terça-feira, 9 de agosto de 2022

Eles sabem muito


Será que resolvem alguma coisa?

Nós por cá dizíamos – disse-o Zeca Afonso – “Eles comem tudo e não deixam nada”. Não sei se acontece o mesmo por lá. Hoje vi vários programas sobre esse facto, quer no Dubai ou no Katar, quer mesmo a respeito do presidente russo, não sei se este explorou os construtores das suas riquezas como lá pelas Arábias o fazem, escandalosamente. O certo é que ouvi que era o homem mais rico do mundo, mas devo estar enganada, apesar do seu barco e do seu palácio de estarrecer, tanto é o esplendor deles, que a Sic – acho que foi a Sic – mostrou. Só o que penso é que, com tantos esforços para arrasar tudo à sua volta, o presidente russo nem se goza dessas benesses que criou para si, coitado. A vida é muito injusta, de facto, de tão precária. Mas o Erdogan vai dando a sua mãozinha a uns e a outros, sem esquecer o help yourself da sua própria sobrevivência, que ele não é nenhum tolo, Deus o conserve.

Erdoğan: o mediador improvável que aparenta ser um líder mundial (e arruma uma casa a arder) sempre que põe Putin a negociarvai ajudando, a uns e a outros sem esquecer o help yourself

Erdoğan encontra-se com Putin esta sexta-feira para discutir a questão da Ucrânia. Com uma inflação galopante e eleições em 2023, Presidente turco tem tentado mediar conflito. O que ganha com isso?

JOSÉ CARLOS DUARTE: Texto

OBSERVADOR, 04 ago 2022, 23:35

Quando a 22 de julho a Ucrânia e a Rússia assinaram em Istambul o contrato que permitia a saída dos cereais retidos nos portos ucranianos, vários líderes mundiais saudaram a iniciativa do Presidente turco. Recep Tayyip Erdoğan fez aquilo que mais nenhum conseguira até então: convencer o Kremlin a sentar-se à mesa das negociações e a negociar algo efectivo com Kiev. Foi talvez o momento desta caminhada em que ganhou mais pontos. Pontos que lhe valem poder interna e externamente.

Desde o início da invasão, Erdoğan tem estado empenhado em construir pontes entre a Rússia e a Ucrânia, multiplicando-se em iniciativas para mediar o conflito entre os dois países. Deste modo, o chefe de Estado turco tem ganhado relevância na comunidade internacional, a que se somam vários elogios. E tem conseguido que passe para segundo plano a difícil conjuntura interna, assim como as anteriores tensões que a Turquia mantinha com o Ocidente.

A primeira iniciativa liderada pela Turquia aconteceu duas semanas após o início da invasão. A cidade da Antália foi o local escolhido para o primeiro encontro entre o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, e o seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba. No final de março, Istambul foi palco de outras negociações com o objectivo de chegar a um cessar-fogo. Apesar de nenhuma destas reuniões ter levado a um resultado concreto, Erdoğan somava pontos internacionalmente

O que esperar do encontro entre Erdoğan e Putin?

Após vários contactos com o apoio das Nações Unidas, as discussões entre a Rússia e a Ucrânia para a exportação de cereais em meados de julho foram um sucesso para a diplomacia turca. Esta sexta-feira, num outro esforço diplomático, o Presidente turco deslocar-se-á à cidade de Sochi, na Rússia, para se reunir com o seu homólogo russo. Os dois líderes discutirão o funcionamento do sistema de exportação de cereais, a ofensiva militar na Ucrânia e também a questão da SíriaSerá o segundo encontro em menos de duas semanas com o chefe de Estado russo, sendo Erdoğan o único capaz de quebrar o aparente isolamento de Vladimir Putin.

Erdoğan — um novo líder mundial?

Todas as iniciativas diplomáticas turcas fazem Pinar Tremblay, cientista política e analista no portal Al-Monitor’s, afirmar que o governo turco, Erdoğan e o seu partido — Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, sigla em turco)  têm um “amor inexplicável pela mediação. Em declarações ao Observador, a especialista sinaliza, porém, que a Turquia tem tentado mediar “sem sucesso” outros conflitos, principalmente no Médio Oriente. Por outro lado, não aceita bem a mediação dos seus conflitos. “Infelizmente, chegou-se ao ponto de a Turquia precisar, mas rejeitar todas as tentativas [de mediação] nos seus conflitos com vários países, tais como a Síria, o Iraque e a Grécia”, nota.

