A escrita na pedra, no papiro,
no pergaminho, no papel, as formas de impressão, a pena de pato,
a ardósia e o giz, o papel e os lápis e as canetas tão volúveis, o direito à
caneta de tinta permanente, a máquina de escrever, o stêncil e o papel químico…
e agora isto da Internet, e a rapidez com que se acede a esses mundos da
leitura e da escrita… Custa a crer que o livro esteja condenado, apesar da
rapidez do progresso informático. Mas não é para já, apesar do encerramento de
livrarias do nosso gosto, a Sá da Costa, a Coimbra Editora… E tudo isso ficou,
na biblioteca que temos à mão, de livros para manipular, amigos fiéis,
companheiros da vida, sempre disponíveis. É certo que a morte virá sem que os
tenhamos lido todos, porque foi maior a fome do que a disponibilidade temporal,
mas eles estão lá. Por vezes inúteis, com as novas formas de acesso ao
conhecimento, esta divina Internet. Como será daqui a uns tempos? Afinal, “livros
são papéis pintados com tinta…” Mas continuam a publicar-se, tenhamos fé. Como
diz Bagão Félix, «O livro pertence-nos na posse da sua leitura,
na visita da sua releitura, na memória do seu sossego.» E os editores são gente
que acompanhou o bem-estar das pessoas, compondo colecções de livros que nos
fazem revisitar o que outros editores já nos tinham dado, e oferecendo-nos
outros que não conhecíamos. Não, a Internet dá-nos muito, mas um livro é um
companheiro de viagem imprescindível e insubstituível, ainda que só na mesinha
de cabeceira das nossas insónias.
OPINIÃO
O livro resistirá?
O livro pertence-nos na posse da sua leitura, na visita da sua
releitura, na memória do seu sossego.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 22 de Junho de 2018
A Feira do Livro de Lisboa – a 88.ª – foi um êxito, desde logo pelo número de pavilhões, editoras
e visitantes. Feira do Livro, como outras no país, e não Feira dos
livros. Porque é uma festa do livro e da sua importância linguística,
cultural, educativa, social e relacional.
Jean Guitton disse sobre o livro que “se tivesse sido inventado
depois do computador teria sido uma grande invenção". Até por
variadas e curiosas razões, tais como um maior e acessível campo de
visualização, a sua completa disponibilidade, o não consumo de energia pela sua
leitura, e até o seu cheiro de maior ou menor vetustez.
O intelectual e polímata George Steiner escreveu, há uma década, um
pequeno livro com o belíssimo título O silêncio dos livros. Uma
obra onde alerta para a ameaça que paira sobre a escrita e o livro, no actual
contexto tecnológico e informacional, em que a tirania da tele e virtual
presença se tornou um novo “cárcere”. Por isso, ele conclui que “nunca os
verdadeiros livros foram tão silenciosos”.
O livro é docemente patrimonial, intimista dentro de nós. Pertence-nos
na posse da sua leitura, na visita da sua releitura, na memória do seu sossego.
Por isso, sabemos sempre onde encontrar a frase ou o excerto do livro que já
lemos, como quem sabe a gaveta do vestuário.
Pergunto-me a razão por
que leio uma série de livros no mesmo “espaço de tempo” (passe esta aparente
incongruência de juntar duas grandezas distintas em que uma não mede a outra),
em vez de ler até ao fim um livro de cada vez. Não por desistência da
leitura anterior, mas porque esse ritmo desordenado é a minha maneira de valorizar
cada um dos livros. Porque, para mim, o livro faz parte da família. Por isso,
gosto de repartir o meu relógio equitativamente, numa união entre o tempo
mental e espiritual e o modo como os livros se dão a ler. Hoje, preciso de ler
isto e não aquilo, amanhã será provavelmente diferente. A leitura e a companhia
do livro não são actos mecânicos. São função do estado de espírito, da
curiosidade, da utopia, até do cansaço em cada momento vivido. Porque um livro
é muito mais do que o ler.
Olho os livros todos os
dias. Fixamente e em vertigem. Como se tivesse que tudo ler hoje, porque amanhã
pode não ser tempo já de ler. Quero abraçá-los. Ler este e aquele, mas reler
aquele outro ainda. Sim, porque a releitura é um itinerário empolgante de uma
leitura sobre leitura em que me deixo envolver com encantamento.
