Será que resolvem alguma coisa?
Nós por cá dizíamos – disse-o Zeca Afonso – “Eles comem tudo e não deixam nada”. Não sei se acontece o mesmo por lá. Hoje vi vários programas sobre esse facto, quer no Dubai ou no Katar, quer mesmo a respeito do presidente russo, não sei se este explorou os construtores das suas riquezas como lá pelas Arábias o fazem, escandalosamente. O certo é que ouvi que era o homem mais rico do mundo, mas devo estar enganada, apesar do seu barco e do seu palácio de estarrecer, tanto é o esplendor deles, que a Sic – acho que foi a Sic – mostrou. Só o que penso é que, com tantos esforços para arrasar tudo à sua volta, o presidente russo nem se goza dessas benesses que criou para si, coitado. A vida é muito injusta, de facto, de tão precária. Mas o Erdogan vai dando a sua mãozinha a uns e a outros, sem esquecer o help yourself da sua própria sobrevivência, que ele não é nenhum tolo, Deus o conserve.
Erdoğan: o mediador improvável que aparenta ser um líder mundial (e arruma uma casa a arder) sempre que põe Putin a negociarvai ajudando, a uns e a outros sem esquecer o help yourself
Erdoğan encontra-se com Putin esta sexta-feira para discutir a questão da Ucrânia. Com uma inflação galopante e eleições em 2023, Presidente turco tem tentado mediar conflito. O que ganha com isso?
JOSÉ CARLOS DUARTE: Texto
OBSERVADOR, 04 ago 2022, 23:35
Quando
a 22 de julho a Ucrânia e a Rússia assinaram em Istambul o contrato que
permitia a saída dos cereais retidos nos portos ucranianos, vários líderes mundiais saudaram
a iniciativa do Presidente turco. Recep
Tayyip Erdoğan fez aquilo que mais nenhum conseguira até então: convencer o Kremlin a sentar-se à
mesa das negociações e a negociar algo efectivo com Kiev. Foi talvez o momento
desta caminhada em que ganhou mais pontos. Pontos que lhe valem poder interna e externamente.
Desde
o início da invasão, Erdoğan tem estado empenhado em construir pontes
entre a Rússia e a Ucrânia, multiplicando-se em iniciativas para
mediar o conflito entre os dois países. Deste modo, o chefe de Estado turco tem ganhado
relevância na comunidade internacional, a
que se somam vários elogios. E tem conseguido que passe para segundo plano a
difícil conjuntura interna, assim como as anteriores tensões que a Turquia
mantinha com o Ocidente.
A primeira iniciativa liderada pela Turquia aconteceu duas semanas após o início da invasão. A cidade da Antália foi o local escolhido para o primeiro encontro entre o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, e o seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba. No final de março, Istambul foi palco de outras negociações com o objectivo de chegar a um cessar-fogo. Apesar de nenhuma destas reuniões ter levado a um resultado concreto, Erdoğan somava pontos internacionalmente
O que esperar do encontro entre Erdoğan e Putin?
Após vários contactos com o apoio das
Nações Unidas, as discussões entre a Rússia e a Ucrânia para a exportação de
cereais em meados de julho foram um sucesso para a diplomacia turca. Esta
sexta-feira, num outro esforço diplomático, o Presidente turco deslocar-se-á à
cidade de Sochi, na Rússia, para se
reunir com o seu homólogo russo. Os dois líderes discutirão o funcionamento
do sistema de exportação de cereais, a ofensiva militar na Ucrânia e também a
questão da Síria. Será o segundo encontro em menos de duas semanas com o chefe de
Estado russo, sendo Erdoğan o único capaz de quebrar o aparente
isolamento de Vladimir Putin.
Erdoğan — um novo líder mundial?
Todas as iniciativas diplomáticas turcas
fazem Pinar Tremblay, cientista
política e analista no portal Al-Monitor’s, afirmar que o governo turco,
Erdoğan e o seu partido — Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, sigla em
turco) — têm um “amor inexplicável pela mediação”. Em declarações ao Observador, a especialista
sinaliza, porém, que a Turquia tem tentado mediar “sem sucesso” outros
conflitos, principalmente no Médio Oriente. Por outro lado, não aceita bem a
mediação dos seus conflitos. “Infelizmente, chegou-se ao ponto de a Turquia
precisar, mas rejeitar todas as tentativas [de mediação] nos seus
conflitos com vários países, tais como a Síria, o Iraque e a Grécia”, nota.
