Não deixa de parecer pura idiotia de
gente estranhamente glutona - por detrás dos seus gestos mansos mas orgulhosos
de si – caso de Biden – ou da aparência falsamente suave no olhar sinistro –caso
de Putin - este seu apetite descomunal pelo alargar, provocatoriamente, dos respectivos
espaços territoriais, de uma abrangência cada vez mais vasta graças ao
progresso técnico dos artefactos destruidores, sabendo de antemão os riscos que
isso comporta. JAIME NOGUEIRA PINTO, como sempre, alerta e narra com a destreza
e o brilho de sempre, ensinando, recordando, concluindo… No entretanto, a China
prepara o salto. Mas podem ser só ameaços, para lembrar que também ela é
concorrente nos vastos apetites territoriais … com menos idiotia, talvez, do
seu chefe Xi Jinping,
ciente do real poder que dá a ordem imposta com regras…
Mas o que nos vale, de facto, são as
claras análises de Jaime
Nogueira Pinto, comparando e
concluindo, em dramáticas
sinfonias enriquecedoras da nossa solidão estarrecida.
As guerras começam no Verão
As duas grandes guerras do séc. XX
começaram no Verão. Agora que da Ucrânia e de Taiwan nos chegam sinais de fogo,
será que a dissuasão nuclear ainda vale como protecção contra escaladas?
JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do
Observador
06 ago 2022,
07:155
O Verão foi quase sempre o tempo do começo
das guerras na Europa. As duas grandes guerras do século XX começaram
no Verão: a Primeira no fim de Julho de 1914, a Segunda em 1 de Setembro de 1939.
Durante milénios, os exércitos viveram da pilhagem dos territórios ocupados e até
à mecanização e à disponibilidade transazonal dos meios
logísticos era bom que as guerras começassem quando o tempo mais seco desimpedia os
caminhos da lama e as colheitas estavam quase maduras para os
invasores-predadores se abastecerem.
A dissuasão ainda vale?
Neste Verão de 2022, entre a
entrada em perigosa rotina da guerra na Ucrânia, as reacções
de Pequim à visita de Nancy Pelosi a Taiwan, a liquidação
de al Zawahiri no seu refúgio afegão pelos drones norte-americanos
e a crise económica anunciada para a Europa, não é estranho que muitos se
sintam inquietos com a convergência de sinais de fogo.
Será que o espectro da guerra nuclear, que tem sido o dissuasor da guerra
aberta, desde o Verão de 45, quando os japoneses de Hiroshima e Nagasaki
sofreram na carne os efeitos da arma definitiva, continua a funcionar como
protecção contra escaladas?
A Grande Guerra começou
por uma série de acontecimentos inesperados, a partir da morte de Francisco
Fernando de Habsburgo e da sua mulher morganática, Sofia Chotek. Uma morte
resultante de um grande azar, quando o motorista do Arquiduque se enganou no
trajecto e levou o casal para um cul
de sac, onde estava o terrorista Gravilo Princip, que os abateu com uma
pistola, à queima-roupa.
Nesse tempo, como explica A. J. P. Taylor em How Wars Begin, a mobilização
dos exércitos, de homens, cavalos, canhões, munições,
era o dado essencial para o desencadear das operações.
Por isso, a rede de comboios, mais desenvolvida nuns
países do que noutros, marcava a diferença e a escalada. A Alemanha tinha uma rede muito avançada;
a Rússia precisava de mais tempo para mobilizar.
A guerra foi acolhida com entusiasmo pelas multidões
– em Paris, em Londres, em Berlim –, multidões habituadas às guerras
curtas da batalha decisiva de Napoleão e Clausewitz. Mas em 1914, apesar de já haver metralhadoras e de, com o cavar
das trincheiras, a vantagem passar para a defesa, os generais ainda achavam que
o ataque e a iniciativa eram a chave da vitória. Quatro anos e milhões
de mortos depois, a linha da frente na Flandres só tinha variado 80
quilómetros.
A Segunda Guerra Mundial, uma continuação
e consequência da paz de Versalhes que humilhara a Alemanha mas a deixara como
potência
demográfica e económica, também começou no Verão,
com a Blitzkrieg contra a Polónia, que,
entre alemães e soviéticos, foi comprimida e vencida em
curtas semanas.
Depois veio a Guerra Fria que começou, simbolicamente, em 25 de Fevereiro
de 1948, com o golpe de Praga.
