Entre o conceito de liberdade e a
compostura ideológica do momento, cada novo conceito, estatuído momentaneamente
em dogma, seguido das respectivas brechas trazidas pela evolução do pensamento,
a velha moral restabelecendo o equilíbrio, com o envelhecimento dos próprios
activistas ou a preponderância – também momentânea – dos novos forjadores e, na
maioria dos casos, “importadores” dos conceitos de notoriedade passageira. Uma excelente
crónica de Alexandre Homem Cristo seguida de comentários pertinentes de
vários conhecedores.
Era-se mais livre
Na música, abdicou-se da transgressão
e caiu-se no lado oposto — o da obsessão pela conformidade. Eis um sintoma de
sociedade que se quer moderna e tolerante, mas que se tornou asfixiante e
iliberal.
ALEXANDRE HOMEM CRISTO
OBSERVADOR, 11 ago
2022, 00:2126
A 29 de Julho, Beyoncé lançou um novo
álbum que, instantaneamente, gerou uma onda de contestação: numa das canções, a artista menciona a palavra ‘spaz’, considerada
ofensiva para quem tem deficiência — é utilizada como sinónimo de ‘estúpido’.
Perante as críticas, Beyoncé poderia ter ignorado o assunto ou até defendido a
sua liberdade artística. Mas a reacção da artista foi outra: desculpou-se e
assegurou que retiraria a tal palavra da letra da sua canção.
O
episódio soa a fait divers, mas interessa enquanto demonstração de como
os artistas se deixam amarrar a indignações nas redes sociais, onde prevalecem
ameaças de gente ofendida com o que é cantado, escrito ou feito. Ou seja,
serve de exemplo de como os cantores e as bandas mais mediáticas hoje se
submetem a esse condicionamento artístico: cada palavra é cuidadosamente
escolhida para evitar ofensas, cada gesto é cuidadosamente estudado para
prevenir acusações.
Olhando
para trás, é fácil convencermo-nos de que passámos do 80 ao 8. Os
maiores artistas do rock dos anos 1960 aos anos 1990 afirmaram-se através de
canções que, deliberadamente, pisavam o risco quando cantavam sobre mulheres
e homens, sobre nacionalidades e culturas, sobre orientações sexuais e, claro,
sobre sexo (incluindo com menores). Era provocação, sim. Mas era também
uma saudável indiferença às polémicas e às críticas, que sempre existiram. Onde hoje
se acha normal o condicionamento asfixiante da autonomia artística, no passado
havia uma afirmação de liberdade quase total.
Uma liberdade tal que, por definição, seria sempre ofensiva para alguém, mas
que não impediu que muitos artistas fossem (e ainda sejam) celebrados.
“Brown
sugar” (1971), dos The Rolling Stones,
conta a história de um homem que, em Nova Orleãs, compra uma jovem escrava
negra para satisfazer as suas fantasias sexuais sadomasoquistas — uma canção
focada na sensualidade da mulher negra, sem qualquer rasto de censura social.
Ainda sobre questões raciais, “One in a Million” (1988), de Guns
n’Roses, expõe uma
visão xenófoba sobre os imigrantes nos EUA que “espalham doenças” e que “pensam
que podem fazer o que querem” — já agora, na canção, os homossexuais são
metidos no mesmo saco. De resto, são várias as bandas que, num ou noutro
momento, aderiram à misoginia, reduzindo as mulheres ao papel de satisfazer
sexualmente os homens. Os AC/DC fizeram carreira a cantar sobre álcool, mulheres e
sexo, celebrando aquilo que o Twitter hoje chamaria de ‘masculinidade tóxica’.
“Some Girls” (1978), dos The
Rolling Stones, é uma
sequência de caricaturas sobre mulheres de diferentes etnias e nacionalidades —
as mulheres negras só querem sexo, as mulheres italianas só querem carros, as
mulheres chinesas são matreiras. Se fôssemos a outros estilos para além do
rock, como o hip-hop e o
rap, a redução da mulher a objecto sexual
seria ainda mais frequente.
Daí
que não seja de estranhar que a violência (física ou psicológica) sobre as
mulheres esteja tão presente em várias canções dos clássicos do rock — e até
nas vidas dos artistas, como John Lennon ou Serge Gainsbourg, um sedutor que
era também um conhecido agressor. Voltando aos The Rolling Stones, “Under
my Thumb” (1966) é sobre um homem a gabar-se de ter domínio total sobre uma
mulher (o que ela faz, o que ela veste, o que ela diz), ao ponto de a descrever
como animal doméstico, a sua “gata de estimação”. Jimi Hendrix,
no seu clássico “Hey Joe” (1967), conta a história de um homem que mata a
mulher por ciúme. Os próprios The
Beatles já tinham
aflorado a violência doméstica em “Run
for your Life” (1965), a
propósito de ameaças de morte em caso de traição.
