segunda-feira, 23 de julho de 2018

Quem sabe, sabe



António Bagão Félix, prudente e sábio, honesto e arguto, continua a elucidar-nos com os seus argumentos enriquecidos por breves anotações irónicas em torno da língua e dos seus enredos estilísticos e botânicos, para precisar com mais acuidade (com perdão do pleonasmo) o seu pensamento certeiro. Do primeiro texto retiro a frase que nos dá o teor da temática económica sobre que se debruça - uma recente lei económica insensata: “A lei agora aprovada é, mais uma vez, uma vitória da política circunstancial, da visão de curto-prazo e de agrado populista.” – mais perceptível para os habitués da Finança, o que não é – infelizmente – o meu caso, mais disponível para a diversão dos exemplos linguísticos esclarecedores. Do segundo texto, o tom é ainda mais amargo, provando como estamos entregues “aos bichos”, e Bagão Félix explica porquê, severo e grave, a propósito de um cambaleio ciático encobrindo uma realidade mais alegremente vivida, por uma personalidade europeia responsável. Quanto a mim, apreciadora do papel de Nero desempenhado por Pedro Ustinov no “Quo vadis”, pensei logo quanto aos génios se deve desculpar as pequenas fraquezas, pois valem mais do que isso - caso de Nero – Pedro Ustinov - compondo versos em plenas orgias, perante as gentes submissas ao seu domínio tirânico. Por isso há que compreender Juncker, como fez o nosso António Costa, nos requintes da nossa educação de subserviência e hábito do disfarce.
Talvez, é certo, isso traduza o novo “incêndio romano” para breve, alargado o domínio ao resto da Europa aparentemente Unida: “A Europa, sem verdadeira liderança, é lenta e preguiçosa nos actos, atrasada nas decisões, prolixa no palavreado. Na União (!), todos se demarcam de todos! Todos iguais, todos diferentes. Todos solidários, todos egoístas. Todos unidos, todos de costas voltadas. Todos em cadeia, todos encadeados.”
É o que diz Bagão Félix, e alguns, menos escrupulosos, não se importarão com essa, para nós, tragédia. Haverá sempre outras alternativas. Outras “sinergias”.


I - OPINIÃO
No endividar-se é que pode estar o ganho!
A lei agora aprovada é, mais uma vez, uma vitória da política circunstancial, da visão de curto-prazo e de agrado populista.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 13 de Julho de 2018
Há abordagens económicas que contrariam o senso comum. A questão é ainda mais estranha quando se transformam em leis. Refiro-me concretamente à aprovação parlamentar de um diploma que instituiu a obrigatoriedade de as instituições bancárias reflectirem totalmente e em todas as circunstâncias a descida da taxa Euribor nos contratos de crédito à habitação. Até agora esta descida tinha como limite a taxa de 0%. A partir desta lei, pode haver juros negativos sempre que o valor do spread contratualizado seja inferior à taxa (negativa) Euribor que serve de referência no mútuo. Nestas circunstâncias, ficou previsto que o valor a pagar pelo banco ao cliente devedor constitua um crédito que será abatido quando os juros a pagar passarem a ter um valor positivo.
Há um ponto que, em qualquer caso, importa assinalar: nos contratos de crédito à habitação em curso à data da entrada em vigor da lei, as alterações previstas aplicar-se-ão apenas às prestações vincendas e não já vencidas.
O Presidente da República promulgou a lei em 29 de Junho, referindo que assim fez tendo em consideração “o consenso político alargado” (foi aprovada na AR com votos favoráveis de todos os partidos, excepto do PSD que se absteve…), chamando, porém, a atenção para “a necessidade de ajustamentos de vária ordem, técnicos e jurídicos”.
Bem sei que houve práticas bancárias, também de difícil compreensão e aceitação, no modo como bancos agiram em ciclos de taxas de juro elevadas relativas a créditos hipotecários, nem sempre sancionadas ou prevenidas pelas autoridades de supervisão. Todavia, isso não implica a subversão da lógica financeira e o fundamento da existência de bancos enquanto intermediadores entre quem poupa e quem investe.