Num processo que seguiriam em toda a Europa Oriental, os soviéticos puseram os
comunistas checoslovacos no poder, desfazendo-se dos moderados que tinham por aliados numa frente supostamente popular. Mas a Guerra Fria era outra história, com o terror nuclear cruzado a refrear escaladas e
com o pacto de Ialta – assinado e garantido por
Estaline, Roosevelt e Churchill – a demarcar os espaços
em que cada grande beligerante podia actuar. Por causa de Ialta, os alemães de Leste,
os húngaros e os checos foram reprimidos em 1953, em 1956 e em 1968, e o PCP português ficou quieto
em 25 de Novembro de 1975, dando origem à hegemonia do Centrão no país dos brandos costumes.
Volta agora a
haver uma guerra quente na Europa Oriental nos limites da Eurásia, com os
ucranianos, invadidos pelos russos, a serem apoiados, em armas e munições,
pelos Estados Unidos e pelos Estados europeus, que assim enfrentam a Rússia por interpostos ucranianos. Nesta operação,
em que a Europa tem sido a primeira vítima das sanções
que decretou contra a Rússia, os riscos de escalada parecem, apesar de tudo,
sob controlo – embora os russos se desmultipliquem em avisos veladamente ameaçadores
e possa acontecer um azar limite, como o que levou o chauffeur do Arquiduque a
conduzir o patrão para a emboscada.
Taiwan e al Zawahiri: convergência americana
Na última semana, alguns
episódios vieram lembrar esses riscos de guerra: o
mais grave e o mais sensível foi a visita a Taipé, capital de Taiwan, da
presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Note-se que não
foi a primeira visita crítica de um político norte-americano a Taiwan: há
25 anos, o então presidente da Câmara dos Representantes, Newt Gingrich, um republicano conservador, liderou
uma delegação de 13 congressistas à
Coreia do Sul, Japão, China, Hong Kong e Taiwan. Nessa altura,
nem Hong Kong, nem Macau, tinham voltado à China e a visita de Gingrich a Taipé, em 2 de Abril, não
fora previamente anunciada – o dirigente norte-americano anunciara sim que os Estados Unidos defenderiam Taiwan se a China
atacasse.
Na visita, que durou três horas, Gingrich avistou-se
com o presidente Lee Teng Hui e com o vice-presidente Lien Chan. Na época,
respondendo à declaração de Gingrich de que os
Estados Unidos defenderiam Taiwan contra qualquer ataque da República Popular
da China, os chineses teriam respondido que, uma vez que não
pensavam atacar a ilha, os americanos não teriam que preocupar-se em
defendê-la…
Sabedoria confuciana que agora
parecem ter descartado: a chegada de Pelosi foi recebida com protestos verbais duros e com um
conjunto de exercícios militares, por terra, mar e ar, nas imediações
da ilha e no Estreito da Formosa. Também o líder
máximo chinês, o presidente Xi
Jinping, tem insistido que a unificação
de Taiwan com a República Popular da China é o seu objectivo primordial.
Entretanto, os exercícios militares de Pequim, com fogo real, rodeiam a ilha em
cinco frentes, mesmo a tocar no limite de 10 milhas das águas territoriais de
Taiwan.
A política em relação
à China é dos poucos pontos em que há convergência entre Republicanos e
Democratas e entre
as Administrações Trump e Biden.
Todos consideram
Pequim o poder desafiante à hegemonia norte-americana; e quer Biden, quer Pelosi, situam a rivalidade com a
China no plano ideológico e institucional – de democracias contra autocracias.
Embora Washington tenha conseguido que alguns dos aliados europeus prestem mais atenção às implicações e aos riscos político-económicos dos
investimentos chineses e haja uma retórica de solidariedade democrática para
com Taiwan, para a maior parte dos decisores europeus Taiwan é uma
“questão americana” e dos países do Pacífico, como
o Japão, a Austrália e a Coreia do Sul.
Assim, só a Lituânia,
que já entrara em ruptura com Pequim por causa de Taiwan, apoiou claramente a
visita de Pelosi. Não obstante, ainda há poucos meses, uma delegação
do Parlamento Europeu visitou Taipé, e quer Londres quer Berlim têm
criticado a política de direitos humanos de Pequim.
Os governantes europeus estão sobretudo preocupados
em manter os seus eleitorados mobilizados na política pró- Ucrânia e
anti-Putin para quando, com a chegada do Outono-Inverno, cair sobre eles a
austeridade causada pelas sanções
e pela resposta da Rússia às sanções
e a “salvação do planeta” e a
“contenção de Putin” começarem
a ter custos reais quotidianos para o cidadão comum.
