Não há mais que temer. O Orçamento passou, é tudo uma questão de fé,
agora. No Santo António, no nevoeiro sebastianista, e, last but not least, no Jesus
Cristo com falta de biblioteca e de saber financeiro reduzido, mas um salvador
eficaz, diz-se na cartilha. Tout va bien qui finit bien. Oremus. Com Helena Pereira e com João Miguel Tavares, apesar do
cepticismo de ambos. Cantemos também. Com Zeca Afonso, o nosso bardo, que
ajudou ao arranque da nossa felicidade endividada:
O Que Faz
Falta
Quando
a corja topa da janela O que faz falta Quando o pão que comes sabe a
merda O que faz falta O que faz falta é avisar a malta O que
faz falta O que faz falta é avisar a malta O que faz falta
Quando
nunca a noite foi dormida O que faz falta Quando a raiva nunca foi
vencida O que faz faltaO que faz falta é animar a maltaO que faz
falta O que faz falta é acordar a malta O que faz falta
Quando
nunca a infância teve infância O que faz falta Quando sabes que vai
haver dança O que faz falta O que faz falta é animar a malta O que
faz falta O que faz falta é empurrar a malta O que faz falta
Quando
um cão te morde a canela O que faz falta Quando à esquina há sempre
uma cabeça O que faz falta O que faz falta é animar a malta O que faz
falta O que faz falta é empurrar a malta O que faz falta
Quando
um homem dorme na valeta O que faz falta Quando dizem que isto é tudo
treta O que faz falta O que faz falta é agitar a malta O que faz
falta O que faz falta é libertar a malta O que faz falta
Se o
patrão não vai com duas loas O que faz falta Se o fascista conspira
na sombra O que faz falta O que faz falta é avisar a malta O que faz
falta O que faz falta é dar poder à malta O que faz falta
EDITORIAL
O Orçamento de 2019 já passou
PÚBLICO, 14 de Julho de 2018
Para
já não há crise. Mas percebe-se bem como a
"geringonça" anda com o carro na reserva e está à beira de ficar sem
gasolina depois das legislativas de 2019.
O debate sobre o Estado da
Nação a que ontem assistimos foi verdadeiramente um debate sobre o estado da
"geringonça". E o que nos disse? Primeiro, que o Orçamento do Estado
para 2019, na prática, já passou. Depois de uma espécie de ultimatos e
contra-ultimatos na praça pública, BE e PCP conseguiram fazer mais de quatro
horas de debate sem encostar o Governo à parede nas matérias que lhes eram tão
caras apenas há uns dias: as alterações às leis laborais e a contagem integral
do tempo de serviço dos professores. Ninguém teve interesse em fazer do
hemiciclo um campo de batalha. Sinal de que as negociações de bastidores
estarão a correr bem e que as divergências poderão ser dirimidas em
conjunto com o Orçamento? Foi, aliás, comovente como os partidos da chamada "geringonça"
voltaram a aparecer tão bem alinhados num rewind do
discurso anti-Governo de Passos de 2015.
Em segundo lugar, percebeu-se bem como a "geringonça" anda
com o carro na reserva e está à beira de ficar sem gasolina depois das
legislativas de 2019. Esta é a conclusão a tirar depois de
ouvir o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, a pedir ao PS para não
"recuar" ou fazer "marcha atrás" na reposição de direitos e
investimentos públicos e o primeiro-ministro a responder-lhe que, segundo o Código
da Estrada, "mesmo numa auto-estrada, a velocidade máxima deve ser
ajustada às condições da via". PCP e BE não perdoam ao Governo ter ido
além das metas orçamentais impostas por Bruxelas e os bloquistas chegaram mesmo
a acusar ontem Costa de fazer letra morta do relatório sobre a sustentabilidade
da dívida pública. Esta será a inevitável discussão entre os partidos de
esquerda no pós-legislativas e, tal como Augusto Santos Silva vincou na entrevista ao PÚBLICO
e à Renascença esta semana, o Governo tem que
"agradecer" aos parceiros de esquerda por lhe terem permitido
cumprir com todas as metas do Tratado Orçamental. Ora, dificilmente BE e
PCP quererão ser colocados outra vez na posição de agradar a Angela Merkel,
Valdis Dombrovskis e, já agora, Mário Centeno. Talvez tanto quanto o PS
ambiciona uma maioria absoluta.