Tanto quanto se sabe (e foi referido pelo Banco de Portugal) não existem nem foram desenvolvidas, no espaço da União Europeia, “iniciativas legislativas ou regulamentares destinadas a fixar orientações expressas quanto à forma de aplicação das taxas de juro negativas nos contratos de crédito à habitação”. A vice-governadora afirmou mesmo que “são águas nunca dantes navegadas”.
Não é preciso ser adivinho para prever uma alteração da política de concessão de crédito à habitação por parte do sector bancário para que, no futuro, não haja situações de juros negativos. Ou seja, quem vai pagar esta singularidade portuguesa são os novos contratos e, já agora, quem sabe se não surgirão novas comissões e afins para amortecer os efeitos da prática agora aprovada.
Há ainda um ponto que não deixa de ser paradoxal e, de alguma perspectiva, também regressivo. A maioria dos casos que podem vir a beneficiar desta lei são os que conseguiram negociar spreads mais baixos, a que não é alheia a maior capacidade de amortização dos empréstimos por maior rendimento ou património do mutuário.
Incentivado por uma política europeia de dinheiro barato e pela enorme monetarização da economia por força da expansão monetária praticada pelo BCE, é caso para se dizer viva o endividamento, abaixo o aforro!
A poupança é, desde há muito, a grande enjeitada da economia. Aliás, é recorrentemente subestimada e não faz parte directamente das bitolas europeias. Mas é de senso comum perceber-se a sua importância para o investimento e progresso de um país.
Com dinheiro ilusoriamente barato, os bancos viraram as costas ao aforrador clássico. A própria política fiscal não favorece o aforro, antes estimula o consumo e o endividamento. Os últimos dados estatísticos conhecidos evidenciam uma nova subida do crédito às famílias e, ao contrário, uma taxa de poupança quase residual (5,4% do rendimento disponível). Ao mesmo tempo, estimulou-se o investimento em produtos de maior risco apresentados como grandes oportunidades de obter rendimentos mais elevados.
A lei agora aprovada é, mais uma vez, uma vitória da política circunstancial, da visão de curto-prazo e de agrado populista. E, também, de uma certa visão maniqueísta que acha que poupar é quase pecaminoso. Daí a sua aprovação sem votos contra! Ao invés, tecer políticas públicas que favoreçam o aforro exige leis e acções mais consistentes e estratégicas. Acontece que isso não rende votos nem dá popularidade, evidentemente!
Não colocando aqui a questão em termos quantitativos, o bizarro de tudo isto é que não faz qualquer sentido que a instituição de crédito possa ter de pagar a quem emprestou, erodindo completamente a noção de remuneração de risco inerente a um contrato de mútuo.
Ao mesmo tempo e numa conjuntura como a actual, quem tem as suas poupanças num banco além de nada receber (em depósitos à ordem e tendencialmente a prazo, em termos líquidos de IRS), ainda pode ter de pagar sob a forma de comissões de vária ordem (manutenção, transferências, etc.), em regra regressivas, pagando percentualmente mais quem menos tem.
Em suma, casos haverá em que quem deve ao banco é remunerado e quem poupa tem de pagar! Até tinha piada se fosse uma anedota. Mas não, é mesmo lei.

IPSIS VERBIS
PARADOXO: juros negativos
PLEONASMO: expectativa futura
PALÍNDROMO (capicua de letras): a Daniela ama a lei? Nada!
HIPÉRBOLE:  a propósito da noção de unanimidade: “lançámos o repto aos nossos leitores, para nos dizerem quem vencerá o prémio de melhor jogador do Mundo no presente ano. A escolha foi unânime: Cristiano Ronaldo, com quase 70% dos votos” (em jornal Record)
METÁFORA: o dinheiro é uma metáfora, porque quase sempre é uma coisa que significa outra coisa…
SCIENTIA AMABILIS
Amendoim (Arachis hypogaea L.)
