terça-feira, 30 de agosto de 2022

Do lado de lá

 

Refiro-me à Rússia, aos seus habitantes, às suas tropas em especial – nos seus desconfortos físicos e espirituais, pois acredito que a maioria pensará como este paraquedista, tão absurda e criminosa nos parece ser esta guerra.

Trata-se da história dum soldado russo – Pavel Filatyev,  paraquedista - contada em entrevista ao The Guardian, reproduzida por Guilherme Pinheiro em “O PÚBLICO” de 20 de Agosto, de que me atrevo a transcrever alguns parágrafos. Um soldado que após um relato “de 141 páginas, sobre as suas experiências numa guerra forçada e profundamente injusta, do seu ponto de vista, foi obrigado a desterrar-se, naturalmente. Um homem consciente e honesto, obrigado a atacar um povo sem qualquer motivo justo, e que não só enfrenta uma provável morte ou ferimentos, como as impõe a pessoas injustamente atacadas, além das atrocidades de ter que roubar esses, para matar a sua própria fome, e sentir-se transformado num animal, besta-fera para defesa própria. Não resisto a transcrever essas linhas dolorosas:

«Não vejo justiça nesta guerra. Não vejo qualquer verdade aqui», “revelou ao jornal naquela que foi a primeira vez que se sentou perante um jornalista depois da publicação do seu relato. “Não tenho medo de lutar na guerra. Mas preciso sentir de justiça, entender que o que estou a fazer é o mais correcto. E acredito que tudo isso está a falhar não apenas porque o governo esconde tudo, mas porque nós, russos, não achamos que o que estamos a fazer é certo.»

“O documento, primeiro publicado através das redes sociais, é uma descrição diária de como a sua unidade de pára-quedistas foi enviada para a Ucrânia; de como entrou em Kherson; de como capturou o porto marítimo e cavou sob fogo de artilharia pesada por mais de um mês perto de Mykolaiv; e de como acabou por ser ferido e retirado do conflito com uma infecção ocular.”

Estávamos sentados sob fogo da artilharia de Mykolaiv e nesse momento percebi que participava em algo realmente mau. Para que diabo precisamos desta guerra? Ocorreu-me, então, o pensamento: ‘Deus, se eu sobreviver, farei tudo o que puder para impedir isto’.”

“Passou 45 dias a escrever as suas memórias do conflito.”

“Filatyev, que serviu no 56.º Regimento de Ataque Aéreo da Guarda com base na Crimeia, descreveu como a sua unidade exausta e mal equipada invadiu a Ucrânia atrás de uma chuva de mísseis no final de Fevereiro, e sem qualquer ideia do porquê da guerra estar a acontecer.” «Levei semanas para entender que não havia guerra em território russo e que acabámos simplesmente por atacar a Ucrânia», revela.”

“No primeiro excerto traduzido, Filatyev descreve, horas depois das tropas russas terem entrado na cidade, a forma como a sua unidade saqueou o porto de Kherson.”

«Meia hora depois, chegámos ao porto de Kherson. Estava escuro. As unidades que marchavam à nossa frente já haviam ocupado o porto. Os soldados procuravam um lugar para dormir e para se limparem. O território consistia num posto de controlo, um escritório e um edifício semelhante a um dormitório com armazéns, vestuários e chuveiros. Os navios estavam no cais

«Já viram as pinturas do Saque de Roma pelos bárbaros? Esta é a melhor maneira de descrever o que estava a acontecer ao meu redor. Todos pareciam exaustos e selvagens, e todos começámos a vasculhar os prédios em busca de comida, água, um banho e um lugar para passar a noite. Não fui excepção.»

«Tudo ao redor nos dava uma sensação vil; como miseráveis, estávamos apenas a tentar sobreviver. Todos estavam com pressa, à procura de um lugar para dormir, enquanto outros lutavam por um lugar na fila do chuveiro. Fiquei enojado com tudo isso, mas percebi que, de repente, fazia parte desta realidade».

«Lutei na Ucrânia, e se não tenho o direito de dizer ‘não à guerra’, porque é que outra pessoa tem o direito de começar a guerra? Não posso trazer o nosso exército de volta para casa, mas posso partilhar a minha experiência e os meus pensamentos sobre a participação nesta guerra, encorajando os nossos concidadãos a cuidarem do seu país, que tem tantos problemas para enfrentar.»

«A maioria das pessoas no exército estão descontentes com o que lá acontece, estão descontentes com o governo e com os seus comandantes, estão descontentes com Putin e a sua política, estão descontentes com o ministro da Defesa, que nunca serviu no exército», “acrescenta o soldado russo.”

«Este é um círculo vicioso. Todos nós somos culpados. Mas precisamos de tirar as conclusões certas e corrigir os nossos erros. Até onde vai a amplitude da alma russa? Onde é que a nossa nobreza e espiritualidade se perderam? Os nossos ancestrais derramaram tanto do seu próprio sangue por causa da liberdade. Pode não mudar nada, mas recuso-me a participar nesta loucura. Eticamente, seria mais fácil se a Ucrânia nos atacasse, mas a verdade é que invadimos a Ucrânia e os ucranianos não nos convidaram

“Nascido numa família de militares na cidade de Volgodonsk, no sul, Filatyev passou grande parte dos seus 20 anos no exército. Depois de servir na Chechénia, no final dos anos 2000, passou quase uma década como treinador de cavalos e a trabalhar para a empresa produtora de carne russa Miratorg, antes de se alistar novamente em 2021 por motivos financeiros, revela.

“Continua a ser um dos poucos soldados russos que se pronunciou publicamente, até hoje, sobre a guerra. «Estou apavorado com o que acontecerá a seguir”, disse ele, imaginando que a Rússia vá lutar pela vitória total. “O que vamos pagar por isso? Para mim, é uma tragédia pessoal. Como é que pode ficar pior?”, questiona-se.”

 

Nenhum comentário: