Refiro-me à Rússia, aos seus habitantes,
às suas tropas em especial – nos seus desconfortos físicos e espirituais, pois
acredito que a maioria pensará como este paraquedista, tão absurda e criminosa
nos parece ser esta guerra.
Trata-se da história dum soldado russo – Pavel Filatyev, paraquedista - contada em entrevista ao The Guardian, reproduzida por Guilherme Pinheiro em “O PÚBLICO” de 20 de Agosto, de que me atrevo a transcrever
alguns parágrafos. Um soldado que após um relato “de 141 páginas, sobre as suas
experiências numa guerra forçada e profundamente injusta, do seu ponto de
vista, foi obrigado a desterrar-se, naturalmente. Um homem consciente e
honesto, obrigado a atacar um povo sem qualquer motivo justo, e que não só
enfrenta uma provável morte ou ferimentos, como as impõe a pessoas injustamente
atacadas, além das atrocidades de ter que roubar esses, para matar a sua
própria fome, e sentir-se transformado num animal, besta-fera para defesa
própria. Não resisto a transcrever essas linhas dolorosas:
«Não vejo justiça nesta guerra. Não vejo qualquer verdade aqui», “revelou ao jornal naquela que foi a primeira
vez que se sentou perante um jornalista depois da publicação do seu relato.
“Não tenho medo de lutar na guerra. Mas preciso sentir de justiça, entender
que o que estou a fazer é o mais correcto. E acredito que tudo isso está a
falhar não apenas porque o governo esconde tudo, mas porque nós, russos, não
achamos que o que estamos a fazer é certo.»
“O
documento, primeiro publicado através das redes sociais, é uma descrição diária
de como a sua unidade de pára-quedistas foi enviada para a Ucrânia; de como
entrou em Kherson;
de como capturou o porto marítimo e cavou sob fogo de artilharia pesada por
mais de um mês perto de Mykolaiv; e de como acabou por ser ferido e retirado do
conflito com uma infecção ocular.”
“Estávamos
sentados sob fogo da artilharia de Mykolaiv e nesse momento percebi que
participava em algo realmente mau. Para que diabo precisamos desta guerra?
Ocorreu-me, então, o pensamento: ‘Deus, se eu sobreviver, farei tudo o que
puder para impedir isto’.”
“Passou
45 dias a escrever as suas memórias do conflito.”
“Filatyev,
que serviu no 56.º Regimento de Ataque Aéreo da Guarda com base na Crimeia,
descreveu como a sua unidade exausta e mal equipada invadiu a Ucrânia atrás de
uma chuva de mísseis no final de Fevereiro, e sem qualquer ideia do porquê da
guerra estar a acontecer.” «Levei
semanas para entender que não havia guerra em território russo e que acabámos
simplesmente por atacar a Ucrânia»,
revela.”
“No
primeiro excerto traduzido, Filatyev descreve, horas depois das tropas
russas terem entrado na cidade, a forma como a sua unidade saqueou o porto de
Kherson.”
«Meia hora depois, chegámos ao porto
de Kherson. Estava escuro. As unidades que marchavam à nossa frente já haviam
ocupado o porto. Os soldados procuravam um lugar para dormir e para se
limparem. O território consistia num posto de controlo, um escritório e um
edifício semelhante a um dormitório com armazéns, vestuários e chuveiros. Os
navios estavam no cais.»
«Já viram as pinturas do Saque de
Roma pelos bárbaros? Esta é a melhor maneira de descrever o que estava a
acontecer ao meu redor. Todos pareciam exaustos e selvagens, e todos começámos a
vasculhar os prédios em busca de comida, água, um banho e um lugar para passar
a noite. Não fui excepção.»
«Tudo ao redor nos dava uma
sensação vil; como miseráveis, estávamos apenas a tentar sobreviver. Todos
estavam com pressa, à procura de um lugar para dormir, enquanto outros lutavam
por um lugar na fila do chuveiro. Fiquei enojado com tudo isso, mas percebi
que, de repente, fazia parte desta realidade».
«Lutei na Ucrânia, e se não tenho o
direito de dizer ‘não à guerra’, porque é que outra pessoa tem o direito de
começar a guerra? Não posso trazer o nosso exército de volta para casa, mas
posso partilhar a minha experiência e os meus pensamentos sobre a participação
nesta guerra, encorajando os nossos concidadãos a cuidarem do seu país, que tem
tantos problemas para enfrentar.»
«A maioria das pessoas no exército
estão descontentes com o que lá acontece, estão descontentes com o governo e
com os seus comandantes, estão descontentes com Putin e a sua política, estão
descontentes com o ministro da Defesa, que nunca serviu no exército», “acrescenta
o soldado russo.”
«Este é um círculo vicioso. Todos nós
somos culpados. Mas precisamos de tirar as conclusões certas e corrigir os
nossos erros. Até onde vai a amplitude da alma russa? Onde é que a nossa
nobreza e espiritualidade se perderam? Os nossos ancestrais derramaram tanto do
seu próprio sangue por causa da liberdade. Pode não mudar nada, mas recuso-me a
participar nesta loucura. Eticamente, seria mais fácil se a Ucrânia nos
atacasse, mas a verdade é que invadimos a Ucrânia e os ucranianos não nos
convidaram.»
“Nascido
numa família de militares na cidade de Volgodonsk, no sul, Filatyev passou
grande parte dos seus 20 anos no exército. Depois de servir na Chechénia, no
final dos anos 2000, passou quase uma década como treinador de cavalos e a
trabalhar para a empresa produtora de carne russa Miratorg, antes de se alistar
novamente em 2021 por motivos financeiros, revela.
“Continua
a ser um dos poucos soldados russos que se pronunciou publicamente, até hoje,
sobre a guerra. «Estou apavorado com o que acontecerá a seguir”, disse ele, imaginando que a Rússia vá lutar pela
vitória total. “O que vamos pagar por isso? Para mim, é uma tragédia
pessoal. Como é que pode ficar pior?”,
questiona-se.”
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