“Misturados”. Foi Camões
quem o disse - acrescentando o “Engenho”
- a
D. Sebastião, oferecendo o seu “Braço às
armas feito” e a sua “Mente às Musas
dada”, o que lhe valeria uma tença como a nossa Sophia bem sublinha. É claro que não é o caso de Paul Bowles, que oferece ao mundo uma obra de
destaque, sem precisar de louvaminhar, para obter a tença e o culto que o mundo
lhe prestará sem regateio, e verdadeiramente deslumbrado, julgo eu, que é como
me sinto também, pela extrema racionalidade – entre outras características –
que nos traz o seu discurso multifacetado.
E eu aqui vou viajando com Bowles - não um Marco Polo viageiro, (ou,
para puxar a brasa à nossa sardinha, um posterior - a este último - Fernão
Mendes Pinto aventureiro) – e não também só pelos confins asiáticos, nem sequer
apenas pelos espaços concretos e pontuais do vasto mundo, mas pelos desdobramentos
abstractos do seu mundo cultural - literário, artístico, tecnológico, a que
teve acesso o seu didactismo e engenho múltiplos, que tornam o seu relato
fascinante, pelo que nos revela, repito, de saber e orientação cultural, de uma
reflexão humanística apurada pela muita leitura e experiência vivida.
É, por exemplo, o que nos transmite o
texto “Janelas sobre o passado” (Joliday,
Janeiro 1955), no qual, a propósito de um “rapaz com um livro brochado debaixo do braço” - «Romancero Gitano»
de Garcia Lorca - que mal entende e não lê, mas de que se regozija porque sabe
quem foi Garcia Lorca - e quando regressar aos Estados Unidos levará não só as
emoções desse dia em Sevilha, onde viu o “retablo
da sua catedral”, o pátio das laranjeiras visto do parapeito da Giralda, a
cigana que dançou para ele num pequeno café do outro lado do rio em Triana, a
verdura dos jardins por detrás do Alcázar» - mas também o livro de Lorca, como “agente catalisador” para apuramento
das riquezas inesquecíveis que a experiência vivida “desde rapaz” logo então
marcou, para futuros apetites que soube procurar na sua vida.
A propósito, pois, dessa referência ao
seu caso pessoal, fez Paul Bowles uma ampla análise
sobre a identidade cultural dos Estados Unidos, por confronto com os países
europeus, em termos de dimensão, que, ao contrário da sua liderança económica e
tecnológica, se encontra limitada do ponto de vista de formação clássica,
herdeiros que são de uma cultura já estabelecida nos países donde provieram os
conquistadores desses espaços, mas sem o percurso pelo reconhecimento clássico
original, que fundamentou a formação europeia dos seus antecessores, ali
estabelecidos por invasão e conquista, e que foram sujeitos a tantas outras
influências – as nativas e as impostas através dos movimentos migratórios ao
longo dos tempos.
Vale, pois, a pena transcrever alguns
excertos destas magníficas páginas, que nos mostram o fascínio americano pelos
espaços culturais europeus, em turismo apoiado por amplo poder económico, espaços
que nos fazem a nós, portugueses, confrontar-nos com idêntico sentimento de
deslumbramento cultural, embora sem a equiparação económica possibilitadora de idênticos
entusiasmos turísticos viageiros, os nossos eventos culturais de massas cada
vez mais centrados nas diversões bem antigas e simpáticas do espectáculo popular,
que acarinhamos essencialmente, como povo especialmente garrido e sensível que
somos – felizmente que compensados por alguns génios da universalidade,
sobretudo literária – Pessoa, Camões,
Eça, Vieira.
Eis alguns excertos deste verdadeiro “ensaio”
de reflexão bem certeira:
«…A
tendência deste século está a ser estabelecida pela América para o mundo inteiro.
(Conta-se até que Lenine terá dito no seu leito de morte: “Americanizem-se”). Quer
estejamos já ou não equipados na realidade para tal tarefa, nós os
americanos estamos agora razoavelmente habituados a considerarmo-nos como
líderes. Safamo-nos muito bem em empreendimentos que exijam organização,
perseverança, zelo e, é claro, a técnica. Em matérias culturais, porém,
muitas vezes damos por nós olhando ainda para o outro lado do Atlântico em
busca de orientação. Atribuir esse olhar retrógrado ao mero snobismo
estético é como explicá-lo em parte, admito-o, mas não na totalidade. Existem
razões mais profundas para que a Europa ainda contenha algo de importante para
nós.
Penso
que é a questão da técnica que se interpõe no caminho do completo e desimpedido
florescimento da nossa cultura.
Na precipitação de sabermos como nos esquecemos disso temos de saber primeiro o
quê. E ganhamos crescente consciência de que uma sobre-ênfase na técnica produz
um resultado artístico insatisfatório. De forma inconsciente ou não exigimos
algo de melhor, estamos inquietos, suspeitamos haver perdido algum elemento
vital para a modelação de uma cultura. De outro modo porque estamos nós tão
conscientemente fascinados pela Europa – um pouco desdenhosos da idade
dela, como é evidente, mas levados a explorá-la, ano após ano, década
após década, em quantidades sempre crescentes – a menos que seja por a
nossa intuição nos dizer que haveremos de encontrar aquilo que queremos ali,
entre os vestígios do nosso passado tribal imediato?
