António Bagão Félix, prudente
e sábio, honesto e arguto, continua a elucidar-nos com os seus argumentos
enriquecidos por breves anotações irónicas em torno da língua e dos seus
enredos estilísticos e botânicos, para precisar com mais acuidade (com perdão
do pleonasmo) o seu pensamento certeiro. Do primeiro texto retiro a frase que
nos dá o teor da temática económica sobre que se debruça - uma recente lei económica
insensata: “A lei agora aprovada é, mais uma vez, uma vitória da política
circunstancial, da visão de curto-prazo e de agrado populista.” – mais perceptível para os habitués da
Finança, o que não é – infelizmente – o meu caso, mais disponível para a diversão
dos exemplos linguísticos esclarecedores. Do segundo texto, o tom é ainda mais
amargo, provando como estamos entregues “aos bichos”, e Bagão Félix explica
porquê, severo e grave, a propósito de um cambaleio ciático encobrindo uma
realidade mais alegremente vivida, por uma personalidade europeia responsável. Quanto
a mim, apreciadora do papel de Nero desempenhado por Pedro Ustinov no “Quo
vadis”, pensei logo quanto aos génios se deve desculpar as pequenas fraquezas,
pois valem mais do que isso - caso de Nero – Pedro Ustinov - compondo versos em
plenas orgias, perante as gentes submissas ao seu domínio tirânico. Por isso há
que compreender Juncker, como fez o nosso António Costa, nos requintes da nossa
educação de subserviência e hábito do disfarce.
Talvez, é certo, isso traduza o novo “incêndio romano” para breve,
alargado o domínio ao resto da Europa aparentemente Unida: “A Europa,
sem verdadeira liderança, é lenta e preguiçosa nos actos, atrasada nas
decisões, prolixa no palavreado. Na União (!), todos se demarcam de todos!
Todos iguais, todos diferentes. Todos solidários, todos egoístas. Todos unidos,
todos de costas voltadas. Todos em cadeia, todos encadeados.”
É o que diz Bagão Félix, e
alguns, menos escrupulosos, não se importarão com essa, para nós, tragédia.
Haverá sempre outras alternativas. Outras “sinergias”.
I - OPINIÃO
No endividar-se é que pode estar o
ganho!
A lei agora aprovada é, mais
uma vez, uma vitória da política circunstancial, da visão de curto-prazo e de
agrado populista.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 13 de Julho de 2018
Há abordagens económicas que contrariam o senso comum. A questão é
ainda mais estranha quando se transformam em leis. Refiro-me
concretamente à aprovação parlamentar de um diploma que instituiu a
obrigatoriedade de as instituições bancárias reflectirem totalmente e em todas
as circunstâncias a descida da taxa Euribor nos contratos de crédito à
habitação. Até agora esta descida tinha como limite a taxa de 0%. A partir
desta lei, pode haver juros negativos sempre que o valor do spread contratualizado
seja inferior à taxa (negativa) Euribor que serve de referência no mútuo.
Nestas circunstâncias, ficou previsto que o valor a pagar pelo banco ao cliente
devedor constitua um crédito que será abatido quando os juros a pagar passarem
a ter um valor positivo.
Há um ponto que, em qualquer
caso, importa assinalar: nos contratos de crédito à habitação em curso à
data da entrada em vigor da lei, as alterações previstas aplicar-se-ão apenas
às prestações vincendas e não já vencidas.
O Presidente da República promulgou a lei em 29 de Junho, referindo que
assim fez tendo em consideração “o consenso político alargado” (foi aprovada na AR com votos favoráveis de
todos os partidos, excepto do PSD que se absteve…), chamando, porém, a atenção
para “a necessidade de ajustamentos de vária ordem, técnicos e
jurídicos”.
Bem sei que houve práticas
bancárias, também de difícil compreensão e aceitação, no modo como bancos
agiram em ciclos de taxas de juro elevadas relativas a créditos hipotecários,
nem sempre sancionadas ou prevenidas pelas autoridades de supervisão. Todavia,
isso não implica a subversão da lógica
financeira e o fundamento da existência de bancos enquanto intermediadores
entre quem poupa e quem investe.