Pinar Tremblay acredita que, com a mediação do conflito na Ucrânia, o Presidente turco quer “tornar-se relevante” e assumir o papel “de mediador da paz” — com “dois princípios” bem delineados por trás. Para explicar o primeiro, a especialista recorre a uma expressão idiomática para explicar que mais vale a Turquia estar envolvida nas negociações do que afastar-se da questão: “Ou se está sentado à mesa, ou então está-se no menu”. Além disso, a especialista em política salienta que Ancara “tem uma inabilidade para enfrentar a Rússia e os Estados Unidos e isso obriga [a Turquia] a desempenhar um papel”.

A especialista não tem dúvidas de que esta é a estratégia de Erdoğan, apontando a duplicidade na maneira como tem gerido o conflito. “A Turquia não aplicou sanções à Rússia”, começa por dizer a especialista, algo que é contraditório com o facto de Ancara estar a vender “drones” e armamento à Ucrânia.

Esta estratégia de agradar a gregos e troianos serve para o nome de Erdoğan “aparecer nas notícias internacionais” e ajudá-lo a “manter a aparência de líder mundial” diante da sociedade turca. De acordo com a cientista política, o objetivo do Presidente é, sobretudo, “tornar-se relevante” e ganhar voz num mundo em que têm aumentado os focos de tensão.

Também o antigo embaixador da União Europeia (UE) na Turquia e membro do think tank Carnegie Europe, Marc Pierini, concorda que a guerra na Ucrânia poderá demonstrar que Ancara “desempenha um papel importante nos assuntos mundiais”. Em declarações ao Observador, este especialista sublinha que o encontro em Sochi desta sexta-feira consubstancia mais uma oportunidade para “demonstrar que o Presidente Erdoğan é influente” na comunidade internacional.

Eleições à vista — e o perigo de Erdoğan perder

2023 é o ano em que Erdoğan será novamente posto à prova pelos eleitores num cenário que lhe é bastante menos favorável, envolvendo uma muito provável crise económica e problemas migratórios“Devemo-nos lembrar que há eleições presidenciais e parlamentares em 2023”, assinala ao Observador Ali Bilgic, professor de Política Internacional na Universidade de Loughborough. O docente destaca também que “todas as sondagens revelam que é muito provável que a aliança” liderada pelo partido de Erdoğan “possa perder ambas”.

As sondagens mostram que Erdoğan tem razões para se preocupar, apesar de algumas ainda lhe darem a vitória (mas nunca tão confortável como a de há quatro anos). Por exemplo, um estudo de opinião publicado em janeiro deste ano, indica que o actual Presidente perderia, por uma margem mínima, o acto eleitoral para o social-democrata Kemal KılıçdaroğluA diferença em comparação com 2018 é abismal — Erdoğan passava de 52,6% para 29%.

As eleições para escolher o Presidente são importantes na Turquia, principalmente após a última revisão constitucional apoiada por Erdoğan. O regime turco deixou de ser parlamentar e passou a ser presidencial, com os poderes do chefe de Estado a saírem muito reforçados (o Presidente passou a desempenhar as funções de primeiro-ministro, cargo que foi abolido), algo que não agradou à oposição, que almeja voltar ao anterior sistema.

Não é só a presidência que pode mudar — a composição do parlamento turco também poderá mudar radicalmente. O partido do Presidente turco conseguiu 42,56% nas eleições de 2018, o que permitiu Erdoğan governar praticamente sem oposição. No entanto, uma sondagem de julho deste ano, que contou com mais de 11 mil inquiridos, revela que, no próximo acto eleitoral, o AKP não ia além dos 28%, ao passo que o Partido Republicano do Povo obteria 29,6%, conseguindo destronar o partido do chefe de Estado.

O Presidente turco “enfrenta o maior desafio político desde que está no poder”, vaticina Asli Aydıntaşbaş, especialista em política turca num artigo no European Council on Foreign Affairs. Ainda que a guerra na Ucrânia “tenha restaurado a imagem da Turquia enquanto um importante ator geopolítico e tenha dado a Erdoğan mais visibilidade” do que nunca, tal não parece suficiente para cativar os eleitores. 

Além disso, a oposição da Turquia está a reorganizar-se à semelhança do que aconteceu em França (com a coligação de esquerda NUPES a conseguir tirar a maioria a Emmanuel Macron no Parlamento francês), na Hungria (cujos esforços da oposição foram em vão, já que Viktor Orbán voltou a vencer as eleições com maioria absoluta) ou em Israel (em que a aliança da oposição conseguiu derrotar Benjamin Netanyahu, que havia sido primeiro-ministro durante 11 anos).

