Da evolução. Da mudança, como
se chamou desde sempre. Os trambolhões nas políticas são muitas vezes
imprevisíveis, como essa recente da decisão unilateral da mudança de Jerusalém como
capital de Israel, por ordem de um poderoso, sem grande protesto do mundo acobardado.
Adriano Moreira chama-lhe
leviandade, mas o mundo segue, com a embaixada americana para lá mudada. Talvez
não faça grande mossa, há sempre outros motivos ou interesses a justificar
razões, sejam cobardias, egoísmos ou sinistras
– cínicas - compreensões, “cada um é seus caminhos”. Quanto ao fenómeno
do “populismo”, tratado por Paulo de Almeida
Sande no seguimento de Miguel
Poiares Maduro, foram duas excelentes lições que nos mostram como o
populismo acaba com uma efectiva democracia. Mas estes piparotes fazem parte do
“progresso”, quando este é mal compreendido por um povo pouco esclarecido e
cujos mentores também o são, e, sim, manhosos. Interesseiros, sob a capa do
altruísmo, igualmente sinistro. Mas a reviravolta, num mundo cada vez mais na
lama, torna-se menos provável. Nem o “sempre em pé” se segura aí.
I - A leviandade
ADRIANO MOREIRA
DN,
26 Junho 2018
Os factos surpreendentes
que se multiplicam e que agravam a situação de risco da circunstância mundial
fazem repetidamente lembrar uma advertência do príncipe Otto von Bismarck
(1815-1898), um dos doutrinadores e praticantes da chamada realpolitik,
conceito formulado por Ludwing von Rochau, quando definiu e realizou o projeto
de unificação da Alemanha. Adotando a prudência do possível, advertia que uma
simples leviandade poderia facilmente produzir uma catástrofe, designadamente
militar, embora o uso da força militar não seja a única força capaz de produzir
iguais efeitos.
Ainda hoje há doutrina que
apoia o entendimento de que o conceito da Carta da ONU (artigo 2) não incluiu
apenas agressão com uso da força armada, mas qualquer intervenção no espaço da
soberania de outra potência, embora pareça mais numeroso o apoio da
interpretação restritiva no sentido de que apenas tem em vista o uso da força
armada. De qualquer modo, o teor do valor dominante da Carta da ONU é a paz, e
não é uma interpretação excessiva entender que é reprovada qualquer intervenção
exterior que afete a ordem interna de um Estado, ou região com estatuto
internacional reconhecido, como foi o caso da frutuosa utilização das cidades autónomas,
como foi por exemplo o caso de Tânger, cuja administração esteve em mãos
portuguesas com êxito reconhecido.
Também foi o modelo que
recebeu apoio e propostas de responsáveis, quando a sonhada formação de dois
Estados na Palestina implicou a importância e a preocupação internacional com
Jerusalém, um património das várias religiões, e não apenas de judeus e
muçulmanos, sendo destacável o que representa para os cristãos de todas as
tendências. Acontece que a decisão do atual presidente dos EUA, no sentido
não apenas de colocar em Jerusalém a embaixada do seu país, foi também
acompanhada da sua proclamação declarando que tal ato significava que a cidade
de Jerusalém, na sua totalidade, era a capital de Israel. Extinguindo assim o
regime proposto de servir também de capital da autoridade palestina, longamente
à espera, paga com sacrifícios, de finalmente ter um reconhecimento
internacional geral de Estado, com a inerente proteção internacional. Como era
de esperar, pela evidência histórica do longo problema, os conflitos, com o
preço das mortes inevitáveis, foi um resultado imediato, provocado pela
insólita decisão, dos confrontos entre as duas comunidades, que o processo de
instalação da embaixada era impossível não provocar. Mas o que não
era de prever era que um estadista responsável entendesse que tinha o poder de
declarar legalmente o efeito da sua decisão, que ela fosse internacionalmente
acatada, naturalmente festejada em Israel, embora com amortecida crítica
internacional, que a rodeou, embora seja seguramente mais surpreendente que o
Conselho de Segurança não assumisse que a circunstância exigia a sua
intervenção.
O facto de tal decisão com
tais efeitos ser feita pelo governante de um Estado com direito de veto, isso
não inclui no privilégio a imunidade da intervenção do Conselho quando é a paz
e a vida que estão em causa. Ocorre lembrar o incidente da tentativa do Reino
Unido-França, ambas as potências com direito de veto, e que ficaram impedidas
de conseguir o êxito que esperavam fácil, quando procuraram impedir Nasser
de nacionalizar o Suez. Que a atual decisão não tenha ainda provocado a
suficiente reação contra as perdas de vidas que sublinham e responsabilizam o
autor do acontecimento não impede, porém, de assumir já como suficientemente
evidente e preocupante que se tratou de uma leviandade, no prudente conceito de
Bismark.
