terça-feira, 31 de julho de 2018

Tempos passados, tempos presentes, um mesmo ideal - o do fuzilamento



É exagero, talvez, mas não deixo de lembrar a frieza com que se escorraçaram populações de territórios colonizados, se bem me lembro, e a avidez com que se ocuparam terrenos e prédios e empresas num propósito de “nobre” igualitarismo que a esquerda reivindicou e ainda hoje reivindica, na pretensão da tal superioridade moral de pés de barro. O P. Gonçalo Portocarrero de Almada revê o extermínio da família imperial russa e a fria crueldade dos seus mandatários e posteriores exemplares de governantes criminosos que os seguidores cá do burgo veneram, por conta da fraternidade e igualdade que lhes aquece o sangue. Tudo isso já foi dito, é apenas uma revisão, leiamos os textos de Portocarrero e de José Manuel Fernandes - este, iniciado na mesma ilustração por rebeldia ou intenção ilustrativa – que não justifica o seguidismo doutrinário - não receou mudar de atitude por reflexão de sensatez, segundo demonstra.
I - RÚSSIA
O genocídio dos Romanov /premium
OBSERVADOR, 27/7/2018
Omitir a responsabilidade moral do regime que matou um casal inofensivo e os seus cinco jovens filhos é faltar à verdade e ofender a memória das vítimas.
O ano 2018 é o do centenário do fim da primeira guerra mundial, que foi a principal responsável pelo desaparecimento de quatro grandes impérios e respectivas dinastias: o russo, com a destituição do czar em 1917; o austro-húngaro, na pessoa do imperador Carlos I; o alemão, com a abdicação do kaiser Guilherme II, que depois se exilou na Holanda, onde morreu em 1941; e, por último, o otomano, cujo califa, Maomé VI, foi destituído a 1 de Novembro de 1922, embora a república da Turquia só tivesse sido proclamada a 29 de Outubro de 1923.
Curiosamente, tanto o kaiser Guilherme II como o czar Nicolau IIkaiser e czar são variações do título de Césareram primos direitos do rei Jorge V da Grã-Bretanha. Com efeito, o imperador alemão era neto da rainha Vitória, que também era avó de Jorge V. Este último era, por sua vez, primo co-irmão do czar Nicolau II, com quem aliás era muito parecido, mas por via das respectivas mães, que eram filhas do rei Cristiano IX da Dinamarca. Este soberano bem podia ser cognominado, a par da rainha Vitória, o avô da Europa, porque dele descendem os reis da Dinamarca, da Noruega, da Grécia, da Rússia, da Grã-Bretanha, da Suécia, da Espanha e da Roménia.
Destes quatro monarcas destronados, dois mereceram a coroa da santidade, bem mais valiosa do que a que, na terra, cingiram. Com efeito, Carlos I de Áustria, que faleceu na Madeira, foi posteriormente beatificado pela Igreja católica, estando também a caminho dos altares a sua falecida viúva, a imperatriz Zita de Bourbon Parma, filha da infanta portuguesa Maria Antónia de Bragança e neta materna de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV de Portugal e primeiro imperador do Brasil. Por sua vez, o último czar da Rússia, Nicolau II, sua mulher e cinco filhos foram canonizados pela Igreja ortodoxa, que os venera como mártires, por terem sido assassinados pelos bolcheviques, em 1918, por ódio à religião cristã.
São conhecidas as circunstâncias dramáticas em que foi exterminada a família imperial russa, na madrugada de 17 de Julho de 1918, em Ecaterimburgo. Não só os soberanos foram mortos sem terem sido julgados, nem lhes ter sido dada nenhuma hipótese de defesa, à boa maneira comunista, como também os seus cinco filhos foram executados. Foram-no aliás sem dó nem piedade, não só porque eram absolutamente inocentes das eventuais culpas de seus pais, mas também porque, por inépcia dos assassinos, não tiveram uma morte imediata. Com efeito, depois da primeira série de disparos na cave onde a família imperial russa foi morta, levantou-se uma grande nuvem de pó e os executores saíram para fora, para melhor respirarem. Porém, ouvindo os gemidos das vítimas, que também incluíam alguns fiéis servidores da família imperial, entraram de novo na sala, para darem o tiro de misericórdia aos que ainda agonizavam. Só Deus sabe o que foi o sofrimento daqueles jovens, cuja única culpa era a de serem membros da família imperial russa: foram mortos depois de assistirem à execução dos seus pais e de padecer uma mais ou menos longa agonia, por incúria dos seus carrascos. Como é da praxe em todos os regimes ditatoriais, nunca ninguém foi responsabilizado por este hediondo crime, que contou com a aprovação de Lenin, que não era menos brutal do que o seu sucessor, Stalin.