“Conhecidos pela sua ineficácia e fragmentação, os partidos de oposição da Turquia estão agora unificados e, apesar das suas diferenças ideológicas, formaram uma aliança eleitoral com o objetivo de derrotar Erdoğan”, diz Asli Aydıntaşbaş, que lembra que uma coligação formada por partidos que se opunha ao Presidente turco conseguiu vencer várias autarquias nas eleições regionais de 2019, incluindo Istambul e a capital Ancara.

"Conhecidos pela sua ineficácia e fragmentação, os partidos de oposição da Turquia estão agora unificados e, apesar das suas diferenças ideológicas, formaram uma aliança eleitoral com o objetivo de derrotar Erdoğan"

O que esperar do encontro entre Erdoğan e Putin?

Embora a oposição ainda não tenha escolhido o candidato que defrontará Erdoğan nas urnas — apenas é expectável que aconteça no início de 2023 —, as sondagens mostram, segundo Asli Aydıntaşbaş, que o atual Presidente é “menos popular do que alguns dos seus rivais, incluindo o autarca de Ancara ou de Istambul”.

Inflação, “cofres vazios” e migrações: o que está a correr mal a Erdoğan?

É “legítimo” e faz sentido pensar que a gestão no conflito na Ucrânia ajudará o Presidente turco nas urnas. No entanto, segundo Marc Pierini, “as eleições de 2023 serão provavelmente mais influenciadas pelo estado débil da economia, pela política monetária mal concebida e pela situação deplorável do Estado de direito” na Turquia.

A situação económica da Turquia tem sido o principal motivo de queixa por parte dos eleitores. E os dados económicos mostram o porquê. A inflação global em julho chegou aos 79,6%, o valor mais alto dos últimos 24 anos — e os preços subiram, no mês passado, 2,37%. As previsões não são favoráveis: à Al Jazeera, Jason Tuvey, especialista em mercados financeiros, considera que “mesmo que a inflação esteja próxima de um pico, continuará muito elevada durante vários meses”.

A guerra na Ucrânia veio agravar a inflação na Turquia, mas a situação é mais antiga. “A economia turca tem estado numa espiral de ‘inflação alta-desemprego alto’ desde há uns anos”, indica Ali Bilgic, que reforça que para tal contribuiu “a falta de disciplina fiscal” e o “fim da independência do Banco Central Turco, que aprofundou a crise económica”. “Sabemos que a guerra tem levado a uma subida de preços na energia e outros bens essenciais em países como a Turquia, que já estava a enfrentar desafios económicos, mas a situação é muito pior do que a do Ocidente”, expõe o professor de Política Internacional na Universidade de Loughborough.

Ali Bilgic, professor de Política Internacional na Universidade de Loughborough “Os cofres do Estado turco estão vazios”, declara Asli Aydıntaşbaş, que refere que o Presidente turco adoptou uma política contra “a lógica convencional da economia”: “Erdoğan argumenta que as altas taxas de juros são a principal causa dos problemas económicos do país. Assim, em vez de permitir que o banco central aumente as taxas para controlar a inflação, governo usou as reservas cambiais para tentar estabilizar os mercados, vendendo as reservas através dos bancos estatais”.

A estratégia pessoal que Erdoğan adotou levou a que moeda turca desvalorizasse 48% em 12 meses. Há duas semanas, um dólar equivalia a 17,5 liras, o valor mais baixo desde dezembro de 2021. Para se ter a noção do aumento, em 2019, um dólar valia cerca de seis liras.  

Outro dos problemas que o Presidente turco enfrenta prende-se com a questão migratória. Na sequência da guerra civil na Síria, vários migrantes deslocaram-se para outros países, um dos quais a vizinha Turquia, que adoptou uma política de porta aberta. Em 2015, a situação agravou-se e cada vez mais pessoas queriam entrar não só em território turco, como também na Europa. A chegada de milhões de refugiados criou uma pressão nunca vista no sistema de asilo europeu. 

Tendo em conta que a Turquia era uma das principais rotas de passagem dos migrantes, a União Europeia decidiu, em 2016, acordar com os dirigentes turcos que todos “os novos migrantes irregulares que chegassem às ilhas gregas provenientes da Turquia seriam devolvidos a este último país”. A UE investiu três mil milhões de euros e financiou projectos em solo turco “destinados aos refugiados, nomeadamente no domínio da saúde, da educação, das infraestruturas, da alimentação e outras despesas de subsistência”.

O que esperar do encontro entre Erdoğan e Putin?

