sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Colisão


Entre o conceito de liberdade e a compostura ideológica do momento, cada novo conceito, estatuído momentaneamente em dogma, seguido das respectivas brechas trazidas pela evolução do pensamento, a velha moral restabelecendo o equilíbrio, com o envelhecimento dos próprios activistas ou a preponderância – também momentânea – dos novos forjadores e, na maioria dos casos, “importadores” dos conceitos de notoriedade passageira. Uma excelente crónica de Alexandre Homem Cristo seguida de comentários pertinentes de vários conhecedores.

Era-se mais livre

Na música, abdicou-se da transgressão e caiu-se no lado oposto — o da obsessão pela conformidade. Eis um sintoma de sociedade que se quer moderna e tolerante, mas que se tornou asfixiante e iliberal.

ALEXANDRE HOMEM CRISTO

OBSERVADOR, 11 ago 2022, 00:2126

A 29 de Julho, Beyoncé lançou um novo álbum que, instantaneamente, gerou uma onda de contestação: numa das canções, a artista menciona a palavra ‘spaz’, considerada ofensiva para quem tem deficiência — é utilizada como sinónimo de ‘estúpido’. Perante as críticas, Beyoncé poderia ter ignorado o assunto ou até defendido a sua liberdade artística. Mas a reacção da artista foi outra: desculpou-se e assegurou que retiraria a tal palavra da letra da sua canção.

O episódio soa a fait divers, mas interessa enquanto demonstração de como os artistas se deixam amarrar a indignações nas redes sociais, onde prevalecem ameaças de gente ofendida com o que é cantado, escrito ou feito. Ou seja, serve de exemplo de como os cantores e as bandas mais mediáticas hoje se submetem a esse condicionamento artístico: cada palavra é cuidadosamente escolhida para evitar ofensas, cada gesto é cuidadosamente estudado para prevenir acusações.

Olhando para trás, é fácil convencermo-nos de que passámos do 80 ao 8. Os maiores artistas do rock dos anos 1960 aos anos 1990 afirmaram-se através de canções que, deliberadamente, pisavam o risco quando cantavam sobre mulheres e homens, sobre nacionalidades e culturas, sobre orientações sexuais e, claro, sobre sexo (incluindo com menores). Era provocação, sim. Mas era também uma saudável indiferença às polémicas e às críticas, que sempre existiram. Onde hoje se acha normal o condicionamento asfixiante da autonomia artística, no passado havia uma afirmação de liberdade quase total. Uma liberdade tal que, por definição, seria sempre ofensiva para alguém, mas que não impediu que muitos artistas fossem (e ainda sejam) celebrados.

Brown sugar” (1971), dos The Rolling Stones, conta a história de um homem que, em Nova Orleãs, compra uma jovem escrava negra para satisfazer as suas fantasias sexuais sadomasoquistas — uma canção focada na sensualidade da mulher negra, sem qualquer rasto de censura social. Ainda sobre questões raciais, “One in a Million” (1988), de Guns n’Roses, expõe uma visão xenófoba sobre os imigrantes nos EUA que “espalham doenças” e que “pensam que podem fazer o que querem” — já agora, na canção, os homossexuais são metidos no mesmo saco. De resto, são várias as bandas que, num ou noutro momento, aderiram à misoginia, reduzindo as mulheres ao papel de satisfazer sexualmente os homens. Os AC/DC fizeram carreira a cantar sobre álcool, mulheres e sexo, celebrando aquilo que o Twitter hoje chamaria de ‘masculinidade tóxica’. “Some Girls” (1978), dos The Rolling Stones, é uma sequência de caricaturas sobre mulheres de diferentes etnias e nacionalidades — as mulheres negras só querem sexo, as mulheres italianas só querem carros, as mulheres chinesas são matreiras. Se fôssemos a outros estilos para além do rock, como o hip-hop e o rap, a redução da mulher a objecto sexual seria ainda mais frequente.

Daí que não seja de estranhar que a violência (física ou psicológica) sobre as mulheres esteja tão presente em várias canções dos clássicos do rock — e até nas vidas dos artistas, como John Lennon ou Serge Gainsbourg, um sedutor que era também um conhecido agressor. Voltando aos The Rolling Stones, “Under my Thumb” (1966) é sobre um homem a gabar-se de ter domínio total sobre uma mulher (o que ela faz, o que ela veste, o que ela diz), ao ponto de a descrever como animal doméstico, a sua “gata de estimação”. Jimi Hendrix, no seu clássico “Hey Joe” (1967), conta a história de um homem que mata a mulher por ciúme. Os próprios The Beatles já tinham aflorado a violência doméstica em “Run for your Life” (1965), a propósito de ameaças de morte em caso de traição.