Não é de esperar que as
várias religiões - para as quais o carácter sagrado da cidade está acima do
pragmatismo de qualquer política consagradora da regra maquiavélica segundo a
qual, quando a ilegalidade da ação provocou o efeito desejado, está justificada
- deixem de unir-se na defesa do valor comum que partilham. Mas também é de
esperar que mais uma vez seja fortalecido o movimento vindo não apenas de
entidades políticas, mas também de sociedades civis, independentemente de
partilharem alguma das crenças religiosas, para que a presente ONU seja
suficientemente reformulada no sentido de poder e dever chamar-se ONU da Paz.
Até esta data não parece
que esse objetivo seja partilhado pelo autor da audaciosa intervenção numa área
que não é apenas do seu interesse, nem exclusivamente do interesse dos
palestinos, nem dos cristãos que hoje são objeto de perseguições e sacrifícios
não ignoráveis, trata-se de um lugar de encontro de valores cimeiros de várias
crenças que ali encontram o ponto mais valioso da sua comunhão em paz e
cooperação.
II - POLÍTICA
Portugal populista /premium
OBSERVADOR, 3/7/2018
Um político popular está
próximo do povo para o aproximar das instituições e da política. Um político
populista aproxima-se do povo para o aproximar de si e alienar das instituições
e da política.
O espectro do populismo
ameaça Portugal.
E se com esta afirmação
atraí a atenção do leitor, sugiro que
leia o artigo de Miguel Poiares Maduro “o que esconde a palavra populismo”.
Vale a pena. Pode ajudar-nos a encontrar resposta à pergunta: há condições
para o populismo triunfar em Portugal?
O conceito é equívoco, um
problema constante da moderna ciência política, de origens confusas, algures no
século XIX (Farmer’s Alliancenos EUA ou a componente
nihilista do movimento revolucionário russo?). Retomo e complemento Poiares
Maduro:
Para os populistas, as
sociedades dividem-se em elites e povo, aquelas “más”, este “bom”. As elites
detêm o poder e os populistas querem recuperá-lo em nome do povo “bom”.
Dessa forma, o populista
representa e interpreta a vontade do povo, por definição justa e verdadeira. Só
ela interessa. Discuti-la é traição (ao povo), sendo por extensão também
traição questionar a interpretação dessa vontade feita pelo líder populista.
Nenhum outro poder
supera o do populista, não são admitidos mecanismos de controlo e separação de
poderes. Nenhum mérito é aceite, salvo os que o populista assinale. Todas as
instituições com voz independente perdem a independência… ou a voz.
O populista rodeia-se de
“tropas”, nem sempre metaforicamente, fiéis mobilizados, que impõem à
maioria (em geral) silenciosa um líder aberto ao povo, popular e empenhado na
defesa exclusiva do seu interesse.
O populista em geral não
tem uma ideologia clara. Pode ser de direita ou esquerda, quase parasita ideias
e propostas que confortam os medos mais básicos da sociedade.
São duas as condições principais
para o surgimento de líderes populistas.
Talvez a mais
importante, o afastamento entre os cidadãos e a classe política. O
“establishment”, as elites no poder, os políticos profissionais (ou ocasionais)
percepcionados como corruptos e incapazes, são fonte da insatisfação que corrói
a confiança nas instituições.
As crises, sejam
económicas, de profunda desigualdade social ou de outra natureza. O populismo é
nacionalista ou, mais restritamente, nativista. Já em meados do século
XIX o Know Nothing Party (Partido “Não Sei Nada”) lutava contra os direitos
dos imigrantes, nomeadamente católicos, em favor dos protestantes
nascidos na América.
Finalmente, como identificar
um populista?
Pelo tom em geral
apocalíptico, profético, quase sempre zangado: Trump, Le Pen, Salvini. Pela
referência generalizada a inimigos figadais: elites, neoliberais, UE,
imigrantes. Pelo discurso nacionalista do “Portugal primeiro”, da “America
First”, “do meu bairro primeiro” (vale tudo). Pela posição contra o sistema,
contra os bancos, o aparelho financeiro, a especulação em geral.
Contrapõem-se-lhe o bom trabalhador, o cidadão médio, o pequeno empresário.