Pinar Tremblay acredita que,
com a mediação do conflito na Ucrânia, o Presidente turco quer “tornar-se
relevante” e assumir o papel “de mediador da paz” — com “dois
princípios” bem delineados por trás. Para explicar o primeiro, a especialista
recorre a uma expressão idiomática para explicar que mais vale a Turquia
estar envolvida nas negociações do que afastar-se da questão: “Ou se está sentado à mesa, ou então
está-se no menu”. Além disso, a especialista em política
salienta que Ancara “tem uma
inabilidade para enfrentar a Rússia e os Estados Unidos e isso obriga [a
Turquia] a desempenhar um papel”.
A especialista
não tem dúvidas de que esta é a estratégia de Erdoğan, apontando a duplicidade
na maneira como tem gerido o conflito. “A Turquia não aplicou sanções à
Rússia”, começa por dizer a especialista, algo que é contraditório com o facto
de Ancara estar a vender “drones” e armamento à Ucrânia.
Esta estratégia de agradar a gregos e troianos serve
para o nome de Erdoğan “aparecer nas notícias internacionais” e ajudá-lo
a “manter
a aparência de líder mundial” diante
da sociedade turca. De acordo com a cientista política, o objetivo do
Presidente é, sobretudo, “tornar-se relevante” e
ganhar voz num mundo em que têm aumentado os focos de tensão.
Também
o antigo embaixador da União Europeia (UE) na Turquia e membro do think tank Carnegie Europe, Marc Pierini, concorda que a
guerra na Ucrânia poderá demonstrar que Ancara “desempenha um papel importante
nos assuntos mundiais”. Em declarações ao Observador, este especialista
sublinha que o encontro em Sochi desta sexta-feira consubstancia mais uma
oportunidade para “demonstrar que o Presidente Erdoğan é influente” na comunidade internacional.
Eleições à vista — e o perigo de Erdoğan perder
2023 é o ano em que Erdoğan será novamente posto à
prova pelos eleitores num cenário que lhe é bastante menos favorável,
envolvendo uma muito provável crise económica e problemas migratórios. “Devemo-nos lembrar que há eleições presidenciais e parlamentares em
2023”, assinala ao
Observador Ali
Bilgic, professor de Política Internacional na Universidade de Loughborough. O docente destaca também que “todas as sondagens revelam que é
muito provável que a aliança” liderada pelo
partido de Erdoğan “possa perder ambas”.
As
sondagens mostram que Erdoğan tem razões para se preocupar, apesar de algumas
ainda lhe darem a vitória (mas nunca tão confortável como a de há quatro anos).
Por exemplo, um estudo de opinião publicado em janeiro deste ano, indica que o actual Presidente perderia, por uma margem mínima, o acto eleitoral para o social-democrata Kemal Kılıçdaroğlu. A diferença em comparação com 2018 é abismal — Erdoğan
passava de 52,6% para 29%.
As eleições para escolher o Presidente são importantes na Turquia, principalmente após a última revisão constitucional apoiada por Erdoğan. O regime turco deixou de ser parlamentar e passou a ser presidencial, com os poderes do chefe de Estado a saírem muito reforçados (o Presidente passou a desempenhar as funções de primeiro-ministro, cargo que foi abolido), algo que não agradou à oposição, que almeja voltar ao anterior sistema.
Não é só a presidência que pode mudar — a composição do parlamento turco também poderá mudar radicalmente. O partido do Presidente turco conseguiu 42,56% nas eleições de 2018, o que permitiu Erdoğan governar praticamente sem oposição. No entanto, uma sondagem de julho deste ano, que contou com mais de 11 mil inquiridos, revela que, no próximo acto eleitoral, o AKP não ia além dos 28%, ao passo que o Partido Republicano do Povo obteria 29,6%, conseguindo destronar o partido do chefe de Estado.
O Presidente turco “enfrenta o
maior desafio político desde que está no poder”, vaticina Asli Aydıntaşbaş, especialista em
política turca num artigo no European Council on Foreign Affairs. Ainda que a
guerra na Ucrânia “tenha restaurado a imagem da Turquia enquanto um importante
ator geopolítico e tenha dado a Erdoğan mais visibilidade” do que nunca, tal
não parece suficiente para cativar os eleitores.
Além disso, a
oposição da Turquia está a reorganizar-se à semelhança do que aconteceu em
França (com a coligação de esquerda NUPES a conseguir tirar a maioria a
Emmanuel Macron no Parlamento francês), na Hungria (cujos esforços da
oposição foram em vão, já que Viktor Orbán voltou a vencer as eleições com
maioria absoluta) ou em Israel (em que a aliança da oposição conseguiu derrotar
Benjamin Netanyahu, que havia sido primeiro-ministro durante 11 anos).