Quando o tema é sexo com menores, os exemplos são ainda mais abundantes. Há “Goin’ Blind” (1974), dos Kiss, sobre a relação de um homem idoso com uma jovem de 16 anos — os Kiss voltaram ao tema em “Christine Sixteen” (1977). Há a “All in the Name of…” (1987), dos Mötley Crüe, sobre uma rapariga de 15 anos de “tirar o sono” — acerca da qual assumem: é ilegal, sim, mas legal não é a cena dos Mötley Crüe, que venderiam “a alma por sexo”. Há, também, “Don’t Stand so Close to me” (1980), dos The Police, sobre o romance interdito entre um professor e uma aluna de liceu. Ou, ainda, os The Doors em “Alabama Song”, na qual Jim Morrison procura desesperadamente um bar de whisky e uma moça pequena. E, por fim, há as canções explicitamente perversas. Por exemplo, Steely Dan, em “Everyone’s Gone to the Movies” (1975), canta sobre um homem que convida crianças para ver filmes (supõe-se que pornográficos) em sua casa e se “divertirem” com ele, desde que não contem aos pais.

A lista poderia ser ainda mais longa, mas o ponto já está ilustrado: a esmagadora maioria destas canções, hoje, não seria editada ou, pelo menos, não o seria nos termos em que surgiu nos respectivos discos. Dir-me-ão: ainda bem. Em parte, sim, porque há uma saudável evolução cultural (sustentada, por exemplo, na defesa de direitos das mulheres e das minorias raciais) nos últimos 50 anos que altera substancialmente a abordagem destes temas. A parte má é esta: nenhuma destas canções seria hoje assim editada porque nem os artistas nem as editoras discográficas se atreveriam.

Eis o que me parece triste de constatar: paralelamente à saudável evolução cultural, instalou-se uma cultura de intolerância para com tudo o que se desvie ou transgrida as normas sociaisque passou a ser visto como ofensivo. Nos anos 70 e 80, o rock afirmou-se ao ritmo de uma cultura de transgressão. Actualmente, impera a conformidade — a maioria dos artistas esforça-se para evitar desalinhamentos e corrige rapidamente o que possa ser recebido como ofensivo. Ou seja, na música (e não só), aceitou-se como normal ser-se hoje muito menos livre do que se era nos anos 1980. Em vez do culto da transgressão, caiu-se no extremo oposto — o do medo da ofensa e de uma obsessão doentia pela conformidade.

Se a questão se resumisse à arte que fica muitíssimo menos interessante, já seria lamentável. Mas, tudo piora quando mergulhamos no cerne da questão, escondido por detrás de aparentes faits divers como o de Beyoncé no início deste artigo: neste receio da crítica que os artistas exibem habita um pequeno sintoma de uma sociedade que se quer moderna e tolerante, mas que se tornou asfixiante e iliberal.

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COMENTÁRIOS:

Quorthon: Éramos muito mais livres nos anos 80 e 90, mas também não existiam as redes sociais onde tudo se amplifica exponencialmente. Podíamos dizer o que quiséssemos, mas também o que dizíamos não saía de um circulo restrito de pessoas. Hoje uma palavra ou frase nas redes sociais pode levar legítima ou ilegitimamente ao automático cancelamento ou até a processos judiciais. Hoje não me atrevo a dizer o que penso, pelo menos fora do meu círculo. As redes sociais são um cancro.           Miguel Couto: Bom Texto. Parabéns           Nuno Quental: Que disparate de texto. Então a sociedade actual deverá ser favorável a músicas com letras pedófilas por exemplo? Concordo que o pêndulo lá oscilou demasiado para a censura, mas os exemplos dados são completamente absurdos.          Pedro Cardoso > Nuno Quental: Onde é que o autor afirma que a sociedade actual deve ser favorável a músicas com letras pedófilas? Pareceu-me que seria um texto de interpretação simples, mas há sempre quem leia o que quer e não o que está escrito.            Nuno Quental > Pedro Cardoso: É evidente que a minha interpretação se depreende do artigo. Eu bem sei que o Alexandre H Cristo não pensa assim, mas o artigo desta vez saiu-lhe muito mal, precisamente pelo que apontei. Tal como escrevi, entendo o que ele quer dizer e até concordo com a ideia. Mas os exemplos dados são absolutamente disparatados.          Pedro Cardoso > Nuno Quental: Se entendeu, sabe que os exemplos são de liberdade, e não de realidades que devem existir. O facto de defender a liberdade artística não coloca o autor como defensor da obra criada.               Nuno Quental > Pedro Cardoso: Certo, o artista deve ter liberdade para criar sem se auto-censurar. Mas há limites. Uma música que faça a apologia da pedofilia está para mim completamente fora dos limites do aceitável. Portanto aí o autor deve abster-se de o favor. Podemos discutir outros exemplos concretos mas este pelo menos é flagrante.           Quorthon > Nuno Quental: Acho que você não entendeu o cerne da questão         João Floriano: Excelente crónica com a qual não posso estar mais de acordo. À tolerância de décadas passadas seguiu-se o politicamente correcto que degenerou na intolerância, censura e cancelamento. A reacção ao wokismo já  está em marcha e não deverá ser nada meiga. Sinto curiosidade em ver como irão reagir os que hoje em dia se arvoram em fiscais, em ditadores, em donos da verdade. Continua no entanto a ser um mistério a reverência e até medo que os novos puritanos  despertam em meios tradicionalmente conhecidos pela inovação e liberdade de pensamento como é o caso da música rock abordado neste texto.            Jorge Tavares: A cura está na indiferença.              Lourenço de Almeida: A aceitação mansa das imposições do poder - ou da maioria, já que, imposição é sempre imposição - a pretexto de salvar vidas durante o covid também cabe aqui. Quando a manda, ou o rebanho passam, é tudo arrastado. Nem as zebras nem os carneiros se distinguem uns dos outros quando andam em manada e fazem-no, naturalmente, porque os que saiam da forma, são comidos pelo leão ou postos na ordem pelos cães! Que bichos se comportem assim, é natural. Mas pessoas...?!           bento guerra: Já nem liga a essas provocações para "épater la forme" porque já não há forma. O disco da Beyoncé foi criticado porque, para vender uma normalidade musical, cobriu-a com 60 quilos de carne limpa à mostra. As pessoas estavam ávidas no pós-pandemia e comiam tudo.             Nuno Santos: Nos anos 70, 80 e 90 a música era popularizada por personalidades que se assumiam, gay, bi ou outra coisa qualquer e ninguém queria saber das suas preferências sexuais. Exemplos são Freddy Mercury, David Bowie ou Boy George. Neste momento, assumem-se sexualmente como uma questão politica ou de marketing.            Carlos Quartel: Esses movimentos são radicais, não têm dúvidas, possuem a verdade e querem impô-la. Não rejeitam o acosso, a calúnia e mesmo a agressão. Os sinais aí estão, desde chamarem assassino ao almirante ou quererem bater no Ferro. Um exemplo recente foi o acosso ao professor de Aveiro, despedido por manifestar as suas opiniões, fora da universidade e fora de todo contexto profissional. Mas não chegou, rua com ele. E com pleno acordo do reitor, que se pôs do lado dos novos arautos da boa nova. Lamentável, e lamentável também o pouco relevo dado ao assunto por quem discorda destas tentativas de pensamento único. A seguir ao pensamento, vem o parido único e a polícia política já se vê a despertar.           