Tanto quanto se sabe (e foi
referido pelo Banco de Portugal) não
existem nem foram desenvolvidas, no espaço da União Europeia, “iniciativas legislativas ou regulamentares
destinadas a fixar orientações expressas quanto à forma de aplicação das taxas
de juro negativas nos contratos de crédito à habitação”. A vice-governadora afirmou mesmo que “são
águas nunca dantes navegadas”.
Não é preciso ser adivinho
para prever uma alteração da política de concessão de crédito à habitação por
parte do sector bancário para que, no futuro, não haja situações de juros
negativos. Ou seja, quem vai pagar esta singularidade portuguesa são os novos
contratos e, já agora, quem sabe se não surgirão novas comissões e afins para
amortecer os efeitos da prática agora aprovada.
Há ainda um ponto que não
deixa de ser paradoxal e, de alguma perspectiva, também regressivo. A maioria
dos casos que podem vir a beneficiar desta lei são os que conseguiram
negociar spreads mais baixos, a que não é alheia a maior
capacidade de amortização dos empréstimos por maior rendimento ou património do
mutuário.
Incentivado por uma política europeia de dinheiro barato e pela enorme
monetarização da economia por força da expansão monetária praticada pelo BCE, é
caso para se dizer viva o endividamento, abaixo o aforro!
A poupança é, desde há muito, a grande enjeitada da economia. Aliás, é
recorrentemente subestimada e não faz parte directamente das bitolas europeias.
Mas é de senso comum perceber-se a sua importância para o investimento e
progresso de um país.
Com dinheiro ilusoriamente barato, os bancos viraram as costas ao
aforrador clássico. A própria política fiscal não favorece o aforro, antes
estimula o consumo e o endividamento. Os últimos dados estatísticos conhecidos
evidenciam uma nova subida do crédito às famílias e, ao contrário, uma taxa de
poupança quase residual (5,4% do rendimento disponível). Ao mesmo tempo, estimulou-se
o investimento em produtos de maior risco apresentados como grandes
oportunidades de obter rendimentos mais elevados.
A lei agora aprovada é, mais uma vez, uma
vitória da política circunstancial, da visão de curto-prazo e de agrado
populista. E, também, de uma certa visão maniqueísta que acha que poupar é
quase pecaminoso. Daí a sua aprovação sem votos contra! Ao
invés, tecer políticas públicas que favoreçam o aforro exige leis e acções mais
consistentes e estratégicas. Acontece que isso não rende votos nem dá
popularidade, evidentemente!
Não colocando aqui a questão
em termos quantitativos, o bizarro de tudo isto é que não faz qualquer sentido
que a instituição de crédito possa ter de pagar a quem emprestou, erodindo
completamente a noção de remuneração de risco inerente a um contrato de mútuo.
Ao mesmo tempo e numa conjuntura como a actual, quem tem as suas
poupanças num banco além de nada receber (em depósitos à ordem e
tendencialmente a prazo, em termos líquidos de IRS), ainda pode ter de pagar
sob a forma de comissões de vária ordem (manutenção, transferências, etc.), em
regra regressivas, pagando percentualmente mais quem menos tem.
Em suma, casos haverá em que
quem deve ao banco é remunerado e quem poupa tem de pagar! Até tinha piada se
fosse uma anedota. Mas não, é mesmo lei.
IPSIS
VERBIS
PARADOXO: juros negativos
PLEONASMO: expectativa futura
PALÍNDROMO (capicua de letras): a Daniela
ama a lei? Nada!
HIPÉRBOLE: a propósito da noção de unanimidade: “lançámos
o repto aos nossos leitores, para nos dizerem quem vencerá o prémio de melhor
jogador do Mundo no presente ano. A escolha foi unânime: Cristiano
Ronaldo, com quase 70% dos votos” (em jornal Record)
METÁFORA: o dinheiro é uma metáfora, porque quase sempre é uma
coisa que significa outra coisa…
SCIENTIA AMABILIS
Amendoim (Arachis hypogaea L.)
Por falar em juros de depósitos que,
agora, ou são zero ou peanuts,
umas breves linhas sobre amendoins.