Para
alguns a pesquisa conduz a museus, catedrais, festivais específicos – as evidências
bem embaladas da cultura da Europa. Ainda não há muito tempo fui assistir à Tosca
nas Terme di Caracalla em Roma; a rua
brilhava lá no alto, havia uma audiência de dez mil pessoas, a produção e a
representação eram soberbas, e não eram usados microfones. Ao mesmo tempo estava
a decorrer mais uma temporada anual de ópera na vasta Arena Romana de
Verona, e logo que essa chegasse ao fim,
seguir-se-ia a data de abertura do XIV Festival Internacional de Cinema
em Veneza. Se calendizar as viagens de modo a gratificar
os seus gostos, poderá apanhar o Festival Shakespeare em Stratford-on-Avon, ou o Festival do Ballet Real Dinamarquês em
Copenhaga, ou
a milagrosa peça “Petrus de Dácia”
na ilha de Gotland, ao largo da costa da Suécia, e qualquer um dos inúmeros festivais de música, entre os quais alguns
celebram a obra de um único compositor (Sibelius em Helsínquia, Hayden em
Bayreuth), outros oferecem
uma programação mais generalista (Salzburgo, Estrasburgo, Granada, e outros ainda especializam-se com rigor (o
Festival Dolmetsch de Música Antiga
Inglesa em Halsmere, no Surrey, ou os Concertos de Carrilhão em Bruges, na
Bélgica. Particularmente no verão, a
Europa fervilha com tais actividades.
Isso
é excelente. Mas creio que aquilo de que nós os americanos andamos à procura e
a coisa mais importante que poderemos trazer connosco, é algo de mais
abrangente. Eu deveria chamar-lhe uma infância – uma infância pessoal que tenha
alguma relação com a infância da nossa cultura. Culturalmente falando, o pouco
tempo que passámos na América não é nada em comparação com o tempo
infinitamente maior que passámos na Europa, e parecemos ter esquecido esse
passado autêntico, perdido contacto com o solo psíquico da tradição em que as
raízes da cultura têm de estar ancoradas.
A
nossa civilização acessória não tem qualquer ligação visível com o passado ;
ela não é a continuação nem o produto de algum mito profundamente entranhado, e
por mais que a secção racional do espírito possa aprová-la, a outra parte do
espírito, a parte que efectivamente determina as preferências em vez de as
explicar, está insatisfeita com isso. O que nós queremos é experimentar aquele
brilho que chega a um indivíduo quando ele sente para lá de qualquer dúvida que
é uma parte integral, ainda que infinitesimal, da continuidade histórica. E a
Europa, caso nos aproximemos dela sem ideias preconcebidas quanto àquilo que
constitui a sua “cultura” – simplesmente com um pouco de humildade e um pouco
de imaginação – oferece-nos essa infância perdida, a infância que nunca
aconteceu, mas cuja evocação pode ser de grande auxílio para nos ajudar a
situarmo-nos no tempo e no espaço. É o primeiro passo, o passo indispensável,
em direcção a sabermos o que somos para nós e o que somos no mundo.
A
cultura é essencialmente uma questão de usar o passado para dar sentido ao
presente. A cultura de um homem é a soma das suas memórias. Não consistirá numa
abundância de factos, nomes e datas que ele tenha na ponta dos dedos, mas será
antes a soma de tudo o que ele pensou e sentiu – ou seja – conheceu…..»
E a reflexão continua, sobre o que é
para ele a verdadeira cultura – a cultura de uma terra, as “pessoas que nela vivem, com os seus hábitos”, mais do que “a sua história”, todavia.
E contudo, aquilo que explicitou sobre o
ambiente cultural europeu serviu-nos a nós para saborearmos mentalmente esses
prazeres da intelectualidade europeia participada pelos povos que a ela têm
acesso, (em termos de música clássica) e lembrarmos com pena quanto também nós,
portugueses, estamos afastados dessa cultura musical que foi gradualmente
esmorecendo, apesar dos esforços de programas antigos como os de António Vitorino
ou de vozes de ópera que a televisão ou a rádio por vezes traziam à baila, como
as de Tomás Alcaide, Carlos Guilherme, Helena Vieira… e que hoje parecem
inexistentes. Lembro também o pianista Sequeira Costa, o violinista Vasco
Barbosa com a sua irmã Grazi Barbosa, que foram a Lourenço Marques, e a cujos
recitais nós íamos, os alunos do liceu, que distribuía pedagogicamente os
bilhetes – memórias que ficaram, embora sem continuidade em cultura musical,
que não tínhamos, apesar do Canto Coral com as suas escassas luzes.
É bem uma viagem encantadora, esta dos
escritos de Paul Bowles, que vou continuar a saborear, mesmo em leitura
vagarosa, variadas que são as suas experiências, em narrativas cheias de vida.
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