Por último, uma nota para a
forma como António Costa se dirige a Catarina Martins e a Jerónimo de Sousa.
Ontem, o primeiro-ministro disse, alto e bom som, que a "geringonça"
foi feita primeiro entre o PS e o PCP, a que se "juntou" o BE. Não
era um recado inocente, pois não?
OPINIÃO
Uma maioria absoluta para António Costa
O país descrito por António Costa é magnífico, sem
dúvida alguma – o meu problema é não saber onde ele fica. Alguém me arranja um
mapa que vá dar àquele Portugal?
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 14 de
Julho de 2018
Ao ouvir António Costa
discursar sobre o Estado da Nação, senti-me transportado para os Alpes suíços,
cercado de bonança existencial, fragrâncias primaveris, brisa fresca, cabrinhas
a balir e vacas voadoras. Só faltou aparecer Heidi, mais o seu avozinho. O país
descrito por António Costa é magnífico, sem dúvida alguma – o meu problema é
não saber onde ele fica. Alguém me arranja um mapa que vá dar àquele
Portugal?
Esperem, eu talvez saiba que
mapa é esse: é um mapa puramente
retórico, uma narrativa de reversão da austeridade, que a realidade não
confirma. Um mapa irreal mas suficientemente eficaz para sustentar a
relação com o Bloco de Esquerda e com o PCP (e o debate desta sexta-feira, ao
contrário de que muitos esperavam, não teve quaisquer arrufos entre parceiros e
Governo), e também suficientemente eficaz para alimentar a patética conversa de
que havia um senhor muito mau, chamado Passos Coelho, que andou quatro anos a
empobrecer o país e a destruir o Estado Social, e que depois foi substituído
por um senhor muito bom, António Costa, que anda há três anos a enriquecer o
país e a reconstruir o Estado Social. Desculpem
colocar isto desta forma, em linguagem infanto-juvenil, mas nada disto faz
sentido para quem tiver idade mental superior a oito anos.
António Costa utilizou há dias a fábula da Carochinha e do João Ratão,
para dizer que o PS não andava desesperado à procura de noivo para casar. Mas o
PS não é a Carochinha. O PS é o João Ratão, que era guloso e caiu no caldeirão
– para chegar ao poder, Costa assumiu uma solução de governo que tem vantagens
políticas, no sentido em que responsabiliza uma extrema-esquerda que até 2015
levou 40 anos a dizer “não” sem jamais ter de assumir as consequências daquilo
que propunha; mas que, ao mesmo tempo, amarra o país a um modelo de governação
incapaz de assumir medidas reformistas, ou um qualquer programa estratégico que
não passe por devolver dinheiro, carreiras ou tempo de serviço.
A solução encontrada pela dupla Costa/Centeno foi indiscutivelmente
engenhosa. Mas a única coisa que ela, na prática, vai
conseguir, é adiar a convergência de
Portugal com a Europa por mais uma década. O governo mudou a austeridade
de sítio – dos ordenados para as cativações; dos impostos directos para os
impostos indirectos –, e a esse movimento chamou “fim de austeridade”. Não é só uma mentira – é uma narrativa
ínvia com ressonâncias de verdade (muita gente recebe hoje, efectivamente, mais
dinheiro do que em 2014), que envenena a clareza necessária para a tomada de
opções políticas sérias, e turva a percepção dos portugueses sobre o real
Estado do país e as suas dificuldades estruturais.
Repetir infindáveis vezes que “o país está melhor”, esquecendo que o
país apenas se aproximou do PIB que existia em 2011, serve apenas para
alimentar um sentimento de dever cumprido, quando Portugal não fez nada do que
precisava para travar um inexorável processo de decadência económica em função
da pressão demográfica. Em 2018, os portugueses pagam mais por um Estado pior,
como já vai sendo tragicamente visível na sucessão de notícias sobre hospitais
em colapso. Em 2019 pagarão ainda mais por um Estado ainda pior – e assim
sucessivamente. Mas também lentamente. Nada disto é da noite para o dia. E é
por isso que já aqui escrevi que a reeleição de António Costa não será um
prémio, mas um castigo. Se o país está tão bem, ele que saboreie os frutos
daquilo que anda a semear.
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