sexta-feira, 6 de julho de 2018

Se as tristezas as pagassem…


As dívidas. Outro galo nos cantaria. Helena Garrido aponta e filosofa. Com que perícia o faz! João Miguel Tavares argumenta e exemplifica e dá esperança de que as tais operações investigadoras vão colher frutos.
Acredito mais na tese de Helena Garrido e no cepticismo dos comentadores de JMT.
O certo é que a dívida sobe, como o “balão” da Manuela Bravo, a pedir à estrela que a deixe lá ficar com o seu amor. É estrela nossa, fado, sina, e temos vergonha disso, vergonha e tristeza que não apagam nunca tais aspectos tão sinistros da nossa mentalidade inferior, os quais rebentam a cada passo no nosso chão, pobre chão sem culpa, chão seco, de incêndios também impunes, chão húmido de descargas poluentes traiçoeiras, chão de gente bem apessoada, no disfarce da sua malandrice autorizada, no seu núcleo de poder…
I - ESTADO
Bem-vindos ao reino da impunidade /premium
OBSERVADOR, 5/7/2018
Se deve mil tem um problema, se deve milhões não se preocupe. Se pertence à elite que partilhou escola ainda se deve preocupar menos. E nada se é parte do grupo certo, seja de que partido ou clube for
O tempo passa e há já quem tenha caído com o peso das suas dívidas durante a crise e já se tenha levantado ou reduzido o seu nível de vida. Se é esse o seu caso é porque não devia centenas de milhões de euros, não estava integrado na rede do poder ou não pertencia a nenhum grande clube de futebol. Para esses, que deviam centenas de milhões de euros, os bancos não têm meios para os obrigar a pagar ou a falir e os mais diversos poderes defendem-nos com o sigilo bancário, ao mesmo tempo que se apresentam como defensores dos desfavorecidos. Nunca como hoje se teve um discurso e se actuou de forma oposta ao que se diz.
Porque não conseguem os bancos que os grandes devedores lhes paguem? Estão protegidos por contratos jurídicos invioláveis, argumenta-se. Ou nada têm nas empresas que eram suas e que, em muitos casos, desnataram. Ou nada têm em nome pessoal como aconteceu por exemplo com Nuno Vasconcellos da Ongoing que só tinha uma mota de água quando o BCP finalmente resolveu executar a sua dívida de 9,7 milhões de euros.
Bem vindos pois a um país onde os grandes devedores conseguem continuar a dever sem que nada lhes aconteça enquanto outros, os pequeninos, pelo menos alguns, já tiveram tempo para pagar o que devem e reconstruir as suas vidas. Ou estão ainda a pagar caro os erros que cometeram.
Bem vindos a um país onde um banqueiro pode receber uma liberalidade de um cliente sem que nada lhe aconteça, para além de estar enredado em processos judiciais. Ou ao país em que um banqueiro pode conseguir financiamento para empresas do grupo da família, enganando gananciosos ou analfabetos, sem que nada lhe aconteça. Ou antes, o que lhe acontece é o Estado substitui-lo como credor.
Bem vindos a um país onde modestas pessoas, muitas iletradas e info-excluídas, ficam sem uma agência bancária a poucos quilómetros do sítio isolado onde vivem porque houve homens integrados nas redes do poder que não pagaram o que deviam ao banco do Estado que, por sua vez, concedeu esse crédito por orientações políticas, amiguismo ou critérios duvidosos que estão a ser avaliados pela justiça.
Bem vindos ao reino em que alguns homens, que abriram portas financeiras ou jurídicas para outros homens acederem a centenas de milhões de crédito que lhes dava o estatuto de banqueiros ou empresários, continuam a com poder para ditar as regras que do reino.
Bem vindos ao reino onde se leva à miséria quem deve milhares à banca ou se processa sem dó nem piedade quem deve centenas ao fisco e protege-se, a coberto do sigilo bancário, quem deve centenas de milhões e tem nas costas a responsabilidade do dinheiro que alguns bancos precisaram, nomeadamente a CGD.
Bem vindos ao reino que, numa luta sem quartel pela sua auto preservação, defende-se o sigilo bancário como se fosse um valor absoluto, indiferente à necessidade de apurar responsabilidades que podem mudar mentalidades e atacar o coração de uma elite rentista que condena o povo ao subdesenvolvimento.
Bem vindos ao reino da impunidade, ao reino em que a elite responsável ou cúmplice do problema dos bancos vai armadilhando a justiça com falta de meios e assim se vai preservando.
Bem vindos, enfim, a um reino que devia ser de uma fantasia de terror.
Quando se diz que não há uma única pessoa responsabilizada pelo que se passou na banca portuguesa é dizer pouco. Porque além de não existirem responsáveis pela concessão de crédito sem a devida avaliação de risco ou com critérios duvidosos – porque é disso que se trata e não de eventos inesperados que geraram incumprimento -, há igualmente grandes devedores que se podem dar ao luxo de continuar a dever e, no limite, a fingirem que são empresários porque são protegidos pelo “sigilo bancário”.
Como se tudo isto não bastasse está criada em alguns bancos a ideia de adiar ainda mais a limpeza do malparado, opondo-se à proposta da iniciativa da Alemanha e da França de obrigar a uma redução para 5% da carteira de crédito. E ouvimos da Associação Portuguesa de Bancos exactamente os mesmos argumentos usados para convencer a troika a não aplicar em Portugal a solução de limpeza geral usada na Irlanda – e que a CGD acabou por adoptar no seu último aumento de capital. Estamos à espera de uma nova crise para termos ainda de gastar mais dinheiro a salvar bancos? (Atenção que a salvação dos bancos é uma expressão lata para dizer que estamos a salvar, e bem, depósitos. Mas esta solução que considero ser a que tem menos custos para a economia não pode ser o caminho para desresponsabilizar quem fez uma gestão danosa e perdoar grandes devedores).
Quem assim reina frequentou as mesmas escolas ou colégios, as mesmas faculdades, concentra-se basicamente em Lisboa, é um grupo de amigos e conhecidos que troca cumplicidades e favores. Um grupo transversal aos partidos que vai expurgando quem a ele não pertence ou se atreve a tentar mudar esta elite que controla o poder a seu favor, mesmo com discursos de defesa do povo. Este reino da impunidade terá um dia consequências graves. Por tudo isto mas também pelo que temos assistido nos últimos tempos, resta-nos estar gratos por não termos ainda em Portugal um partido populista de tipo autoritário em Portugal.

