terça-feira, 24 de julho de 2018

Gente da minha terra



Não, não se trata do “povo que lavas no rio” da voz divina de Amália e da homenagem de Mariza, trata-se da gente que também se diz amá-la, a essa outra gente, mas na realidade se aproveita dos novos critérios afectivos da sua democracia de importação para castigar com ataques virulentos os que permanecem no bom senso de uma moral e sentimento mais consentâneos com velhos conceitos de decência e amor pátrio. Encontro-a, a essa “gente cá da terra”, no historiador que insiste em atacar os que defendem um passado de Descobrimentos pela exaltação da glória e ocultação da violência esclavagista – Manuel Loff; nos destacadamente sensíveis que, ao que aponta verdades sobre violências ciganas logo o ferem com o libelo de “racista” – SOS Racismo; no editorialista do Público – Amílcar Correia – que insiste num virtuoso panegírico biográfico acerca de um defunto cidadão de largo passado em prol de reformas progressistas, João Semedo.
São gente cá da terra, são progressistas disparando os seus ardores sentimentais com muita energia - de ironia, ML, de indignação, SOS Racismo, de afectação de virtude, Amílcar Correia, na maré das costumeiras homenagens póstumas enaltecedoras.
O artigo de Miguel Loff acusa os dois Tavares – Miguel de Sousa e João Miguel – com fereza, na firme convicção de que é preciso denunciar, em museu de epopeia, a crueldade aviltadora da glória, o que também a mim me parece perverso, já que aos museus cabe a função de seduzir e não de denegrir, além de que a épica “branca” descobridora está igualmente manchada de sofrimento “negro” causado pelos aborígenes, de que o próprio “Adamastor” referiu casos, da nossa “História Trágico-Marítima” que M. Loff finge ignorar. Quanto ao racismo de que é acusado o deputado municipal António Santos Ribeiro, li o texto dele que me pareceu justo e não xenófobo, apontando os distúrbios graves causados pela comunidade cigana. A homenagem a João Semedo era de prever, muitos a fizeram, característica bem nossa de apreciar os mortos ignorando os contras da sua acção de vida. Mas bastou-me saber do seu pioneirismo na defesa da eutanásia para o excluir da minha empatia. Sei que nada sei, é certo, como diz o outro, e que nada sou, como diz o nosso, para emitir gostos que não fazem mossa. Porque a mossa já foi feita há muito. Há 44 anos?
I – Ohomem branco autoflagelado”
Não haverá ainda quem tenha feito a guerra e massacrado aldeias inteiras em nome e por ordem de quem governava Portugal?
MANUEL LOFF
PÚBLICO, 21 de Julho de 2018
O novo museu celebratório dos Descobrimentos, como Fernando Medina quer (ou queria?) abrir em Lisboa, era, para Miguel Sousa Tavares (MST), “uma ideia absolutamente consensual e necessária”, mas suscitou uma discussão sobre a forma como descrevemos e musealizamos a experiência colonial portuguesa. Ora, entre muitos outros, dois Tavares (o Miguel Sousa e o João Miguel) acham que os “ativistas anti-Descobertas” querem “fazer uma espécie de museu de autoflagelação (...), um museu contra a nossa História, contra uma História que foi tão grandiosa que, se calhar por isso mesmo, nem a conseguimos entender, na nossa pequenez actual” (MST, Expresso, 28.4.2018). Ao  reacionarismo historicista de MST, João Miguel Tavares (JMT) juntou moralismo e psicologismo barato: na crítica ao discurso hegemónico sobre aquela “história grandiosa” carregada de silêncios e omissões sobre a violência colonial, há, diz ele, “uma estranha mistura de catolicismo com judaísmo” de gente que quer “assumir velhos pecados” (JMT, PÚBLICO, 14.6.2018). A isto chamam os anglossaxónicos “self-hatred”, o ódio de si próprio, de que fala gente da mesma tribo dos Tavares a propósito dos judeus que criticam a ocupação israelita da Palestina, ou dos homens que denunciam a dominação masculina, ou dos ocidentais que criticam o papel histórico do Ocidente, isto é, de tudo aquilo que o reacionarismo cultural diz hoje ser uma “moda” estrangeirada adotada por uma “intelligentsia ociosa” nacional.
 Museu da Culpa do Homem Branco”, chama-lhe JMT, onde “homens brancos” querem, pelos vistos, musealizar a sua culpa. Eles carregam uma “culpa coletiva centenária (...) – como se algum de nós tivesse qualquer razão para se sentir responsável pelos atos de quem viveu há 300 anos”. Que espantosa conceção da história e da relevância social do passado! Não havendo responsáveis vivos, para quê discutir o passado do colonialismo e da violência, da exploração e da desigualdade imposta, todas experiências intrínsecas do colonialismo? Ora se “é difícil argumentar que a geração pós-25 de Abril andou de chicote na mão”, se se volta a discutir tudo isto é porque se quer “permitir a vitimização histórica do português de origem africana no presente.” Como se “o branco de 2018 [fosse] culpado pelos atos do esclavagista de 1718 para que o negro de 2018 possa ser vítima da escravatura de 1718.” Vítima de 1718? Não: vítima em 2018! “Cultivar a ‘magia’ da época colonial alimenta o racismo histórico e estrutural e prolonga as hierarquias de controlo e repressão para com as comunidades negras no país”, como lembraram “os negros e negras deste país” que, “recusando a invisibilidade que nos é imposta”, entraram na polémica em nome próprio (“Não a um museu contra nós!”, PÚBLICO, 22.6.2018).
O que é extraordinário é que JMT julgue que, porque nenhum de nós foi esclavagista em 1718, se possa deduzir que 300 anos sejam suficientes para apagar conceitos como o da continuidade da responsabilidade do Estado, ou da acumulação de riqueza colonial vertida na economia portuguesa, ou do simples dever de, nas políticas públicas de memória (por exemplo, os museus), assumir o passado por inteiro, e sobretudo aquele que se ocultou e manipulou. E se tiverem passado só 65 anos? E se houver ainda algum português de hoje que tenha participado no massacre de sãotomenses em Batepá, em 1953, quando se revoltaram contra o trabalho forçado e o governador achou que eles eram agentes soviéticos – podemos musealizar essa história ou é autoflagelação? E se houver ainda quem, barriga cheia de cerveja, tenha feito tiro ao alvo de cima de carrinhas de caixa aberta, em 1961, nos musseques de Luanda depois da revolta do 4 de fevereiro? Ou tenha integrado milícias no Norte de Angola, em 1961, enquanto a tropa não chegava de Portugal, e organizou batidas contra suspeitos de apoiar o “terrorismo”, matou milhares, enterrou gente viva com a cabeça de fora, passou com um trator por cima, espetou cabeças em paus ao longo da picada por onde depois chegaria a tropa – podemos musealizar isso ou o turista não gosta? E não haverá ainda quem tenha feito a guerra em tropas especiais e massacrado deliberadamente aldeias inteiras em Moçambique, em nome e por ordem de quem governava Portugal? “A geração do pós-25 de Abril”, nada tem a dizer sobre isto? Ou este é, como acha MST, “um problema deles”, de quem anda a exigir falar da violência colonial, “mas não pode ser problema dos outros”, isto é, “deste pequeníssimo povo, entalado entre o fim da Europa e o mar, [que] escolheu o mar como destino”? O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