Não foram apenas o czar Nicolau II, a czarina Alix de Hesse, e os seus filhos – as grã-duquesas Olga, Tatiana, Maria e Anastácia e o czarévitch Alexis – que foram mortos pelo regime de Moscovo. Na realidade, as autoridades bolcheviques tentaram exterminar toda a família. Praticamente só sobreviveram os Romanov que emigraram, pois todos os outros foram, pelo simples facto de serem parentes do deposto czar, eliminados pela ditadura do proletariado.
É impressionante a lista dos Romanov que os bolcheviques abateram, depois da revolução de Outubro de 1917. Para além do czar, da czarina e dos seus cinco filhos –com idades eentre os 13 e os 22 anos – também foi assassinado o grão-duque Miguel, o irmão do czar que Nicolau II designou seu herdeiro e sucessor, na impossibilidade do czarévich herdar a Coroa, pela sua pouca idade e grave hemofilia.
Já o czar Alexandre II, avô paterno de Nicolau II, tinha sido vítima de um regicídio, em 1881; e um dos seus filhos, o grão-duque Sérgio morreu num atentado, em 1905, mas outro, o grão-duque Paulo, foi morto pelos bolcheviques em 1919. Dois sobrinhos de Alexandre II, ambos filhos do grão-duque Constantino, foram também executados pelos sovietes: Nicolau, em 1918; e Dimitri, em 1919. Deste Nicolau foi filho o príncipe Iskander, igualmente assassinado pelos comunistas em 1919, no mesmo ano em que também foi morto Boris, outro príncipe da família imperial. Também os filhos do grão-duque Miguel, irmão do czar Alexandre II, não escaparam à sanha marxista-leninista: seu filho Sérgio foi morto em 1918, enquanto os seus irmãos Nicolau e Jorge o foram no ano seguinte.
Não obstante a perseguição comunista contra a família imperial, os Romanov não se extinguiram. A sucessão da casa real russa foi assegurada pela descendência de Vladimir, tio paterno do último czar. Seu filho Cirilo sucedeu-lhe na chefia da casa e família imperial, intitulando-se, no exílio, czar de todas as Rússias. Dele foi filho, entre outros, o grão-duque Vladimir, que nasceu em 1917 e casou com uma princesa Bagration, que nas suas armas ostenta a harpa do rei David, de quem essa família diz descender. Deles foi única filha a grande-duquesa Maria, actual chefe da família Romanov e mãe do grão-duque Jorge, nascido em 1981. Será ele, algum dia, czar da Rússia? É certo que não lhe falta legitimidade dinástica, mas é duvidoso que Putin nele venha a restaurar, algum dia, o trono dos czares.
Milhares de russos, no centenário do assassinato de Nicolau II e da sua família, peregrinaram até à catedral da fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, para venerarem os restos mortais dos mártires imperiais. A verdade histórica não permite que se esqueça que foram vítimas de uma ideologia imoral que, para alcançar os seus objectivos políticos, não teve pruridos em matar pessoas inocentes, nomeadamente mulheres e crianças. Não prestar, no primeiro centenário desta terrível tragédia, a devida homenagem ao czar e à sua família seria matá-los outra vez. Como seria ofender a sua memória omitir, por cobarde cumplicidade, a referência à responsabilidade moral do desumano regime que impunemente matou um casal inofensivo e os seus cinco jovens filhos.

Assim se vê a “superioridade moral” dos bloquistas /premium
OBSERVADOR, 30/7/2018
O episódio Robles, tal como outros envolvendo celebridades da esquerda chique (Iglesias, Varoufaquis), só é compreensível indo às raízes do pensamento radical, ao porquê da sua arrogância sem vergonha
Porque será que não fiquei surpreendido nem com os negócios imobiliários de Ricardo Robles, nem com as reacções histriónicas das suas companheiras de partido, que começaram a disparar contra tudo e contra todos enovelando-se em artifícios e mentirinhas?
Não, não foi por acreditar nas suas desculpas esfarrapadas e cheias de contradições que não deixarão de o perseguir nos próximos tempos.