II - OPINIÃO
Tutti Frutti ou Tutti Corrupti?
Haja polícias e magistrados para tudo isto. E tudo, sublinhe-se, em quatro anos. É um autêntico terramoto político, financeiro e judicial.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 28 de Junho de 2018
A operação chama-se Tutti Frutti. Mas Tutti Corrupti talvez definisse melhor aquilo que está em causa: uma mega-operação envolvendo mais de 200 pessoas e três juízes de instrução, justificada por um inquérito a “crimes de corrupção passiva, tráfico de influência, participação económica em negócio e financiamento proibido”, que se traduziu – estou a citar o comunicado da PGR – em “cerca de 70 buscas domiciliárias e não domiciliárias, incluindo buscas a escritórios de advogados, autarquias, sociedades e instalações partidárias, em diversas zonas geográficas de Portugal Continental e Açores”. Parece que vamos ter bom entretenimento judicial para os próximos meses.
Não sei se as pessoas têm propriamente consciência disto, mas a pátria tem vindo a desenvolver, desde a Operação Marquês, uma espécie de variação portuguesa da Operação Mãos Limpas, só que em câmara lenta e com a sonolência típica dos lusitanos. As consequências desse enorme conjunto de processos e/ou falências criminosas ainda não foram bem digeridas pela psique nacional, mas quando fazemos contas àquilo que aconteceu neste país desde meados de 2014, a listagem é impressionante: queda do BES, queda da PT, queda da Ongoing, queda do Banif, prisão e posterior acusação de um ex-primeiro-ministro, investigações à EDP, investigações ao saco azul do GES, vistos gold, investigações ao Benfica e ao mundo do futebol, incluindo a Operação e-Toupeira, investigações à própria magistratura (Operação Fizz e Operação Lex), e poderíamos acrescentar todas as suspeitas em torno da concessão de créditos da CGD e do antigo BCP, o estado comatoso do Montepio, já para não falar das absurdas PPP.
Haja polícias e magistrados para tudo isto. E tudo, sublinhe-se, em quatro anos. É um autêntico terramoto político, financeiro e judicial, e só mesmo neste soalheiro e extraordinariamente pacato país é que as consequências deste abalo poderiam ser quase nulas para o regime. Sim, foi chato, e tal, a troika andou por aí a comer salários (note-se: foi a malvada troika e, no máximo, o horrível Passos Coelho, não os responsáveis pela falência do país), houve manifestações contra a senhora Merkel, mas a coisa mereceu alguma reflexão profunda? Os partidos afundaram? Alguém bateu no peito? Há gente presa? Claro que não. Ou, pelo menos – sejamos optimistas –, ainda não.
E agora surge mais esta cereja para pôr em cima do bolo: Operação Tutti Frutti, cujos contornos ainda não são inteiramente conhecidos, mas que pelos vistos envolvem juntas de freguesias a abarrotar de boys e assessores, autarquias que privilegiam negócios com militantes, e o velho financiamento partidário. Será desta que o pessoal acorda? O Tutti Corrupti justifica-se por isto: não estamos a falar de acontecimentos singulares, de indivíduos corruptos que existem em todos os países (até na Suécia), mas de uma característica genética do regime que Portugal construiu depois do 25 de Abril (e que, em boa parte, já vinha de trás).
Há uma linha que une o Dr. Ricardo Salgado à D. Isaura, esposa do presidente de Vilharim de Baixo, que após a vitória do marido abriu uma florista para fornecer centros de mesa à câmara por ajuste directo. Uns ganham milhões, outros ganham tostões, mas todos dependem de favores públicos e do nosso dinheiro. Não são meras aldrabices ocasionais – é o modo de vida do regime português. Venha de lá, pois, essa mega-operação. E com ela a consciência de que já vai sendo hora de mudar os nossos tristes hábitos.

