é impedir um segundo mandato
de Trump, faltará saber se, para parar Trump, os radicais de Sanders estarão
dispostos a votar em massa no centrista Biden, ou se os centristas de Biden
estarão dispostos a votar em massa no radical Sanders.
A concluir, é interessante notar, como Tucker Carlson,
comentador político da FOX News, que o establishment
do Partido Democrático é muito mais orgânico e disciplinado do que o do Partido
Republicano. Os Republicanos, em 2016, desfizeram-se entre candidatos do
sistema, candidatos próximos, que competiram entre si, dando ocasião a que
Trump os batesse um a um. Entre os Democratas, quando se viu que Biden, apesar
das suas vulnerabilidades, estava à frente, todos desistiram para impedir o outsider Sanders de vencer.
COMENTÁRIOS
Luís palma de
jesus: Não
lerei. É premium. Uma forma engenhosa de sonegar leitores. Obviamente, nem o
badalado «1%», o percentual referência da Opressão, irá ler JNP.
Maria Nunes: Excelente.
Ana Brito: Porque é que o Coronavírus tem de ter impacto negativo
na governação de Trumm mmp? Não há outros países com o mesmo problema? Não
reagiram atempadamente tomando em primeiro lugar as medidas que depois outros
imitaram? Já se sabe que a CS tão avessa ao PR irá aproveitar ao máximo
quaisquer vítimas. Mas com que resultados? qual é atualmente a sua
credibilidade, após liderarem como parceiros e aliados do partido democrata
quatro investigações que não deram em nada, a não ser a convicção na opinião
pública americana de que promovem uma agenda oculta, a favor das elites e contra
a classe média? A enorme perda de audiências para isso aponta!
Glorioso SLB: Obrg
professor por esta lição, interpretação e comentário. É por estes artigos q
pago o Observador. Acho q lhe faltou falar de Hillary Clinton. Nunca a associei
a grande estadista, smp mto plástica/falsa. E foi tb a grd aposta do
establishment. O voto em Sanders foi há 4 anos e será agora tb mais militante.
Se Biden ganhar, ñ sei se os americanos ñ pensaram q entre um populista c
excelentes resultados, ou um “insider” q pensa o mesmo q Trump, ñ valerá a pena
deixar como está.
José Carlos Lourenço: Continuas
activo, dinâmico censor !!!!????
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