Quando o tema é sexo com menores, os
exemplos são ainda mais abundantes.
Há “Goin’ Blind” (1974), dos Kiss, sobre a relação de um homem idoso com uma
jovem de 16 anos — os Kiss voltaram ao tema em “Christine Sixteen” (1977). Há a
“All in the Name of…” (1987), dos Mötley Crüe, sobre uma rapariga de 15 anos de
“tirar o sono” — acerca da qual assumem: é ilegal, sim, mas legal não é a cena
dos Mötley Crüe, que venderiam “a alma por sexo”. Há, também, “Don’t Stand so
Close to me” (1980), dos The Police, sobre o romance interdito entre um
professor e uma aluna de liceu. Ou, ainda, os The Doors em “Alabama Song”, na
qual Jim Morrison procura desesperadamente um bar de whisky e uma moça pequena.
E, por fim, há as
canções explicitamente perversas.
Por exemplo, Steely Dan, em “Everyone’s Gone to the Movies” (1975),
canta sobre um homem que convida crianças para ver filmes (supõe-se que
pornográficos) em sua casa e se “divertirem” com ele, desde que não contem aos
pais.
A
lista poderia ser ainda mais longa, mas o ponto já está ilustrado: a
esmagadora maioria destas canções, hoje, não seria editada ou, pelo menos, não
o seria nos termos em que surgiu nos respectivos discos. Dir-me-ão: ainda
bem. Em parte, sim, porque há uma saudável evolução cultural (sustentada,
por exemplo, na defesa de direitos das mulheres e das minorias raciais) nos
últimos 50 anos que altera substancialmente a abordagem destes temas. A parte
má é esta: nenhuma destas canções seria hoje assim editada porque nem os
artistas nem as editoras discográficas se atreveriam.
Eis o que me parece triste de constatar: paralelamente
à saudável evolução cultural, instalou-se uma cultura de intolerância para com tudo o que se desvie ou
transgrida as normas sociais — que
passou a ser visto como ofensivo. Nos anos 70 e 80, o rock afirmou-se
ao ritmo de uma cultura de transgressão. Actualmente,
impera a conformidade — a maioria dos artistas esforça-se para evitar
desalinhamentos e corrige rapidamente o que possa ser recebido como ofensivo.
Ou seja, na música (e não só), aceitou-se como normal ser-se hoje muito menos
livre do que se era nos anos 1980. Em vez do culto da transgressão, caiu-se no
extremo oposto — o do medo da ofensa e de uma obsessão doentia pela
conformidade.
Se a questão se resumisse à arte que fica muitíssimo
menos interessante, já seria lamentável. Mas, tudo piora quando mergulhamos no
cerne da questão, escondido por detrás de aparentes faits divers como
o de Beyoncé no início deste artigo: neste
receio da crítica que os artistas exibem habita um pequeno sintoma de uma
sociedade que se quer moderna e tolerante, mas que se tornou asfixiante e
iliberal.
