É exagero, talvez, mas não
deixo de lembrar a frieza com que se escorraçaram populações de territórios
colonizados, se bem me lembro, e a avidez com que se ocuparam terrenos e
prédios e empresas num propósito de “nobre” igualitarismo que a esquerda reivindicou
e ainda hoje reivindica, na pretensão da tal superioridade moral de pés de
barro. O P. Gonçalo Portocarrero de
Almada revê o extermínio da família imperial russa e a fria crueldade dos
seus mandatários e posteriores exemplares de governantes criminosos que os
seguidores cá do burgo veneram, por conta da fraternidade e igualdade que lhes
aquece o sangue. Tudo isso já foi dito, é apenas uma revisão, leiamos os textos
de Portocarrero
e de José Manuel Fernandes - este, iniciado na mesma ilustração por
rebeldia ou intenção ilustrativa – que não justifica o seguidismo doutrinário -
não receou mudar de atitude por reflexão de sensatez, segundo demonstra.
I - RÚSSIA
O genocídio
dos Romanov /premium
OBSERVADOR, 27/7/2018
Omitir a responsabilidade moral
do regime que matou um casal inofensivo e os seus cinco jovens filhos é faltar
à verdade e ofender a memória das vítimas.
O ano 2018 é o do centenário
do fim da primeira guerra mundial, que foi a principal responsável pelo
desaparecimento de quatro grandes impérios e respectivas dinastias: o russo, com a destituição do czar em
1917; o austro-húngaro, na pessoa do
imperador Carlos I; o alemão, com a
abdicação do kaiser Guilherme II, que depois se exilou na Holanda, onde morreu
em 1941; e, por último, o otomano,
cujo califa, Maomé VI, foi destituído a 1 de Novembro de 1922, embora a
república da Turquia só tivesse sido proclamada a 29 de Outubro de 1923.
Curiosamente, tanto o kaiser
Guilherme II como o czar Nicolau II – kaiser
e czar são variações do título de César – eram primos direitos do rei
Jorge V da Grã-Bretanha. Com efeito, o imperador alemão era neto da
rainha Vitória, que também era avó de Jorge V. Este último era, por
sua vez, primo co-irmão do czar Nicolau II, com quem aliás era muito
parecido, mas por via das respectivas mães, que eram filhas do rei Cristiano
IX da Dinamarca. Este soberano bem podia ser cognominado, a par da
rainha Vitória, o avô da Europa, porque dele descendem os reis da Dinamarca, da
Noruega, da Grécia, da Rússia, da Grã-Bretanha, da Suécia, da Espanha e da
Roménia.
Destes quatro monarcas
destronados, dois mereceram a coroa da
santidade, bem mais valiosa do que a que, na terra, cingiram. Com efeito, Carlos
I de Áustria, que faleceu na Madeira, foi posteriormente beatificado pela
Igreja católica, estando também a caminho dos altares a sua falecida
viúva, a imperatriz Zita de Bourbon Parma, filha da infanta portuguesa Maria Antónia de Bragança e neta materna de
D. Miguel, irmão de D. Pedro IV de Portugal e primeiro imperador do Brasil.
Por sua vez, o último czar da Rússia,
Nicolau II, sua mulher e cinco filhos foram canonizados pela Igreja ortodoxa,
que os venera como mártires, por terem sido assassinados pelos bolcheviques, em
1918, por ódio à religião cristã.
São conhecidas as
circunstâncias dramáticas em que foi exterminada a família imperial russa, na
madrugada de 17 de Julho de 1918, em Ecaterimburgo. Não só os soberanos foram
mortos sem terem sido julgados, nem lhes ter sido dada nenhuma hipótese de
defesa, à boa maneira comunista, como também os seus cinco filhos foram
executados. Foram-no aliás sem dó nem piedade, não só porque eram absolutamente
inocentes das eventuais culpas de seus pais, mas também porque, por inépcia dos
assassinos, não tiveram uma morte imediata. Com efeito, depois da primeira
série de disparos na cave onde a família imperial russa foi morta, levantou-se
uma grande nuvem de pó e os executores saíram para fora, para melhor
respirarem. Porém, ouvindo os gemidos das vítimas, que também incluíam alguns
fiéis servidores da família imperial, entraram de novo na sala, para darem o
tiro de misericórdia aos que ainda agonizavam. Só Deus sabe o que foi o
sofrimento daqueles jovens, cuja única culpa era a de serem membros da família
imperial russa: foram mortos depois de assistirem à execução dos seus pais e de
padecer uma mais ou menos longa agonia, por incúria dos seus carrascos. Como é
da praxe em todos os regimes ditatoriais, nunca ninguém foi responsabilizado por
este hediondo crime, que contou com a aprovação de Lenin, que não era menos
brutal do que o seu sucessor, Stalin.