Ora, isto levou a que mais migrantes permanecessem na Turquia e as consequências estão à vista. “Ancara está sob pressão doméstica por ter encorajado o fluxo de milhões de sírios e outros refugiados da Ásia”, vinca Asli Aydıntaşbaş, que explica que — com os problemas económicos — aumenta o “ressentimento contra os refugiados”. Para responder ao descontentamento popular, Erdoğan já anunciou que “quer que um milhão de sírios” regressem ao país natal.

Síria: o foco da política externa turca

A guerra na Ucrânia faz com que Erdoğan ganhe notoriedade na comunidade internacional, mas não é a única preocupação da política externa turca. De acordo com Marc Pierini, a Turquia assume que o país não pode preocupar-se apenas com os interesses da NATO, procurando uma “abordagem equilibrada entre o Ocidente e a Rússia”. O antigo embaixador esclarece que os esforços do Presidente turco para resolver o conflito em solo ucraniano são uma “ilustração dessa política”.

“A estratégia da Turquia na guerra da Ucrânia é um acto de equilíbrio, caracteriza Ali Bilgic, indicando que a Turquia “tem de trabalhar com a Rússia” na questão da Síria, de forma a “alcançar objectivos estratégicos”. Um dos objectivos a longo prazo passa por “levar a cabo uma intervenção militar” nas áreas curdas no norte da Síria. Encarada como uma das principais ameaças à Turquia, Erdoğan deseja diminuir a influência da milícia curda Unidades de Protecção Popular que permanecem naquele território.

 Os curdos no norte da Síria e o braço armado Unidades de Protecção Popular curdas são os principais inimigos de Erdoğan actualmente

Contrariamente ao Ocidente, a principal “ameaça estratégica para a Turquia” não é a Rússia, está localizada a “sul da sua fronteira” — mais concretamente na Síria. Por isso, Ancara não pode cortar todas as pontes com Moscovo”, salienta Ali Bilgic, que reforça que um aumento de tensão com o Kremlin “paralisaria qualquer movimentação turca na Síria”, liquidando também o projeto de Erdoğan de ver refugiados sírios a voltarem ao país de origem.

Em termos económicos, a Turquia também depende da Rússia. Os turistas russos são uma “importante fonte de receita” para Ancara, sendo que “qualquer tensão” com Moscovo prejudicaria assim a economia do país.

Erdoğan sabe que não pode hostilizar o Kremlin. Porém, a Turquia, enquanto Estado-membro da NATO, “também tem apoiado as forças ucranianas de forma significativa”, ressalva Ali Bilgic. “Os drones Bayraktar, alguns dos quais que foram doados ao exército ucraniano gratuitamente, têm sido significativamente eficazes para a defesa ucraniana.”

O que esperar do encontro entre Erdoğan e Putin?

Durante o encontro desta sexta-feira na cidade de Sochi, o Kremlin anunciou que os dois líderes vão discutir a exportação de cereais, a guerra na Ucrânia e também a questão da Síria.

No que concerne à exportação de cereais, Marc Pierini frisa que um dos objectivos da Turquia é que o acordo seja implementado com sucesso. Tal “demonstrará” a relevância de Erdoğan no panorama internacional, já que a questão tem um impacto em todo o globo.

Sobre a situação no terreno de guerra, Vladimir Putin sabe da ajuda da Turquia à Ucrânia e utilizará isso a seu favor. “O risco em Sochi é que vejamos o Presidente russo a usar o seu homólogo turco, comenta Marc Pierini, posição que Ali Bilgic subscreve.

De acordo com Ali Bilgic, o Presidente turco vai tentar mais uma vez convencer o seu homólogo russo a terminar o conflito, algo que seria “o melhor desfecho para a Turquia”. A guerra está a prejudicar a economia turca e, consequentemente, o sucesso eleitoral de Erdoğan, sustenta o professor universitário, acrescentando que a posição de equilíbrio turca “entre a Ucrânia, o Ocidente e a Rússia” deverá manter-se no futuro.

Relativamente à Síria, o Presidente turco também vai tentar obter a luz verde de Vladimir Putin para levar a cabo “outra operação militar no norte do país”, mas “nada está fechado”, sinaliza Marc Pierini, que atenta que isso aumenta o risco de o chefe de Estado russo instrumentalizar o seu homólogo turco.

A Turquia vai pressionar bastante a Rússia (e também o Irão) para tentar receber ajuda para a sua nova campanha militar na Síria”, antecipa Ali Bilgic, que suspeita que este seja o “principal tópico” do encontro. Resta saber é se desta vez Erdoğan vai voltar a deixar Putin à sua espera

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