sábado, 6 de agosto de 2022

Manicómio


Apetece ignorar, refugiar-nos em memórias passadas, de maior sanidade mental, em que ainda se acreditava num futuro sóbrio e o riso não era um esgar de repugnância e medo.

Um texto de apoio ao de Alberto Gonçalves

https://www.publico.pt/2022/08/04/impar/noticia/demi-lovato-volta-usar-pronomes-femininos-ajuda-normalizar-fluidez-genero-especialistas-2016111

«Estigmas e equívocos

«No meio de uma enxurrada de legislação voltada para pessoas trans e queer, muitos na comunidade LGBTQ têm sido cautelosos com narrativas que podem alimentar estigmas e equívocos sobre experiências queer e de género.

“Acho que há um medo real de que os direitos transgéneros e não-binários sejam retirados se houver uma sugestão de que o género pode ser fluído porque as pessoas podem dizer: ‘Bem, se é fluído e pode mudar, por que não é apenas cisgénero?’”, exemplifica Katz-Wise. “Só que a realidade, é que as pessoas geralmente não descrevem como é que fizeram essa mudança, mas sim como é que experimentaram essa mudança acontecendo com elas.”

Desde que se revelou como não-binária em Maio de 2021, Demi Lovato falou sobre como antecipar essas mudanças, dizendo que a sua identidade de género seria uma jornada “para sempre”. Em Março do mesmo ano, já a artista se tinha identificado como queer e pansexual

 

Demi Lovato, seja lá ele(a)s quem for

Lamento que a defesa inflamada das “identidades” seja tão selectiva. Uma ocasião, defini-me em público como “não-contribuinte”. Não adiantou: o fisco continuou a subtrair-me rendimentos.

ALBERTO GONÇALVES

OBSERVADOR, 06 ago 2022

A Ucrânia e Taiwan são brincadeiras. Um destes dias, a Terra acordou com a notícia de que Demi Lovato voltou a permitir ser tratada pelos pronomes “she” e “her”. Eu próprio fiquei tão abalado que fui imediatamente tentar descobrir quem é Demi Lovato. É uma cantora americana, diz a internet. Diz ainda a internet que a senhora tinha decidido em tempos deixar de ser mulher. Ou deixar de ser somente mulher, não percebi bem. Percebi que há um ano e pouco Demi Lovato começou a exigir que a tratassem unicamente pelos pronomes “they” e “them”, como em: “Ele(a)s não cantam nada de jeito, mas guincham que se fartam” e “Ouvir as cantilenas dele(a)s é equivalente a um transplante do fígado sem anestesia”.

Não sei de que maneira estes progressismos, evidentemente louváveis, se aplicam em certas situações da vida prática. Se, na hora da conta do restaurante, a pergunta “Quem paga hoje?” tiver a resposta “São ele(a)s”, é capaz de haver confusão à mesa. Porém, pior será na esquadra, quando o interrogatório da testemunha procura esclarecer a posse da arma que acabou de chacinar 14 transeuntes: “É dele(a)s!”. E na fila de suspeitos estão oito criaturas.

Em qualquer dos casos, o importante é respeitar os sentimentos das pessoas. E, agora, o sentimento de Demi Lovato (e o seu agente) sugere-lhe voltar a admitir os pronomes anteriores sem rejeitar os pronomes entretanto adoptados. Isto aconteceu na terça-feira, data em que a senhora se sentiu “mais feminina”. Para a semana, é muito possível que haja novidades. Não espantaria que ela/ele(a)s visse(m) no Ali Express uma barrete ribatejano assaz giro e decidisse(m) identificar-se exclusivamente como marialva, reivindicando os pronomes respectivos. Até é plausível que Demi Lovato renuncie por três meses à espécie humana e se assuma como lontra. Ficarei atento aos telejornais e às aquisições do Oceanário.