Não fiquei surpreendido por uma razão bem mais simples: porque é da natureza do Bloco e da ideologia que alimenta o Bloco ser assim e actuar assim. É da natureza do Bloco porque está-lhe na massa do sangue ver-se a si mesmo como estando acima dos demais, como sendo a moral do regime. E é da natureza da sua ideologia porque ela vê-se como “moralmente superior” às demais.
Reparem na reacção de Catarina Martins. As críticas a Ricardo Robles não eram políticas – eram interesseiras, pois apenas visavam defender os interesses das imobiliárias que o Bloco em bloco, e Robles em particular, tão corajosamente têm atacado. E as notícias dos jornais não eram inocentes, muito menos fruto de os jornalistas tratarem de cumprir a sua missão de fiscalização dos titulares de cargos públicas, antes maquinações venais, peças encomendadas e conspirações mal disfarçadas.
Há aqui algum descontrolo emocional que até nos diverte já que, ao menos uma vez na vida, foram os bloquistas a ser apanhados em evidente contrapé, tão fora de mão que nem conseguiram beneficiar da habitual benevolência camaradas de muitas redacções. Contudo esse descontrolo emocional apenas tornou mais evidente a forma de raciocinar do Bloco e dos seus dirigentes.
Primeiro que tudo, Catarina Martins, tal como Ricardo Robles, consideram-se políticos moralmente superiores aos demais. Não há aqui nada de novo, pelo contrário: eles apenas estão na linha da tradição dos radicais de esquerda, dos jacobinos aos comunistas, eles apenas seguem a cartilha de quem, sem tibiezas nem disfarces, assumiu essa condição de estarem acima dos demais: nada menos que o próprio Álvaro Cunhal. Sim, porque foi ele quem escreveu, significativamente em 1974, o ano da revolução, um pequeno opúsculo intitulado A superioridade moral dos comunistas, um texto que é muito útil revisitar pela sua clareza e um desassombro no limite da arrogância.
Para Cunhal, “os comunistas não se distinguem apenas pelos seus elevados objectivos e pela sua acção revolucionária, distinguem-se também pelos seus elevados princípios morais”. Perguntar-se-á: porque são homens melhor do que os outros? Não, como Cunhal tem o cuidado de explicar. Eles são superiores porque “a moral dos comunistas é contrária e superior à moral burguesa”. Eles até podem ter fraquezas, mas estão do lado certo da história, e é isso e só isso que conta para os comunistas e seus aparentados (como são os bloquistas). A superioridade da sua moral deriva de serem, por definição, agentes do bem e mensageiros de um futuro radioso pois, como explicava o dirigente histórico do PCP, essa moral identifica-se com a “natureza, objectivos e missão histórica do proletariado”. O conceito chave aqui é “missão histórica”: é ele que autoriza tudo e justifica tudo.
A argumentação deste livrinho surge-nos numa língua de pau a que já não estamos habituados, mas a sua lógica mantém-se intacta: os radicais de hoje, como os radicais de ontem, vêem-se como moralmente superiores porque acham que lutam por uma sociedade sem classes, porque defendem que “a propriedade é um roubo” (no sábado os bloquistas que foram ao acampamento de juventude tinham um painel dedicado a esse tema, mas suponho que o nosso Robles é capaz de não ter assistido) e entendem que só há uma sociedade decente, que é aquela onde tudo é de todos e nada é de ninguém (o que sempre acabou com o partido e o Estado a serem donos de tudo, mas isso são detalhes).
O paradoxo desta moral é que ela pressupõe que os radicais sejam desprendidos dos bens materiais, e eles acham mesmo que são. Ou, para ser mais exacto, acham que serão no dia em que se realizar a sua utopia. Até lá fazem o que Lenine lhes ensinou: usam tudo o que as nossas sociedades colocam ao seu dispor para atingirem os seus objectivos. Fazem-no na acção política, mas não lhes repugna fazê-lo também nas suas vidas pessoais. Isso não lhes causa qualquer problema de consciência – não causou a Ricardo Robles, como não causa a Varoufakis (no seu apartamento com vista para a Acrópole), como não causa a Pablo Iglesias (feliz na sua vivenda de 650 mil euros), como não causa a todos os políticos do PT brasileiro que “fizeram como os outros” e enriqueceram.