Não foram apenas o czar Nicolau II, a czarina Alix de Hesse, e
os seus filhos – as grã-duquesas Olga, Tatiana, Maria e Anastácia e o czarévitch
Alexis – que foram mortos pelo regime de Moscovo. Na realidade, as
autoridades bolcheviques tentaram exterminar toda a
família. Praticamente só sobreviveram os Romanov que emigraram, pois todos os
outros foram, pelo simples facto de serem parentes do deposto czar, eliminados
pela ditadura do proletariado.
É impressionante a lista dos
Romanov que os bolcheviques abateram, depois da revolução de Outubro de 1917.
Para além do czar, da czarina e dos seus cinco filhos –com idades eentre
os 13 e os 22 anos – também foi assassinado o grão-duque Miguel, o irmão do
czar que Nicolau II designou seu herdeiro e sucessor, na impossibilidade do
czarévich herdar a Coroa, pela sua pouca idade e grave hemofilia.
Já o czar Alexandre II, avô paterno de Nicolau II, tinha sido vítima
de um regicídio, em 1881; e um dos seus filhos, o grão-duque Sérgio morreu num
atentado, em 1905, mas outro, o grão-duque Paulo, foi morto pelos bolcheviques
em 1919. Dois sobrinhos de Alexandre II, ambos filhos do grão-duque
Constantino, foram também executados pelos sovietes: Nicolau, em 1918; e
Dimitri, em 1919. Deste Nicolau foi filho o príncipe Iskander, igualmente
assassinado pelos comunistas em 1919, no mesmo ano em que também foi morto
Boris, outro príncipe da família imperial. Também os filhos do grão-duque
Miguel, irmão do czar Alexandre II, não escaparam à sanha marxista-leninista:
seu filho Sérgio foi morto em 1918, enquanto os seus irmãos Nicolau e Jorge o
foram no ano seguinte.
Não obstante a perseguição comunista contra a família imperial, os
Romanov não se extinguiram. A sucessão da casa real russa foi assegurada pela
descendência de Vladimir, tio paterno do último czar. Seu filho Cirilo
sucedeu-lhe na chefia da casa e família imperial, intitulando-se, no exílio,
czar de todas as Rússias. Dele foi filho, entre outros, o grão-duque Vladimir,
que nasceu em 1917 e casou com uma princesa Bagration, que nas suas armas
ostenta a harpa do rei David, de quem essa família diz descender. Deles foi
única filha a grande-duquesa Maria, actual chefe da família Romanov e mãe do grão-duque Jorge, nascido em 1981. Será ele, algum dia, czar da Rússia? É
certo que não lhe falta legitimidade dinástica, mas é duvidoso que Putin nele
venha a restaurar, algum dia, o trono dos czares.
Milhares de russos, no centenário do assassinato de Nicolau II e da
sua família, peregrinaram até à catedral da fortaleza Pedro e Paulo, em São
Petersburgo, para venerarem os restos mortais dos mártires imperiais. A verdade
histórica não permite que se esqueça que foram vítimas de uma ideologia imoral
que, para alcançar os seus objectivos políticos, não teve pruridos em matar
pessoas inocentes, nomeadamente mulheres e crianças. Não prestar, no primeiro
centenário desta terrível tragédia, a devida homenagem ao czar e à sua família
seria matá-los outra vez. Como seria ofender a sua memória omitir, por cobarde
cumplicidade, a referência à responsabilidade moral do desumano regime que
impunemente matou um casal inofensivo e os seus cinco jovens filhos.
II - BLOCO DE
ESQUERDA
Assim se vê a “superioridade moral” dos
bloquistas /premium
OBSERVADOR, 30/7/2018
O episódio Robles, tal como outros envolvendo celebridades da esquerda
chique (Iglesias, Varoufaquis), só é compreensível indo às raízes do pensamento
radical, ao porquê da sua arrogância sem vergonha
Porque será que não fiquei surpreendido nem com os negócios
imobiliários de Ricardo Robles, nem com as reacções
histriónicas das suas companheiras de partido, que
começaram a disparar contra tudo e contra todos enovelando-se em artifícios
e mentirinhas?
Não, não foi por acreditar nas suas desculpas esfarrapadas e cheias de
contradições que não deixarão de o perseguir nos próximos
tempos.