Botanicamente, trata-se de uma planta leguminosa oriunda da América do Sul
(Argentina, Bolívia e Brasil). As flores
amarelas desta herbácea rasteira são minúsculas e, uma vez polinizadas,
penetram no solo, onde o legume ou vagem se desenvolve subterraneamente. O
pedúnculo floral curva-se para baixo, continuando a crescer até enterrar o
ovário da flor. O nome amendoim vem da família linguística indígena tupi-guarani
por via da expressão mãdu'bi (ou mãdu'i) que significa
precisamente "enterrado". Os amendoins que comemos são as
sementes contidas numa casca dura.
Popularmente, o amendoim é também
conhecido por alcagoita (Algarve), mancarra (Guiné), jinguba (Angola) e, ainda, cacahuete
(cacau da terra). Segundo a FAO, em 2016, os primeiros dois produtores
mundiais, de um total de 46 milhões de toneladas, são a China e a Índia, com
38% e 16%, respectivamente.
Vai uma cerveja e amendoins?
II- OPINIÃO
Será a ciática europeia contagiosa?
Eis, diante de nós, um pormenor
desta Europa política. Guiada não por estadistas, mas por políticos vulgares
que não se dão ao respeito.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 20 de Julho de 2018
O homem cambaleante, mas bem-disposto, afinal, estava sofrendo de um
súbito ataque de ciática. Assim foi
diagnosticado por António Costa, pelo chefe de governo holandês e pelo próprio
porta-voz da Comissão Europeia, este em jeito de boletim clínico, assim todos
nos tratando como néscios europeus. Amparado pelos membros superiores de altos
dignitários de Estados-membros mais superiores ou mais inferiores, Jean-Claude
Juncker conseguiu descer do palanque e caminhar sem antes dar os seus etílicos
beijos. Uma ciática de muitos graus!
Eis, diante de nós, um pormenor
desta Europa política. Guiada
não por estadistas, que esses já quase não existem, mas por políticos vulgares
que não se dão ao respeito, nem servem de exemplo credível. Tudo boa rapaziada,
numa qualquer função ou disfuncionalmente, entre beijos, abraços e cachecóis de
futebol, cheios de “non-papers” e, não raro, vazios de ideias e estratégias.
Nas cimeiras aparecem-nos sempre entre sorrisos tão falsos quanto
enfastiados, tweetando das salas e corredores para o mundo, fotos de
família aparentemente unida, decisões sem decisão. Aparentam andar felizes,
entre bolinhos, croquetes, bebidas espirituosas e amendoins. A mediocridade
tomou conta do directório europeu.
Esta é a Europa que nos querem
prodigalizar. Esta é a Europa que dão a entender aos jovens de hoje como sendo
o seu farol à distância de uns euros com que tudo julgam ou fingem comprar.
O poliedro europeu atingiu a sua plenitude de imperfeição. Países do
Leste são sinceros: só lá estão pelo dinheiro e quanto ao resto estão-se
borrifando para as regras básicas da democracia. Na Hungria, o músculo é que
conta e ninguém cora pela criminalização da ajuda a desvalidos imigrantes. Na
Polónia, essa coisa da separação de poderes foi ao ar, apesar da fingida ameaça
de Bruxelas. Visegrado é o itinerário da nova peregrinação contra os que não
são deles. A Alemanha já não é o que era e a chanceler – antes odiada como o
diabo personificado, ora louvada como o exemplo do equilíbrio e sensatez –
limita-se a mudar a cor da jaqueta em razão dos seus aliados e adversários
internos ou externos. O Reino Unido procura, com um "Brexit"
voluntarista e atamancado, ficar fora da União, mas com um pé dentro, para
substituir o estar na União, mas com um pé fora. A primeira-ministra britânica
anda aos papéis sem ninguém a avisar do papel que está a fazer! O Presidente francês,
sem o ar soberbo e presunçoso dos que o precederam, lá vai tentando aparentar
que a França ainda é importante. No Sul, a música é variada e para todos os
gostos. Nós, sempre a fazer o papel
do bom aluno, seja no ciclo austeritário, seja no ciclo reversitário, com
os salamaleques do costume perante figurinhas de doutos comissários e outros
altos funcionários de uma bem instalada Comissão. Em Espanha, depois do justo castigo de corruptos e corruptores, está
agora uma "geringonça" de largo espectro, entre engasgadelas sobre as
autonomias e independentismos e mais preocupada com magnos problemas para o
bem-estar da população, como são a “estrutura” do Vale dos Caídos ou as
inadiáveis reformas fracturantes. Na Itália, eis a total imprevisibilidade de um
governo que olha para a Europa como a Antárctida olha para a Amazónia. Quanto à
Grécia desgravatada, a Europa convenceu-a que tem futuro e lá anda a esquerda
do poder a fingir que o é.