Por falar em juros de depósitos que, agora, ou são zero ou peanuts, umas breves linhas sobre amendoins. Botanicamente, trata-se de uma planta leguminosa oriunda da América do Sul (Argentina, Bolívia e Brasil). As flores amarelas desta herbácea rasteira são minúsculas e, uma vez polinizadas, penetram no solo, onde o legume ou vagem se desenvolve subterraneamente. O pedúnculo floral curva-se para baixo, continuando a crescer até enterrar o ovário da flor. O nome amendoim vem da família linguística indígena tupi-guarani por via da expressão mãdu'bi (ou mãdu'i) que significa precisamente "enterrado". Os amendoins que comemos são as sementes contidas numa casca dura.
Popularmente, o amendoim é também conhecido por alcagoita (Algarve), mancarra (Guiné), jinguba (Angola) e, ainda, cacahuete (cacau da terra). Segundo a FAO, em 2016, os primeiros dois produtores mundiais, de um total de 46 milhões de toneladas, são a China e a Índia, com 38% e 16%, respectivamente.
Vai uma cerveja e amendoins?

II- OPINIÃO
Será a ciática europeia contagiosa?
Eis, diante de nós, um pormenor desta Europa política. Guiada não por estadistas, mas por políticos vulgares que não se dão ao respeito.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 20 de Julho de 2018
O homem cambaleante, mas bem-disposto, afinal, estava sofrendo de um súbito ataque de ciática. Assim foi diagnosticado por António Costa, pelo chefe de governo holandês e pelo próprio porta-voz da Comissão Europeia, este em jeito de boletim clínico, assim todos nos tratando como néscios europeus. Amparado pelos membros superiores de altos dignitários de Estados-membros mais superiores ou mais inferiores, Jean-Claude Juncker conseguiu descer do palanque e caminhar sem antes dar os seus etílicos beijos. Uma ciática de muitos graus!
Eis, diante de nós, um pormenor desta Europa política. Guiada não por estadistas, que esses já quase não existem, mas por políticos vulgares que não se dão ao respeito, nem servem de exemplo credível. Tudo boa rapaziada, numa qualquer função ou disfuncionalmente, entre beijos, abraços e cachecóis de futebol, cheios de “non-papers” e, não raro, vazios de ideias e estratégias. Nas cimeiras aparecem-nos sempre entre sorrisos tão falsos quanto enfastiados, tweetando das salas e corredores para o mundo, fotos de família aparentemente unida, decisões sem decisão. Aparentam andar felizes, entre bolinhos, croquetes, bebidas espirituosas e amendoins. A mediocridade tomou conta do directório europeu.
Esta é a Europa que nos querem prodigalizar. Esta é a Europa que dão a entender aos jovens de hoje como sendo o seu farol à distância de uns euros com que tudo julgam ou fingem comprar.
O poliedro europeu atingiu a sua plenitude de imperfeição. Países do Leste são sinceros: só lá estão pelo dinheiro e quanto ao resto estão-se borrifando para as regras básicas da democracia. Na Hungria, o músculo é que conta e ninguém cora pela criminalização da ajuda a desvalidos imigrantes. Na Polónia, essa coisa da separação de poderes foi ao ar, apesar da fingida ameaça de Bruxelas. Visegrado é o itinerário da nova peregrinação contra os que não são deles. A Alemanha já não é o que era e a chanceler – antes odiada como o diabo personificado, ora louvada como o exemplo do equilíbrio e sensatez – limita-se a mudar a cor da jaqueta em razão dos seus aliados e adversários internos ou externos. O Reino Unido procura, com um "Brexit" voluntarista e atamancado, ficar fora da União, mas com um pé dentro, para substituir o estar na União, mas com um pé fora. A primeira-ministra britânica anda aos papéis sem ninguém a avisar do papel que está a fazer! O Presidente francês, sem o ar soberbo e presunçoso dos que o precederam, lá vai tentando aparentar que a França ainda é importante. No Sul, a música é variada e para todos os gostos. Nós, sempre a fazer o papel do bom aluno, seja no ciclo austeritário, seja no ciclo reversitário, com os salamaleques do costume perante figurinhas de doutos comissários e outros altos funcionários de uma bem instalada Comissão. Em Espanha, depois do justo castigo de corruptos e corruptores, está agora uma "geringonça" de largo espectro, entre engasgadelas sobre as autonomias e independentismos e mais preocupada com magnos problemas para o bem-estar da população, como são a “estrutura” do Vale dos Caídos ou as inadiáveis reformas fracturantes. Na Itália, eis a total imprevisibilidade de um governo que olha para a Europa como a Antárctida olha para a Amazónia. Quanto à Grécia desgravatada, a Europa convenceu-a que tem futuro e lá anda a esquerda do poder a fingir que o é.