Não fiquei surpreendido por uma
razão bem mais simples: porque é da natureza do Bloco e da ideologia que
alimenta o Bloco ser assim e actuar assim. É da natureza do Bloco porque
está-lhe na massa do sangue ver-se a si mesmo como estando acima dos demais,
como sendo a moral do regime. E é da natureza da sua ideologia porque ela vê-se
como “moralmente
superior” às demais.
Reparem na reacção de
Catarina Martins. As críticas a Ricardo Robles não eram
políticas – eram interesseiras, pois apenas visavam defender os interesses das
imobiliárias que o Bloco em bloco, e Robles em particular, tão corajosamente
têm atacado. E as notícias dos jornais não eram inocentes, muito menos fruto de
os jornalistas tratarem de cumprir a sua missão de fiscalização dos titulares
de cargos públicas, antes maquinações venais, peças encomendadas e conspirações
mal disfarçadas.
Há aqui algum descontrolo emocional que até nos diverte já que, ao
menos uma vez na vida, foram os bloquistas a ser apanhados em evidente
contrapé, tão fora de mão que nem conseguiram beneficiar da habitual
benevolência camaradas de muitas redacções. Contudo esse descontrolo emocional
apenas tornou mais evidente a forma de raciocinar do Bloco e dos seus
dirigentes.
Primeiro que tudo, Catarina
Martins, tal como Ricardo Robles, consideram-se políticos moralmente superiores
aos demais. Não há aqui nada de
novo, pelo contrário: eles apenas estão
na linha da tradição dos radicais de esquerda, dos jacobinos aos comunistas,
eles apenas seguem a cartilha de quem, sem tibiezas nem disfarces, assumiu essa
condição de estarem acima dos demais: nada menos que o próprio Álvaro Cunhal.
Sim, porque foi ele quem escreveu, significativamente em 1974, o ano da
revolução, um pequeno opúsculo intitulado A superioridade moral dos comunistas,
um texto que é muito útil revisitar pela sua clareza e um desassombro no limite
da arrogância.
Para Cunhal, “os comunistas não se distinguem apenas pelos seus
elevados objectivos e pela sua acção revolucionária, distinguem-se também pelos
seus elevados princípios morais”. Perguntar-se-á: porque são homens melhor do
que os outros? Não, como Cunhal tem o cuidado de explicar. Eles são superiores porque “a moral dos
comunistas é contrária e superior à moral burguesa”. Eles até podem ter
fraquezas, mas estão do lado certo da história, e é isso e só isso que conta
para os comunistas e seus aparentados (como são os bloquistas). A superioridade
da sua moral deriva de serem, por definição, agentes do bem e mensageiros de um
futuro radioso pois, como explicava o dirigente histórico do PCP, essa moral
identifica-se com a “natureza, objectivos e missão histórica do proletariado”.
O conceito chave aqui é “missão histórica”: é ele que autoriza tudo e
justifica tudo.
A argumentação deste livrinho surge-nos numa língua de pau a que já
não estamos habituados, mas a sua lógica mantém-se intacta: os radicais de
hoje, como os radicais de ontem, vêem-se como moralmente superiores porque
acham que lutam por uma sociedade sem classes, porque defendem que “a
propriedade é um roubo” (no sábado os bloquistas que foram ao acampamento de
juventude tinham um painel dedicado a esse tema, mas suponho que o nosso Robles
é capaz de não ter assistido) e entendem que só há uma sociedade decente, que é
aquela onde tudo é de todos e nada é de ninguém (o que sempre acabou com o partido e o Estado a serem donos de tudo, mas
isso são detalhes).
O paradoxo desta moral é que ela
pressupõe que os radicais sejam desprendidos dos bens materiais, e eles acham
mesmo que são. Ou, para ser mais exacto, acham que serão no dia em que se
realizar a sua utopia. Até lá fazem o que Lenine lhes ensinou: usam tudo o que
as nossas sociedades colocam ao seu dispor para atingirem os seus objectivos.
Fazem-no na acção política, mas não lhes repugna fazê-lo também nas suas vidas
pessoais. Isso não lhes causa qualquer problema de consciência – não causou a
Ricardo Robles, como não causa a Varoufakis (no seu apartamento com vista para
a Acrópole), como não causa a Pablo Iglesias (feliz na sua vivenda de 650 mil
euros), como não causa a todos os políticos do PT brasileiro que “fizeram como
os outros” e enriqueceram.