Francisco Tavares de Almeida: ... um pequeno sintoma de uma sociedade que se quer moderna e tolerante, mas que se tornou asfixiante e iliberal. Um pequeno activismo potenciado pela relevância mediática, que tem um discurso de modernidade e de tolerância para impor uma agenda asfixiante e iliberal. O que fazer? Como reagir à ameaça ? Como defender a liberdade? São perguntas que o artigo evitou dando o sujeito à sociedade, sem referir a pequena parte dela que é agente da mudança e a já não tão pequena parte que é afectada. P.S. Gostaria muito de compartilhar o optimismo do comentador anterior, Miguel Ramos, mas não tenho grande fé na capacidade de reacção desta sociedade. Pelo menos sem um estímulo exterior, tipo guerra. Aí sim, acabavam-se os activismos minoritários - a bem ou a mal - e outras minudências como a semana de 35 horas, etc., etc..            Ark NabuL > Francisco Tavares de Almeida: A guerra virá, mais possivelmente interna.            Sérgio: Certo. É no que dá demasiado protagonismo a algo acessório e fútil e banal....              Miguel Ramos: Não acredito que isto vá ficar por aqui, antevejo um movimento de reacção a esta javardice woke intolerante, até porque todos os sinais que vejo é de que estes especialistas em histeria colectiva são uma minoria da nossa sociedade.           Luís Rodrigues > Miguel Ramos: Estou menos optimista. As minorias ruidosas com voz amplificada nos meios de comunicação dominantes, e com a ajuda do fraco discernimento das audiências, têm vindo a impor os seus pontos de vista para lá do que seria normal esperar.             Lourenço de Almeida > Miguel Ramos: Não concordo. O wokismo demonstrado durante o covid foi esmagadoramente maioritário. Quem está preparado para retirar a liberdade aos outros por um qualquer motivo, fá-lo-á por qualquer outro. Por outro lado, nunca são as maiorias que se revoltam e se opõem à opressão. Isso são histórias da carochinha para legitimar revoluções à posteriori. A própria adesão entusiástica às revoluções, por massas humanas que na véspera conviviam naturalmente com aquilo que serviu de pretexto à revolução, mostra que das maiorias, só há a esperar que sigam aqueles que no momento tiverem vestido o capote de pastor! Boa parte das 80 mil pessoas que estiveram no Estádio de Alvalade em 31 de Março de 1974 a aplaudir o Marcello Caetano, estiveram a festejar o 25 de Abril nas ruas e no Estádio da FNAT a aplaudir o Soares e o Cunhal no dia 1 de Maio. Quem fez a mudança foram capitães do quadro das Forças Armadas e o principal motivo por que a fizeram nada teve que ver com a vontade da população. Tal como acontece com os socialistas, comunistas e marxistas em geral, a debacle começa por querelas internas. Se forem comunistas, matam-se uns aos outros, como fizeram com o Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Buharin, etc, etc, ou com o Nito Alves, Cita Vales e genericamente por todos os communists vítimas da própria intolerância. Se forem socialistas, o assassínio é mais figurado mas implodem na mesma. Só quando o wokismo atingir proporções tais que os próprios wokes se começarem a cancelar uns aos outros é que das cinzas poderá aparecer alguém que ponha ordem no pagode. Um novo Salazar. E depois, como não aprendemos nada e no caso português, somos uma cambada de irresponsáveis, o ciclo repetir-se-á eternamente! Ainda bem que não vivemos para sempre! Passar por estas e outras muito mais vezes levaria ao suicídio os mais coriáceos!             Ark NabuL > Luís Rodrigues: É isto o liberalismo dos USA, origem da Justiça Social, que discrimina em nome da não discriminação, que exclui em nome da inclusão, que uniformiza em nome da diversidade daí. As redes sociais apenas vieram tornar isto visível e se mérito houve nos confinamentos foi o de mostrar a muitos pais americanos as barbaridades que o ensino público promove. Existem já muitos wokes, e muitos estão na forja, não só nos USA mas também na europa. Se já se chegou so ponto de não retorno ou não, a próxima década dirá.              Maria Clotilde Osório: Era-se mais livre. Sem dúvida. E seguiamos, para o bem e para o mal, o lema "vive e deixa viver". Hoje "Big Brother is watching you!" já que se instituiu a moda dos "seguidores" (um termo que me incomoda) e dos "influencers" (idem)            Nuno Filipe: Não votar nos partidos woke… mas votar e denunciar os wokes sem medo acusá-los tal como eles acusam os outros. A maior parte desta nova censura vem de se continuar descaradamente a copiar a cultura americana. Da América nem bom vento nem bom casamento…              Alexandre Barreira: Ah grandre ZÉ Cabra. "deixei tudo por ela" !           Manuel Martins: Tem razão,  e Não seria necessário ir ao estrangeiro para encontrar essa asfixia cultural. Muitas da letras das canções dos anos 80 e 90 seriam hoje alvo de censura,  e até processos crime do ministério público. Nunca me recordo de  tanto escrutínio e censura . Veja por exemplo a canção "do beijinho" do Herman José,  quantas queixas crime seriam feitas pelas diferentes associações de indignação profissionais...

 

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