Entre 83 COMENTÁRIOS:
Francisco Pinto, 28.06.2018: A mais recente "bengala" de Costa foi dos últimos, porque chegou tarde, a criticar a justiça, que é como quem diz, a actual PGR, e a apoiar uma hipotética mudança no cargo, caso o governo o decidisse. Os donos do regime sentem um grande incómodo com a actual PGR, e ensaiaram a possibilidade de a substituírem, mas as reacções dos eleitores no espaço mediático foi inequívoca na aprovação do desempenho de Joana Marques Vidal. O regime é corrupto, e a extensão colossal. Não acredito que a Justiça tenha poder e autonomia para julgar todos estes casos de corrupção que envolvem as figuras maiores da política e da economia, quanto mais não seja porque nem os seus agentes escapam a esta lama!
José Manuel Martins,  évora 29.06.2018: é esse o problema: o sistema de corrupção é sempre acobertado por um segundo e um terceiro anéis em meta-sistema, que impedem de alguma vez desmantelar o monstro. O grande parasita é sempre interior e simbiótico, tornando impossível objectivá-lo e anulá-lo como exterior.
José P.,  Lisboa 28.06.2018: O artigo do JMT é meritório. Faltou apenas dizer o que lhe custa tanto: Onde é que está o trabalho do Ministério Público? Onde é que estão as investigações e as provas, para que os juízes condenem? Ninguém sabe. Não sei se o JMT, com esta sua fotografia crítica do sistema judicial, continua a defender a recondução da Joana Marques Vidal, como defendeu recentemente em artigo nesta coluna. Seria interessante saber.


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