II - PORTO
SOS Racismo denuncia mensagem xenófoba de deputado municipal
O texto em causa, sobre um grupo de cidadãos romenos, foi entretanto apagado.
PÚBLICO, 23 de Julho de 2018
Deputado do Porto atribuiu a responsabilidade do aumento dos assaltos na zona da Boavista à presença do grupo PAULO PIMENTA
A associação SOS Racismo acusa um deputado municipal do Porto de difundir "mensagens de natureza discriminatória" através das redes sociais, tendo como alvo cidadãos romenos que estariam acampados junto à sua residência. Trata-se do deputado municipal António Santos Ribeiro (identificado no Facebook como David Ribeiro), eleito pela lista do presidente da câmara, Rui Moreira.
No seu texto, Ribeiro escreve que é necessário "encontrar rapidamente formas eficazes de proteger os cidadãos destes energúmenos", referindo-se aos romenos que estariam junto a sua casa.
Em causa estaria a permanência de um grupo de duas a três dezenas de pessoas, acampadas a cerca de 20 metros da casa do deputado municipal, que os responsabiliza por assaltos e depósitos de lixo na zona da Boavista.
Em comunicado, a SOS Racismo considera que “é particularmente grave que um responsável autárquico, com funções de representação do povo que o elegeu, difunda e torne públicas mensagens de natureza discriminatória, em afirmações pontuadas por preconceitos e por insultos”.
Além disso, a associação sublinha ainda que “já após a eliminação por denúncia do referido texto”, o deputado “insiste na culpabilização de quem o denuncia, revelando complacência com comentários de índole racista, sexista e violenta”.
Ao Diário de Notícias, o deputado explica ser "declaradamente contra quem recusa qualquer tipo de ajuda social e prefere continuar a viver da mendicidade, do pequeno furto e a dormir em jardins e espaços públicos", mas desconhece se existiram propostas ou medidas de apoio da autarquia. Em declarações à agência Lusa, António Santos Ribeiro assegura que o texto em nada indica que é "racista, xenófobo ou que tenha incitado ao ódio". 
Na resposta enviada à Lusa, a autarquia diz que "a questão não diz respeito à Câmara do Porto, que não tem que se pronunciar sobre afirmações pessoais ou outras de deputados que pertencem a um órgão político autónomo". Já Miguel Pereira Leite, presidente da Assembleia Municipal e primeiro na lista do movimento independente para aquele órgão, disse "desconhecer as afirmações". "Nessa circunstância, prefiro não me pronunciar", afirmou. 