LIBERDADE DE
EXPRESSÃO LIBERDADES SOCIEDADE CULTURA OBSERVAMOS
MAIS OBSERVADOR LAB MÚSICA CULTURA
COMENTÁRIOS:
Quorthon: Éramos muito mais livres nos anos 80 e 90, mas também não existiam as redes
sociais onde tudo se amplifica exponencialmente. Podíamos dizer o que quiséssemos,
mas também o que dizíamos não saía de um circulo restrito de pessoas. Hoje uma
palavra ou frase nas redes sociais pode levar legítima ou ilegitimamente ao
automático cancelamento ou até a processos judiciais. Hoje não me atrevo a
dizer o que penso, pelo menos fora do meu círculo. As redes sociais são um
cancro. Miguel
Couto: Bom Texto. Parabéns Nuno Quental: Que disparate de texto. Então a
sociedade actual deverá ser favorável a músicas com letras pedófilas por
exemplo? Concordo que o pêndulo lá oscilou demasiado para a censura, mas os
exemplos dados são completamente absurdos. Pedro Cardoso > Nuno Quental: Onde é que o
autor afirma que a sociedade actual deve ser favorável a músicas com letras
pedófilas? Pareceu-me que seria um texto de interpretação simples, mas há
sempre quem leia o que quer e não o que está escrito. Nuno
Quental > Pedro Cardoso: É evidente que a minha interpretação se depreende do
artigo. Eu bem sei que o Alexandre H Cristo não pensa assim, mas o artigo desta
vez saiu-lhe muito mal, precisamente pelo que apontei. Tal como escrevi,
entendo o que ele quer dizer e até concordo com a ideia. Mas os exemplos dados
são absolutamente disparatados. Pedro Cardoso > Nuno Quental: Se entendeu,
sabe que os exemplos são de liberdade, e não de realidades que devem existir. O
facto de defender a liberdade artística não coloca o autor como defensor da
obra criada. Nuno
Quental > Pedro Cardoso: Certo, o artista deve ter liberdade para criar sem se
auto-censurar. Mas há limites. Uma música que faça a apologia da pedofilia está
para mim completamente fora dos limites do aceitável. Portanto aí o autor deve
abster-se de o favor. Podemos discutir outros exemplos concretos mas este pelo
menos é flagrante. Quorthon >
Nuno Quental: Acho que você
não entendeu o cerne da questão. João Floriano: Excelente crónica com a qual
não posso estar mais de acordo. À tolerância de décadas passadas seguiu-se o
politicamente correcto que degenerou na intolerância, censura e cancelamento. A
reacção ao wokismo já está em marcha e não deverá ser nada meiga. Sinto
curiosidade em ver como irão reagir os que hoje em dia se arvoram em fiscais,
em ditadores, em donos da verdade. Continua no entanto a ser um mistério a
reverência e até medo que os novos puritanos despertam em meios
tradicionalmente conhecidos pela inovação e liberdade de pensamento como é o
caso da música rock abordado neste texto. Jorge
Tavares: A cura está na
indiferença.
Lourenço de Almeida: A aceitação mansa das imposições do poder - ou da maioria, já que,
imposição é sempre imposição - a pretexto de salvar vidas durante o covid
também cabe aqui. Quando a manda, ou o rebanho passam, é tudo arrastado. Nem as
zebras nem os carneiros se distinguem uns dos outros quando andam em manada e
fazem-no, naturalmente, porque os que saiam da forma, são comidos pelo leão ou
postos na ordem pelos cães! Que bichos se comportem assim, é natural. Mas
pessoas...?! bento
guerra: Já nem liga a
essas provocações para "épater la forme" porque já não há forma. O
disco da Beyoncé foi criticado porque, para vender uma normalidade musical, cobriu-a
com 60 quilos de carne limpa à mostra. As pessoas estavam ávidas no
pós-pandemia e comiam tudo. Nuno
Santos: Nos anos 70, 80 e
90 a música era popularizada por personalidades que se assumiam, gay, bi ou
outra coisa qualquer e ninguém queria saber das suas preferências sexuais.
Exemplos são Freddy Mercury, David Bowie ou Boy George. Neste momento, assumem-se
sexualmente como uma questão politica ou de marketing. Carlos Quartel: Esses movimentos são radicais,
não têm dúvidas, possuem a verdade e querem impô-la. Não rejeitam o acosso, a
calúnia e mesmo a agressão. Os sinais aí estão, desde chamarem assassino ao
almirante ou quererem bater no Ferro. Um exemplo recente foi o acosso ao
professor de Aveiro, despedido por manifestar as suas opiniões, fora da
universidade e fora de todo contexto profissional. Mas não chegou, rua com ele.
E com pleno acordo do reitor, que se pôs do lado dos novos arautos da boa nova. Lamentável, e lamentável
também o pouco relevo dado ao assunto por quem discorda destas tentativas de
pensamento único. A seguir ao pensamento, vem o parido único e a polícia
política já se vê a despertar.
Francisco Tavares de Almeida: ... um
pequeno sintoma de uma sociedade que se quer moderna e tolerante, mas que se
tornou asfixiante e iliberal. Um pequeno activismo potenciado pela relevância mediática,
que tem um discurso de modernidade e de tolerância para impor uma agenda
asfixiante e iliberal. O que fazer? Como reagir à ameaça ? Como defender a
liberdade? São perguntas que o artigo evitou dando o sujeito à sociedade, sem
referir a pequena parte dela que é agente da mudança e a já não tão pequena
parte que é afectada. P.S. Gostaria muito de compartilhar o optimismo do comentador anterior,
Miguel Ramos, mas não tenho grande fé na capacidade de reacção desta sociedade.