“Conhecidos pela sua ineficácia e fragmentação, os
partidos de oposição da Turquia estão agora unificados e, apesar das suas
diferenças ideológicas, formaram uma aliança eleitoral com o objetivo de derrotar Erdoğan”, diz Asli Aydıntaşbaş, que lembra que uma coligação
formada por partidos que se opunha ao Presidente turco conseguiu vencer várias
autarquias nas eleições regionais de 2019, incluindo Istambul e a capital
Ancara.
"Conhecidos
pela sua ineficácia e fragmentação, os partidos de oposição da Turquia estão
agora unificados e, apesar das suas diferenças ideológicas, formaram uma
aliança eleitoral com o objetivo de derrotar Erdoğan"
O que esperar do encontro entre Erdoğan e Putin?
Embora
a oposição ainda não tenha escolhido o candidato que defrontará Erdoğan nas
urnas — apenas é expectável que aconteça no início de 2023 —, as sondagens
mostram, segundo Asli Aydıntaşbaş, que o atual Presidente é “menos popular do
que alguns dos seus rivais, incluindo o autarca de Ancara ou de Istambul”.
Inflação,
“cofres vazios” e migrações: o que está a correr mal a Erdoğan?
É “legítimo” e faz sentido pensar que a
gestão no conflito na Ucrânia ajudará o Presidente turco nas urnas. No entanto,
segundo Marc Pierini, “as eleições de 2023 serão
provavelmente mais influenciadas pelo estado débil da economia, pela política monetária mal concebida e
pela situação deplorável do Estado de direito” na Turquia.
A
situação económica da Turquia tem sido o principal motivo de queixa por parte
dos eleitores. E os dados económicos mostram o porquê. A inflação global
em julho chegou aos 79,6%, o valor mais alto dos últimos 24 anos — e os preços
subiram, no mês passado, 2,37%. As previsões não são favoráveis: à Al Jazeera,
Jason Tuvey, especialista em mercados financeiros, considera que “mesmo que a inflação esteja próxima de um
pico, continuará muito elevada durante vários meses”.
A guerra na
Ucrânia veio agravar a inflação na Turquia, mas a situação é mais antiga. “A economia turca tem estado numa espiral de
‘inflação alta-desemprego alto’ desde há uns anos”, indica Ali Bilgic, que
reforça que para tal contribuiu “a falta de disciplina fiscal” e o “fim
da independência do Banco Central Turco, que aprofundou a crise
económica”. “Sabemos que a
guerra tem levado a uma subida de preços na energia e outros bens essenciais em
países como a Turquia, que já estava a enfrentar desafios económicos, mas
a situação é muito pior do que a do Ocidente”, expõe o professor de Política Internacional na
Universidade de Loughborough.
Ali
Bilgic, professor de Política Internacional na Universidade de Loughborough “Os
cofres do Estado turco estão vazios”, declara Asli Aydıntaşbaş, que refere que
o Presidente turco adoptou uma política contra “a lógica convencional da
economia”: “Erdoğan argumenta que as altas taxas de juros são a principal causa
dos problemas económicos do país. Assim, em vez de permitir que o banco central
aumente as taxas para controlar a inflação, o governo
usou as reservas cambiais para tentar estabilizar os mercados, vendendo as
reservas através dos bancos estatais”.
A
estratégia pessoal que Erdoğan adotou levou a que moeda turca desvalorizasse 48% em 12 meses. Há duas semanas, um dólar equivalia a 17,5 liras, o valor mais baixo desde
dezembro de 2021. Para se ter a noção do aumento, em 2019, um dólar valia cerca de seis
liras.
Outro
dos problemas que o Presidente turco enfrenta prende-se com a questão migratória. Na sequência da guerra civil na Síria, vários migrantes
deslocaram-se para outros países, um dos quais a vizinha Turquia, que adoptou
uma política de porta aberta. Em 2015, a situação agravou-se e cada vez mais
pessoas queriam entrar não só em território turco, como também na Europa. A
chegada de milhões de refugiados criou uma pressão nunca vista no sistema de asilo
europeu.
Tendo em conta que a Turquia era uma das
principais rotas de passagem dos migrantes, a União Europeia decidiu,
em
2016, acordar com os dirigentes turcos que todos “os novos migrantes
irregulares que chegassem às ilhas gregas provenientes da Turquia seriam
devolvidos a este último país”. A UE investiu três mil milhões de euros e
financiou projectos em solo turco “destinados aos refugiados, nomeadamente no
domínio da saúde, da educação, das infraestruturas, da alimentação e outras
despesas de subsistência”.
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