Neste contexto, a liquidação do líder da Al Qaeda, Ayman al Zawahiri, em 31 de
Julho, atingido por um drone enviado pelo Deep State norte-americano, aparece
como um episódio
menor de uma guerra aparentemente já esquecida; uma guerra antiterrorista, que
continua a responder ao ataque à América com que o terrorismo jihadista abriu
este século.
Além de cumprir a tradição
americana de perseguir e punir os que atacam a América
e de vingar a “morte dos justos” (Hollywood, dos Westerns aos filmes B, está
cheia de fitas dessas), a operação teve também a intenção
de dar algum fôlego ao presidente Biden, cuja impopularidade bate recordes, e
aos Democratas, nas eleições de meio de mandato, em Novembro.
Biden pôde, assim, anunciar a operação, na esperança de que em Novembro
haja alguma melhoria nas urnas para os candidatos do seu partido.
Será́ difícil. De qualquer forma, não se chorarão muitas lágrimas
ocidentais por al Zawahiri e, até lá, a vida e o Verão tenderão a continuar,
com as férias de uns poucos e as guerras e os incessantes trabalhos de muitos.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR GUERRA CONFLITOS MUNDO UCRÂNIA EUROPA TAIWAN ÁSIA CHINA ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA
COMENTÁRIOS
Helder Machado: Arma
de neutrões de pequena potência, lançada num teatro de operações limitado, pode
estar no horizonte. Faz pouco ruído e só destrói tecido vivo. O
General Sayf ad-Din Rawi mencionou o lançamento de algo no Aeroporto
Internacional de Bagdá durante a invasão do Iraque em abril de 2003. O
material queimou vários soldados da Guarda Republicana, deixando a
infraestrutura em redor intacta. vitor Manuel: Excelente,
o que é normal, o artigo de J.N.P. Lamenta-se no entanto que o acontecimento
ocorrido há 75 anos, não tenha acontecido no país que já tinha assassinado
tantas dezenas de milhões de seres humanos. Não abateram a fera assassina
quando puderam, agora já é tarde. MMaria
Nunes: Excelente
artigo. bento guerra: O nuclear continuará a ser o
grande travão. Todos têm medo de abrir a garrafa que contém o monstro, de
consequências imprevisíveis. Mesmo assim, uma guerrazita como a da Ucrânia já
dá pano para mangas e muitos "bites" Maria
Nunes > bento guerra: O nuclear
continuará a ser o grande travão. Oxalá tenha razão. Com tanta gente
irresponsável, maquiavélica e doida como governantes, não sei não. Leopoldo Carvalhaes: Muito bom
Sekanevasse: Se não estou em erro, as 2 grandes guerras na Europa,
coincidiram com um presidente democrata na casa branca. Não quero implicar que
esse foi um factor importante, apenas uma coincidência. Mas, mais uma vez está
outro ponto alinhado para a escalada da guerra ucraniana. Américo Silva: A WWI e WWII foram o mesmo
episódio desdobrado. A haver nova guerra temos uma questão diferente: poderá
continuar a existir um mundo multipolar, ou apenas um império americano a
governar o mundo? o Japão e a Alemanha estão ocupados, ocupação que se estendeu
a toda a Europa ocidental pela união europeia, de Gaulle viu bem o problema, a
Austrália e Canadá são aliados firmes. Na África e Américas luta-se país a
país, João Lourenço que o diga. A ver vamos. Carlos Quartel:
Como refere o
autor, e muito bem, as guerras sempre se fizeram pelo saque, pelo roubo, pela
conquista e pela submissão do outro. E claro que se escolhia a
estação propícia, melhor tempo, colheitas à vista. Os vikings não vinham caçar
escravos para a Inglaterra ou para a França no Inverno, com o mar alteroso e em
todos os continentes havia povos que viviam assumidamente de roubar os
vizinhos. Avançámos algo, mas ainda não demos o salto para um patamar
civilizacional que nos livre dessa natureza de animal predador. Inventámos
novos nomes, douramos a pílula, mas é sempre o roubo, a subjugação e o
secreto desejo de pôr os outros a trabalhar para nós que está por detrás das
civilizadas conferências de gente engravatada. Antonio
Castanheira: Análise correcta,
mas o motorista do Arquiduque já anda aí! Meio Vazio: Uma das justificações da manutenção da assinatura.
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