Sempre me pareceram ridículas as poses fotográficas nas visitas de
Estado, os apertos de mão forçados, a falta de naturalidade que traduzem esses
gestos convencionais, que os fotógrafos das reportagens impõem, mas, nesta era
de saliências logo transmitidas pelo éter, os chefes que se visitam não
poderiam fazer outra coisa senão posar para a foto, como é da praxe. É fácil
condenar quando se está de fora, mas esses sapos são fruto da época, que todos
têm forçosamente que engolir, o próprio Trump se sujeita, lá pelas bandas da
Ásia, como se tem visto, também cínico ou subserviente, conforme lhe convém. Daí,
o achar demasiado severo este texto de Pacheco Pereira, próprio de quem tem
como responsabilidade apenas o estar de olho atento, e de moral em destaque,
com os burilados literários de mistura, sabendo que, se tivesse ele que
governar, faria necessariamente o mesmo e que a sua crítica não passa de pura
empáfia rancorosa contra os que governam os mundos. Mas o que também me chocou
no seu texto foi a comparação “mau como só uma criança pode ser”, a
propósito de Trump. Com tanta “maldade” adulta que se verifica a cada passo, o
raio da comparação criou-me engulhos, pela extraordinária perfídia. E trouxe-me
uma vez mais à memória aquela “Quadratura” em que, de papel e lápis em punho,
PP provou, para os parceiros e as câmaras, que a vitória de Passos Coelho nas
eleições de 2015, não era mais que derrota, numa outra perspectiva, criada ali,
ante o pasmo e a indignação dos ingénuos, pelo cinismo e fraude transparentes,
e isso não o envergonhou, na sua ilha deserta, bom servo, ele próprio, do
Senhor das Moscas.
OPINIÃO
Os gnomos de Trump e o Senhor das Moscas
Envergonha-me a cena de submissão que os dirigentes
europeus da UE e da NATO têm feito diante de um Trump que os insulta, ataca,
ameaça.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 14 de Julho de 2018
Não costumo muito ficar
envergonhado com a atitude de outros, em particular quando não tenho muitas
expectativas sobre o seu comportamento. Mas envergonha-me a cena de submissão que os dirigentes europeus da UE e da
NATO têm feito diante de um Trump que os insulta, ataca, ameaça, mente
descaradamente, gaba-se, batendo no peito como os gorilas, faz afirmações
inaceitáveis, chantageia-os com tomadas de posição de enorme gravidade para a
paz e segurança dos seus países, mostra desprezo pelos seus acordos e alianças,
interfere na política interna das democracias (nas autocracias e ditaduras nem
uma palavra), ou seja, faz tudo o que não deve fazer por nenhuma regra
diplomática, de bom senso, de educação, e eles sorriem, baixam a cabeça,
apressam-se a correr para o lugar na fotografia, como gnomos que são.
Ao lado do que aconteceu nesta
visita europeia de Trump, as declarações do G7 parecem um acto de heroicidade,
pelos vistos já esquecido. Ver
Theresa May ao lado de Trump a comportar-se como uma ovelhinha, a permitir que
ele minta descaradamente sobre o que disse no dia anterior, a acusar os
jornalistas do Sun de manipular as suas
palavras, quando estes têm a
entrevista gravada e passaram as partes controversas logo a seguir para mostrar
quem mente, a aceitar os elogios do mesmo homem que lhe provocou no dia
anterior consideráveis estragos num poder já de si muito frágil, diz muito da
covardia e da hipocrisia da senhora.
Mas o que é mais grave é que, nessa entrevista a dois, Trump recusou-se
a responder a uma pergunta da CNN por ser “fake news”, para
responder a Fox News “real news”. May
estava ao lado, nem piou, nem sequer tomou a iniciativa de dar ela a palavra ao
jornalista da CNN, para mostrar a diferença. Nada. Mas a verdade é que os
jornalistas presentes continuaram como se nada se passasse. Havia um ambiente
de boa disposição, sorrisinhos, anedotas, tudo bons amigos, babados por estar
diante do homem mais poderoso do mundo. Uma vergonha esta complacência com
Trump e os seus abusos, que mostra como se pode ser o bruto que ele é e passar
impune.
O que faz falta é que alguém
diante de Trump e em directo lhe responda de forma clara e inequívoca, que se
levante e lhe diga algumas verdades, já que não conseguirá dizer muitas, porque
será calado e escoltado para fora da sala. Que faça aquilo que os anarquistas
chamavam “a propaganda pelo exemplo”, uma das coisas mais poderosas quando se
pode fazer diante de milhões de pessoas que estão a ver ou vão ver, como seja
dizer esta simples frase: “O senhor Presidente, sua Excelência, Sir, sua
Majestade, sua Eminência, Grande Negociador, etc., por que razão o senhor mente
tão sistematicamente, por que razão é um mentiroso?” Não lhe perguntem sobre
políticas, que ele aí vai dizer o que quer, dependendo de quem está ao lado e,
no dia seguinte, muda tudo na solidão do Twitter ou vice-versa. Mas duvido que
hoje abundem as pessoas que possam ter estatuto para estar diante dele, sejam
governantes, sejam jornalistas, e que tenham essa pequena coragem, nem muito
especial, nem muita coragem, de não ter transigência, nem complacência com
Trump e o confrontar.
Eu admito que eles possam
ter medo de Trump e, pensando bem, não é uma atitude desprovida de sentido,
porque o homem é muito perigoso. Mas o que estes gnomos fazem está muito acima
do medo, é um exercício que
mistura reverência ao poder, subserviência, e pura e simplesmente vaidade por
estarem ali ao lado do Presidente dos EUA, a bater nas costas uns dos outros, e
pensando: “Que importantes que nós somos.” Eles não gostam de Trump, riem-se
dele em privado, denunciam-lhe as grosserias entre amigos, contam as anedotas
malévolas sobre as Stormy Daniels da vida dele, sugerem que ele está nas mãos
de Putin, mas lá, diante dele, perdem a bazófia toda.
Desde o primeiro dia que
penso e escrevo que com Trump só resulta a intransigência total. Nem salamaleques,
nem sorrisos, nem sequer vontade de estar perto. As pessoas dignas do Reino
Unido estão na rua a protestar, sob a imagem cruel do balão representando um
bebé Trump birrento, mau como só uma criança pode ser.
No fundo, estamos na pátria de William Golding, o autor de O Senhor das Moscas, que retrata
como um grupo de crianças regressa à selvajaria quando deixados sós numa ilha.
Levantem bem alto o balão e passeiem-no bem visível diante de Theresa May e dos
seus confrades europeus, crescidos no corpo e na idade e pequeninos em tudo,
servos do Senhor das Moscas.
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