Pelo menos sem um estímulo exterior, tipo guerra. Aí sim, acabavam-se os
activismos minoritários - a bem ou a mal - e outras minudências como a semana
de 35 horas, etc., etc.. Ark
NabuL > Francisco Tavares de Almeida: A guerra virá, mais
possivelmente interna.
Sérgio: Certo. É no que dá demasiado protagonismo a algo acessório e fútil e
banal.... Miguel
Ramos: Não acredito
que isto vá ficar por aqui, antevejo um movimento de reacção a esta javardice
woke intolerante, até porque todos os sinais que vejo é de que estes
especialistas em histeria colectiva são uma minoria da nossa sociedade. Luís Rodrigues > Miguel Ramos: Estou menos optimista. As minorias ruidosas com voz
amplificada nos meios de comunicação dominantes, e com a ajuda do fraco
discernimento das audiências, têm vindo a impor os seus pontos de vista para lá
do que seria normal esperar. Lourenço de Almeida > Miguel Ramos: Não
concordo. O wokismo demonstrado durante o covid foi esmagadoramente
maioritário. Quem está preparado para retirar a liberdade aos outros por um
qualquer motivo, fá-lo-á por qualquer outro. Por outro lado, nunca são as
maiorias que se revoltam e se opõem à opressão. Isso são histórias da
carochinha para legitimar revoluções à posteriori. A própria adesão
entusiástica às revoluções, por massas humanas que na véspera conviviam
naturalmente com aquilo que serviu de pretexto à revolução, mostra que das
maiorias, só há a esperar que sigam aqueles que no momento tiverem vestido o
capote de pastor! Boa parte das 80 mil pessoas que estiveram no Estádio de Alvalade
em 31 de Março de 1974 a aplaudir o Marcello Caetano, estiveram a festejar o 25
de Abril nas ruas e no Estádio da FNAT a aplaudir o Soares e o Cunhal no dia 1
de Maio. Quem fez a mudança foram capitães do quadro das Forças Armadas
e o principal motivo por que a fizeram nada teve que ver com a vontade da
população. Tal como acontece com os socialistas, comunistas e marxistas em
geral, a debacle começa por querelas internas. Se forem comunistas,
matam-se uns aos outros, como fizeram com o Trotsky, Zinoviev, Kamenev,
Buharin, etc, etc, ou com o Nito Alves, Cita Vales e genericamente por todos os
communists vítimas da própria intolerância. Se forem socialistas, o assassínio
é mais figurado mas implodem na mesma. Só quando o wokismo atingir proporções
tais que os próprios wokes se começarem a cancelar uns aos outros é que das
cinzas poderá aparecer alguém que ponha ordem no pagode. Um novo Salazar. E
depois, como não aprendemos nada e no caso português, somos uma cambada de
irresponsáveis, o ciclo repetir-se-á eternamente! Ainda bem que não vivemos
para sempre! Passar por estas e outras muito mais vezes levaria ao suicídio os
mais coriáceos! Ark NabuL > Luís Rodrigues: É isto o liberalismo dos USA, origem da Justiça
Social, que discrimina em nome da não discriminação, que exclui em nome da inclusão,
que uniformiza em nome da diversidade daí. As redes sociais apenas vieram tornar isto visível
e se mérito houve nos confinamentos foi o de mostrar a muitos pais americanos
as barbaridades que o ensino público promove. Existem já muitos wokes, e muitos
estão na forja, não só nos USA mas também na europa. Se já se chegou so ponto
de não retorno ou não, a próxima década dirá. Maria Clotilde
Osório: Era-se mais
livre. Sem dúvida. E seguiamos, para o bem e para o mal, o lema "vive e
deixa viver". Hoje "Big Brother is watching you!" já que se
instituiu a moda dos "seguidores" (um termo que me incomoda) e dos
"influencers" (idem) Nuno Filipe: Não votar nos partidos woke…
mas votar e denunciar os wokes sem medo acusá-los tal como eles acusam os
outros. A maior parte desta nova censura vem de se continuar descaradamente
a copiar a cultura americana. Da América nem bom vento nem bom casamento… Alexandre Barreira: Ah grandre ZÉ Cabra. "deixei
tudo por ela" !
Manuel Martins: Tem razão, e Não seria necessário ir ao estrangeiro para encontrar
essa asfixia cultural. Muitas da letras das canções dos anos 80 e 90 seriam
hoje alvo de censura, e até processos crime do ministério público. Nunca
me recordo de tanto escrutínio e censura . Veja por exemplo a canção
"do beijinho" do Herman José, quantas queixas crime seriam
feitas pelas diferentes associações de indignação profissionais...
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