Por isso, repito, nada disto nos devia surpreender. É uma tradição antiga, com raízes na Revolução Francesa e nos jacobinos de 1793, de quem, como escreveu François Furet, o grande historiador desse período, “se esperava que abrissem o caminho à burguesia, mas que nos deram o primeiro exemplo de burgueses que detestam os burgueses em nome de princípios burgueses”. Foi apenas o primeiro exemplo, pois muitos outros se seguiram, como recordou e elencou no seu magistral estudo O Passado de uma Ilusão – Ensaio Sobre a Ideia Comunista no Século XX.
Será possível encontrar melhor encarnação dessa imagem de um burguês que detesta os burgueses do que Ricardo Robles? É difícil, porque na verdade o vereador bloquista se atreveu a ir longe demais no exercício da hipocrisia. Mas, de novo, temos de reconhecer que as evidentes contradições entre o que diz e o que faz possuem antecedentes famosos e, sobretudo, reveladores da doença congénita do radicalismo moralista.
Regresso à Revolução Francesa pois volta a ser nela, e na forma trágica como evoluiu de uma libertação para uma opressão, e desta para o Terror, que encontramos alguns dos males que hoje detectamos no radicalismo “moralmente superior”. Edmund Burke, porventura o mais lúcido crítico dos excessos franceses, não pode por exemplo deixar de notar, na crítica que fez a um dos filósofos que inspirou os radicalismos revolucionários, Jean-Jacques Rousseau, que se tratava de alguém que, ao mesmo tempo que se proclamava ao serviço da Humanidade não tivera sequer a humanidade suficiente para não entregar os seus seis filhos a um orfanato, tendo uma conduta pessoal deplorável. “A lover of his kind, but a hater of his kindred”, escreveu de forma ácida mas certeira, interrogando-se sobre se os homens deveriam ser julgados pelos seus comportamentos reais ou pelas suas grandiosas, e “generosas”, proclamações. Ou seja, identificou um mal que ainda hoje detectamos nos muitos “filhos de Rousseau” que por aí andam – pois é isso que são, mesmo que gostem mais de se ver como “filhos de Marx”.
Na nossa esquerda chique, muito bem representada nas fileiras do Bloco, esta condição é especialmente evidente. O amor que proclamam pela causa dos pobres, ou dos idosos, ou dos doentes do SNS, é sempre um amor tão absoluto e radical que só pode ser um amor “abstracto”. É um amor que por isso mesmo nunca ou quase nunca se traduz em acções desinteressadas de voluntariado, em gestos simples de solidariedade como darem apoio a doentes em cuidados paliativos ou andarem pela cidade a distribuir comida aos sem abrigo. Isso seria corromper o seu amor absoluto porque isso seria “caridadezinha” – para além de que iriam misturar-se com as organizações cristãs de solidariedade social, que abominam.
A nossa esquerda chique está cheia deste tipo de figuras – a que Burke também chamou “filósofos da vaidade” –, mas imagino que nesta fase do meu texto muitos pensem que exagero. Afinal nem todos são como Ricardo Robles, nem todos fizeram, ou tentaram fazer, os negócios em que este se meteu, o que é uma evidência. Afinal os que no Bloco são mais ortodoxos (como Luís Fazenda, o único dirigente bloquista a distanciar-se do vereador lisboeta) sabem que à “superioridade moral dos comunistas” deve corresponder também um mínimo de esforço para seguir a chamada “moral comunista”, e que Robles está a milhas dessa preocupação terrena.
Mas eu, que conheci por dentro estas organizações (por lá andei entre os 15 e os 23 anos, depois curei-me), que li os livros que os inspiraram e inspiram e participei em muitos convívios (na época não lhes chamávamos pomposamente “workshops”) de formação de militantes, identifico nas Catarinas, nas Mortáguas e nos Robles o mesmo sentimento de “superioridade moral” que sempre se respirou nesses meios e que Álvaro Cunhal tão orgulhosamente reivindicou. A diferença é que hoje já se abandonaram palavras como “proletariado” e “luta de classes”, trocando-as por temas mais “urbanos” e preferindo os corredores das universidades às cantinas das fábricas para difundirem a sua doutrina (nisso são muito mais gramscianos do que leninistas). A diferença é que a esquerda chique é mesmo só ideologia e complexo de culpa (pela sua condição burguesa), o que a torna ainda muito mais amoral.
Se não fosse este o ar que o Bloco respira não se tinham unido todos e todas da forma como uniram na defesa do indefensável.

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