Por isso, repito, nada disto nos devia surpreender. É uma tradição
antiga, com raízes na Revolução Francesa e nos jacobinos de 1793, de quem, como
escreveu François Furet, o grande historiador desse período, “se esperava que
abrissem o caminho à burguesia, mas que nos deram o primeiro exemplo de
burgueses que detestam os burgueses em nome de princípios burgueses”. Foi
apenas o primeiro exemplo, pois muitos outros se seguiram, como recordou e
elencou no seu magistral estudo O Passado de uma Ilusão – Ensaio Sobre a Ideia Comunista no Século
XX.
Será possível encontrar melhor
encarnação dessa imagem de um burguês que detesta os burgueses do que Ricardo
Robles? É difícil, porque na verdade o vereador bloquista se atreveu a ir longe
demais no exercício da hipocrisia. Mas, de novo, temos de reconhecer
que as evidentes contradições entre o que diz e o que faz possuem antecedentes
famosos e, sobretudo, reveladores da doença congénita do radicalismo moralista.
Regresso à Revolução Francesa pois volta a ser nela, e na forma
trágica como evoluiu de uma libertação para uma opressão, e desta para o
Terror, que encontramos alguns dos males que hoje detectamos no radicalismo
“moralmente superior”. Edmund Burke, porventura o mais lúcido crítico
dos excessos franceses, não pode por exemplo deixar de notar, na crítica que
fez a um dos filósofos que inspirou os radicalismos revolucionários, Jean-Jacques Rousseau, que se tratava
de alguém que, ao mesmo tempo que se proclamava ao serviço da Humanidade não
tivera sequer a humanidade suficiente para não entregar os seus seis filhos a
um orfanato, tendo uma conduta pessoal deplorável. “A lover of his kind, but a
hater of his kindred”, escreveu de forma ácida mas certeira, interrogando-se
sobre se os homens deveriam ser julgados pelos seus comportamentos reais ou
pelas suas grandiosas, e “generosas”, proclamações. Ou seja, identificou um mal
que ainda hoje detectamos nos muitos “filhos de Rousseau” que por aí andam –
pois é isso que são, mesmo que gostem mais de se ver como “filhos de Marx”.
Na nossa esquerda chique, muito
bem representada nas fileiras do Bloco, esta condição é especialmente evidente.
O amor que proclamam pela causa dos pobres, ou dos idosos, ou dos doentes do
SNS, é sempre um amor tão absoluto e radical que só pode ser um amor
“abstracto”. É um amor que por isso mesmo nunca ou quase nunca se traduz em
acções desinteressadas de voluntariado, em gestos simples de solidariedade como
darem apoio a doentes em cuidados paliativos ou andarem pela cidade a
distribuir comida aos sem abrigo. Isso seria corromper o seu amor absoluto
porque isso seria “caridadezinha” – para além de que iriam misturar-se com as
organizações cristãs de solidariedade social, que abominam.
A nossa esquerda chique está cheia deste tipo de figuras – a que
Burke também chamou “filósofos da vaidade” –, mas imagino que nesta fase do meu
texto muitos pensem que exagero. Afinal nem todos são como Ricardo Robles, nem
todos fizeram, ou tentaram fazer, os negócios em que este se meteu, o que é uma
evidência. Afinal os que no Bloco são mais ortodoxos (como Luís Fazenda, o único
dirigente bloquista a distanciar-se do vereador lisboeta) sabem
que à “superioridade moral dos comunistas” deve corresponder também um mínimo
de esforço para seguir a chamada “moral comunista”, e que Robles está a milhas
dessa preocupação terrena.
Mas eu, que conheci por
dentro estas organizações (por lá andei entre os 15 e os 23
anos, depois curei-me), que li os livros que os inspiraram e inspiram e
participei em muitos convívios (na época não lhes chamávamos pomposamente
“workshops”) de formação de militantes, identifico nas Catarinas, nas Mortáguas
e nos Robles o mesmo sentimento de “superioridade moral” que sempre se respirou
nesses meios e que Álvaro Cunhal tão orgulhosamente reivindicou. A diferença é
que hoje já se abandonaram palavras como “proletariado” e “luta de classes”,
trocando-as por temas mais “urbanos” e preferindo os corredores das
universidades às cantinas das fábricas para difundirem a sua doutrina (nisso
são muito mais gramscianos do que leninistas). A diferença é que a esquerda chique é mesmo só ideologia e complexo de
culpa (pela sua condição burguesa), o que a torna ainda muito mais amoral.
Se não fosse este o ar que o
Bloco respira não se tinham unido todos e todas da forma como uniram na defesa
do indefensável.
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