A escassez ensinou-me a
valorizar o livro. Recordo-me dos tempos de infância, quando esperava com
ansiedade a biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian e escolhia os livros
que devorava com gosto e disciplina, naqueles poucos dias em que eram meus. Nos
tempos de agora, não posso deixar de salientar o Plano Nacional de Leitura, que
é bastante meritório e merece ser acarinhado como modo de criar boas práticas
de leitura nas futuras gerações. E nós sabemos quanto o país precisa disso,
face a uma realidade de falta de hábitos de leitura e de um certo conformismo
com a exiguidade do saber. É uma forma de lhes mostrar, desde muito cedo, o
carácter ao mesmo tempo valorizador e lúdico do livro, numa sociedade demasiado
obcecada e sôfrega com o mundo virtual e com a presença obsessiva da imagem
efémera e circunstancial.
Os tempos não estão,
porém, fáceis para a indústria do livro. Paradoxalmente, há hoje um
grande aumento de livros cá editados, ao mesmo tempo que há uma tendência para
um decréscimo de vendas. Segundo escassos dados conhecidos, neste século os
títulos em língua portuguesa aumentaram 63%, sobretudo através de obras
originais, conforme se constata no quadro. No entanto, em 2016 as editoras,
com receitas de 142 milhões de euros, tiveram uma quebra de 21,6 milhões de
euros face a 2011 (menos 2,75 milhões de livros), ano do auge da crise
económica no país. Em 2017 foram vendidos 11,9 milhões de livros (não
escolares) em Portugal (o que estatisticamente dá uma média de 1,1 livros por
ano por pessoa ou 1,3 livros para a população com mais de 14 anos), menos 5% do
que no ano anterior.
IPSIS VERBIS
CITAÇÃO: “O livro é um mudo que fala, um surdo
que responde, um cego que guia, um morto que vive” (P. António Vieira 1608-97)
OXÍMORO: Papiro digital
PALÍNDROMO (capicua de letras): Ame o
poema
CATACRESE: A badana do livro
PLEONASMO: Última versão
definitiva de um qualquer livro
De um modo alegórico, poder-se-á dizer que o
livro exprime alguma forma de supremacia do espírito sobre a matéria. O livro é
um antídoto contra as agora novas formas de ilusão e de alucinação com que se
faz negócio, se abrem auto-estradas de ruído e se proclamam ilusórias
comunidades ditas esclarecidas.
De novo, cito O silêncio dos livros: “A
educação moderna cada vez se assemelha mais a uma amnésia institucionalizada.
Deixa o espírito da criança vazio do peso das referências vividas. Substitui
até o saber de cor que é também um saber do (cor)ação, pelo caleidoscópio
transitório dos saberes efémeros. Reduz o tempo ao instante e vai instilando em
nós uma amálgama de heterogeneidade e de preguiça.”
SCIENTIA AMABILIS
Cyperus papyrus, L. (Papiro)
Trata-se de uma planta aquática ou perto de
cursos de água, originária da África, e muito difundida desde outrora no delta
do rio Nilo. Apresenta folhas perenes de um elegante verde, estreitas e erectas
que partem do centro de uma haste. O talo do papiro pode atingir alguns metros
de comprimento.
O papiro, enquanto meio material de uso para a
escrita no Antigo Egipto (por volta de 2500 a.C.) e Babilónia, depois alargado
ao mundo greco-romano, era obtido através do caule da planta, na sua parte
interna, mais clara e algo porosa, dividida em finas tiras que, depois de secas
e tratadas, eram unidas e prensadas. O papiro pronto era enrolado a uma vareta
de madeira ou marfim para criar o conjunto que seria usado na escrita. A
escrita obedecia à regra de ser concretizada paralelamente às fibras.
Entre nós, é comum uma outra espécie,
a Cyperus alternifolius, originária de Madagáscar, também chamada
falso-papiro e igualmente muito elegante na sua forma e cor e, como tal, uma
planta muito decorativa.
Nada tenho contra – bem pelo
contrário – as novas formas de transmissão de saberes, vivências, tempos. E se
a Internet veio substituir a ardósia das escolas e o e-mail o personalismo das
conversas e dos estados de alma, a importância substantiva do livro não
diminuiu na rota de uma maior mundividência.
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