Encharcada em questões de minorias ruidosas e mediáticas, por mais respeitáveis que sejam, a Europa esquece os problemas das maiorias sem voz europeia. Possuída pelas políticas monetárias e subjugada ao magno poder banqueiro, é incapaz de ir além de meras declarações românticas sobre os paraísos e escapatórias fiscais. Nesta Europa decadente de valores, axiologicamente relativista, espiritualmente desertificada, só parecem contar os euros como forma de exercício de poder e permuta de influências. O financeiro domina o político e determina o económico. O social – apesar dos discursos – não é uma premissa, antes um resultado meramente adjectivo.
Esta Europa, sem verdadeira liderança, é lenta e preguiçosa nos actos, atrasada nas decisões, prolixa no palavreado. Na União (!), todos se demarcam de todos! Todos iguais, todos diferentes. Todos solidários, todos egoístas. Todos unidos, todos de costas voltadas. Todos em cadeia, todos encadeados.
Sem visão e sem liderança, a União caminha aos solavancos, não em geometria variável, mas em cacofonia assimétrica. Incapaz de responder, em tempo certo, aos desafios da globalização, a Europa deste alucinante inverno demográfico menospreza a ideia de família e passa de Velho Continente a Continente velho, no nevoeiro de crescente irrelevância. Entre um Trump errático e disruptivo, um Putin ardiloso e jogador de xadrez e um dragão chinês paciente, estratégico e insensível aos direitos humanos, Juncker definiu, ainda que burlescamente, o estado da “Nação Europeia”: sem rumo, trôpega, embriagada com tanta ciática institucional. Será contagiosa?
IPSIS VERBIS
CITAÇÃO: “Ninguém me encomendou o sermão, mas precisava de desabafar publicamente. Não posso mais com tanta lição de economia, tanta megalomania, tão curta visão do que fomos, podemos e devemos ser ainda, e tanta subserviência às mãos de uma Europa sem valores" (Miguel Torga em 1993)
JARGÃO EUROPEU:  Arquitectura organizacional. Geometria variável. Perspectiva integracional e multifocal. Alocar, assignar e impactar. Sinergias e imparidades. Envelhecimento activo. Relatórios de iniciativa própria. Memorando de Entendimento. Adicionalidade. Alavancagem. Estereótipos de género. Bem-estar dos animais. Comitologia. Cooperação estruturada permanente. Mecanismo único de resolução. Abordagem managerial e societal. Empoderamento. Governança. Incumbente e colateral. Etc., etc.
GREGUERIAS: “Os que vêm da chuva trazem cara de copo de água” (isto a propósito da molha de Macron e da Presidente croata na entrega das medalhas no Mundial). Já Putin, indelicadamente, tinha um guarda-chuva só para ele, pelo que se poderia aplicar-lhe uma outra greguería de Ramon de la Serna: “A água não tem memória: por isso é tão limpa”
SCIENTIA AMABILISFoto
Vinha (Vitis vinifera L.)
A vinha (videira ou parreira) é uma das sete espécies vegetais da Bíblia, citada logo no Génesis. A Vitis vinifera é a espécie de videira mais cultivada para a produção do vinho na Europa. Trata-se de uma trepadeira cultivada em todas as regiões de clima temperado, com um tronco de forma muito retorcida, folhas grandes e repartidas em cinco lóbulos pontiagudos e flores esverdeadas em ramos. O fruto (a uva) é uma baga com as sementes livres e dispersas no mesocarpo. O cultivo da videira para a produção de vinho é uma das actividades mais antigas da civilização, havendo muitas espécies e múltiplas variedades denominadas castas. Não sei quais serão as castas preferidas pelo actual presidente da Comissão Europeia.


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