III – EDITORIAL
Morreu um homem íntegro e incansável
João Semedo foi sempre coerente nos seus princípios e incansável nas lutas em que se envolveu.
AMILCAR CORREIA
PÚBLICO, 18 de Julho de 2018
João Semedo não foi mais um político ou mais um médico. O antigo coordenador do Bloco de Esquerda ou director do Hospital Joaquim Urbano, no Porto, foi bem mais do que a soma destas duas partes. Semedo nunca deixou de intervir política e civicamente, fosse em 1967, nas mobilizações estudantis de apoio às populações atingidas pelas cheias na periferia de Lisboa, onde nasceu, fosse na candidatura à Câmara do Porto, em 2017, cidade onde viveu nos últimos 40 anos. Semedo fez parte dos movimentos estudantis na Faculdade de Medicina de Lisboa, foi preso por distribuir panfletos a exigir eleições livres, participou nas campanhas de alfabetização após o 25 de Abril, foi membro do Comité Central do PCP, que abandonou para integrar as listas do BE, encabeçadas por Miguel Portas, nas eleições europeias de 2004.
Trabalhou com toxicodependentes e portadores de VIH, foi crucial na aprovação de legislação sobre o testamento vital, a Carta dos Direitos do Utente do Serviço Nacional de Saúde (que introduziu o conceito de tempo de espera para as consultas, internamentos e cirurgias), e a possibilidade de os doentes optarem por um medicamento genérico, mesmo quando o médico não autorize a mudança. Juntamente com o criador do SNS, António Arnaut, falecido há menos de dois meses, travou uma das suas últimas batalhas: a defesa de uma nova Lei de Bases de Saúde que refundasse o serviço de saúde pública. A outra foi o direito à morte medicamente assistida (eutanásia ou suicídio assistido), por acreditar no “direito a morrer com dignidade”, que o Parlamento rejeitou, curiosamente, com a ajuda do partido no qual entrou nos anos 70. 
O seu contributo democrático e cívico para o bem público não se resumiu, contudo, à política ou à medicina; foi dirigente da Cooperativa Árvore e director do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, o FITEI. João Semedo foi sempre coerente nos seus princípios e incansável nas lutas em que se envolveu. Incansável mesmo apesar da doença que ontem o vitimou. Um homem entre a política, a medicina e a cultura, entre a liderança de um partido e uma candidatura municipal, entre Lisboa e o Porto é alguém que leva devidamente a sério a necessidade de contribuir para uma “democracia mais perfeita” e que nunca se sentiu a “fazer o que não queria”. E tudo o que fez fê-lo com uma rara e consensual honestidade e integridade.


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