Um populista opõe-se
à religião como forma de alienação das pessoas, é anti-muçulmano, anti-judeu,
anti-católico, o que for preciso e sobretudo conveniente. Cultiva elaboradas,
quase inverosímeis (convencem muita gente) teorias da conspiração, que atribuem
às elites. É em geral eloquente, narcisista, sedutor. Usa uma linguagem
simples, uma lógica discursiva voluntarista, promessas vagas, um discurso
bipolarizado, polémico, cheio de pronomes pessoais e referências ao povo, à
pátria, à vontade nacional, à segurança (coisas boas), às elites, aos
financeiros, à integração europeia, aos sabotadores, aos imigrantes (coisas
más).
De vez em quando, o
populista fala de si próprio na terceira pessoa, enchendo a cena política de si
próprio, com os espectadores, o povo, convidado a participar. Mais do que uma
ideologia, expressa uma forma de narrativa que vai ao encontro das preocupações
e aspirações dos cidadãos e “lhes diz o que querem ouvir”. Como
escreve Poiares Maduro, “o populismo reduz a democracia ao voto da maioria”,
“acaba com os mecanismos de controlo e separação de poderes”, desvaloriza “os
factos e conhecimento” no processo democrático, condena qualquer dissidência
como traição e os opositores como sabotadores.
E em Portugal, o
populismo pode ser uma realidade?
O contrário seria
surpreendente. As condições estão reunidas, candidatos a populistas não faltam.
Experimentem aplicar os critérios acima enumerados ao que sucedeu com o
Sporting (e o país) nos meses mais recentes e aperceber-se-ão até que ponto,
numa escala obviamente menor, se tratou (ou não) de um fenómeno populista.
Um político popular
está próximo do povo para o aproximar das instituições e da política. Um
político populista aproxima-se do povo para o aproximar de si e alienar das
instituições e da política. Não são realidades distintas, são realidades
opostas.
O populismo em Portugal
é evitável, mas só se quem o pode evitar não menosprezar o risco (os políticos
em primeiro lugar). O primeiro passo, importante e urgente, é perceber as
razões que o podem criar. E combatê-las, também, ou sobretudo, pelo exemplo.
Caso contrário, o risco
converter-se-á em realidade e a realidade não será um lugar agradável para
viver.
III - Opinião
O que esconde a palavra
populismo
DN, 30 Junho 2018
A palavra do momento é
"populismo" mas poucos a definem, para além da conotação pejorativa
que lhe atribuem. O perigo é que se confundam as razões da popularidade do
populismo com o próprio populismo. Devemos atender às primeiras e combater o segundo.
O populismo é, na sua
origem, uma ideologia que faz coincidir na vontade popular não apenas a
democracia mas também a verdade. A conceção dominante de
democracia adotou, no entanto, uma conceção pluralista da procura da verdade.
Por isso, organizámos a democracia, não apenas como vontade da maioria, mas
como um processo deliberativo em que diferentes posições sobre o que é o bem
comum são contrapostas e discutidas no seu mérito ainda que, em ultima análise,
arbitradas através do voto maioritário. Para esta conceção liberal da
democracia, que valoriza a democracia representativa, a vontade maioritária
deve partir da qualidade dos argumentos e tem de coexistir com o respeito pelo
pluralismo.
O populismo
apresenta-se, historicamente, para combater estas dimensões elitista e
pluralista. Os movimentos populistas apresentam uma visão do Mundo dividido
entre as elites (que ocupam o poder) e o povo (concebido como uma unidade de
uma só vontade). A tarefa dos populistas é retomar o poder, em
nome do povo, contra essas elites. É fácil compreender o apelo que isto
representa em contextos históricos, como o atual, em que uma parte substancial
da sociedade se acha não representada pelo sistema político. É também
fácil perceber as consequências perversas a que o populismo conduz. Primeiro,
a vontade do povo (expressa pela maioria) é, por definição, a verdade e logo
não pode estar sujeita a nenhum mecanismo de controlo de poder. O
populismo reduz a democracia ao voto da maioria e acaba com os mecanismos de
controlo e separação de poderes. Segundo, uma vez que essa verdade não depende
do mérito, visto como reflexo do poder das elites, os factos e conhecimento são
desvalorizados no processo democrático. Por tudo isto, o populismo não
deixa margem para dissidências. Os que discordam são inimigos. Os que se opõem
são sabotadores. Todos os factos que não suportem a narrativa são explicados
como parte da conspiração das elites e, logo, apenas confirmam essa mesma
narrativa, ao demonstrar como tal conspiração é ampla e poderosa.
É irrelevante se um
populista acredita na missão que diz prosseguir ou se simplesmente a manipula
ao serviço de uma estratégia de poder pessoal. A consequência é a mesma: uma
concentração absoluta de poder. É essa concentração absoluta de poder que
inevitavelmente se vira contra aqueles que concederam esse poder. É por
isso que o populismo, partindo da democracia, acaba por a destruir.
* PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
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