Encharcada em questões de minorias ruidosas e mediáticas, por mais respeitáveis
que sejam, a Europa esquece os problemas das maiorias sem voz europeia.
Possuída pelas políticas monetárias e subjugada ao magno poder banqueiro, é
incapaz de ir além de meras declarações românticas sobre os paraísos e
escapatórias fiscais. Nesta Europa decadente de valores, axiologicamente
relativista, espiritualmente desertificada, só parecem contar os euros como
forma de exercício de poder e permuta de influências. O financeiro domina o político e determina o económico. O social –
apesar dos discursos – não é uma premissa, antes um resultado meramente
adjectivo.
Esta Europa, sem verdadeira
liderança, é lenta e preguiçosa nos actos, atrasada nas decisões, prolixa no
palavreado. Na União (!), todos se demarcam de todos! Todos iguais, todos
diferentes. Todos solidários, todos egoístas. Todos unidos, todos de costas
voltadas. Todos em cadeia, todos encadeados.
Sem visão e sem liderança, a
União caminha aos solavancos, não em geometria variável, mas em cacofonia
assimétrica. Incapaz de responder, em tempo certo, aos desafios da
globalização, a Europa deste alucinante inverno demográfico menospreza a ideia
de família e passa de Velho Continente a Continente velho, no nevoeiro de
crescente irrelevância. Entre um Trump errático e disruptivo, um Putin ardiloso
e jogador de xadrez e um dragão chinês paciente, estratégico e insensível aos
direitos humanos, Juncker definiu, ainda que burlescamente, o estado da “Nação
Europeia”: sem rumo, trôpega, embriagada com tanta ciática institucional. Será
contagiosa?
IPSIS VERBIS
CITAÇÃO: “Ninguém me
encomendou o sermão, mas precisava de desabafar publicamente. Não posso mais
com tanta lição de economia, tanta megalomania, tão curta visão do que fomos,
podemos e devemos ser ainda, e tanta subserviência às mãos de uma Europa sem
valores" (Miguel Torga em 1993)
JARGÃO EUROPEU: Arquitectura organizacional. Geometria
variável. Perspectiva integracional e multifocal.
Alocar, assignar e impactar. Sinergias e imparidades.
Envelhecimento activo. Relatórios de iniciativa própria. Memorando de
Entendimento. Adicionalidade. Alavancagem. Estereótipos de género. Bem-estar
dos animais. Comitologia. Cooperação estruturada permanente. Mecanismo único de
resolução. Abordagem managerial e societal. Empoderamento.
Governança. Incumbente e colateral. Etc., etc.
GREGUERIAS: “Os que vêm da chuva trazem cara de copo de água” (isto a propósito da
molha de Macron e da Presidente croata na entrega das medalhas no
Mundial). Já Putin, indelicadamente, tinha um guarda-chuva só para ele, pelo
que se poderia aplicar-lhe uma outra greguería de Ramon de la Serna:
“A água não tem memória: por isso é tão limpa”
SCIENTIA AMABILISFoto
Vinha (Vitis vinifera L.)
A vinha (videira ou parreira) é uma das
sete espécies vegetais da Bíblia, citada logo no Génesis. A Vitis vinifera é a espécie de
videira mais cultivada para a produção do vinho na Europa. Trata-se de uma
trepadeira cultivada em todas as regiões de clima temperado, com um tronco de
forma muito retorcida, folhas grandes e repartidas em cinco lóbulos pontiagudos
e flores esverdeadas em ramos. O fruto (a uva) é uma baga com as sementes
livres e dispersas no mesocarpo. O
cultivo da videira para a produção de vinho é uma das actividades mais antigas
da civilização, havendo muitas espécies e múltiplas variedades denominadas
castas. Não sei quais serão as castas preferidas pelo actual presidente da
Comissão Europeia.
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