Restam dois ou três problemas. Um é a notória instabilidade dos apetites mencionados. Demi Lovato tem 29 anos (se ela concordar com a certidão de nascimento, claro). Apesar disso, viaja entre sexos com a regularidade com que um morador de Gaia que trabalha no Porto atravessa o Douro. A sorte é Demi Lovato, que se considera “bastante fluIda”, se limitar a mudanças gramaticais (e não ter de suportar o trânsito do Freixo). Imagine-se se cada epifania da senhora terminava no bloco operatório, com uma junta médica em volta dos genitais. Imagine-se que, em vez de uma adulta, estávamos a falar de um adolescente, que tipicamente altera a opinião de dez em dez minutos. Imagine-se que há países cujas legislações concedem ao adolescente, o exacto adolescente viciado em TikTok e em défice cognitivo, a opção de ir à faca ou receber “terapia” hormonal. Parecendo que não, é chato. Chato e um bocadinho criminoso.

É que é legítimo duvidar da estabilidade de convicções assim. Salvo exemplos raros, clinicamente confirmados e reconfirmados, as cambalhotas “identitárias” prendem-se com modas peculiares, à semelhança dos chumaços nos ombros. Em 2002, que já soa ao Paleolítico Inferior, havia 0,013% de americanos que se “identificavam” como transexuais. Em 2011, a percentagem subira para 0,023%. Em 2016, eram 0,6%. Em 2022, 5% dos jovens adultos nos EUA afirmam-se “transgender” ou “não-binários”. Com crescente frequência, a escola e os “media” condenam os 95% de choninhas reaccionários e supremacistas que se adequaram à reles biologia. Não tarda, teremos nas ruas desfiles da exótica minoria de homens e mulheres que não se acham mulheres e homens.

Descontada a mutilação de menores de idade, por mim tanto faz. A propósito de descontos, apenas gostaria que não me descontassem os impostos para patrocinar o conforto emocional alheio. A propósito de impostos, lamento que a defesa inflamada das “identidades” seja tão selectiva. Uma ocasião, defini-me em público como “não-contribuinte”. Não adiantou: o fisco continuou a subtrair-me rendimentos. E não faltam injustiças e opressões similares. Há gente que se identifica com “etnias” diferentes e, em lugar de aplausos, recebe uma bordoada nas costas, nem sempre metafórica. Não é preciso recordar Rachel Dolezal, a caucasiana que sonhou ser negra e terminou excomungada pela sociedade. Recentemente, uma actriz portuguesa de telenovelas surgiu de trancinhas no cabelo e viu-se informada, com péssimos modos, de que só os negros estão autorizados a usar trancinhas.

Porque é que os “activistas” das “causas”, que berram pela liberdade na escolha do sexo e do “género”, abominam a mesmíssima liberdade na escolha da “raça”? Porque é que se pode ignorar o aparelho reprodutivo que o acaso nos deu e é blasfémia desprezar o tom da pele com que se nasce? Porque é que uma coisa é considerada subjectiva e a outra não se deixa alterar nem a tiro?

Conheço os “argumentos” que “justificam” a contradição (a “apropriação”, o “voluntarismo”, etc.). Não me apetece debatê-los. Não se debate com zelotas e não se debatem patetices. Noto, por desfastio, que aplaudir a “fluidez” no “género” e proibi-la na “raça” implica aceitar que as “raças” possuem características distintas, que essas características são decididas pelos “activistas” do ramo, e que os “activistas” impõem estereótipos a que a humanidade, devidamente retalhada em categorias, deve sujeitar-se sem um pio. Isto não é só segregacionismo, ou puro racismo: isto é medonho. As ideologias “woke” estão radicadas na intolerância. Naturalmente, fingem o contrário. Demi Lovato, sedenta de holofotes e da aprovação deste circo ridículo, também finge ter dois “géneros”. E dois neurónios.

IDENTIDADE DE GÉNERO   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS

klaus muller: AG, veja se vai passar uns dias aos States para, quando regressar, nos elucidar sobre como está a correr a campanha para as eleições de novembro. É que basearmo-nos no que a nossa CS por aqui nos vai impingindo, não vale a pena.

Fernando Cascais: Excelente como sempre. Nasci num mundo e vou morrer noutro diferente. Os que nascem neste agora irão também morrer noutro diferente. O mundo, depois de centenas de anos em que não saía do mesmo sítio, agora corre que nem um Jack Russel desvairado. Que saudades tenho dos anos oitenta quando se conduzia sem cinto de segurança e ligeiramente alcoolizado, se apreciavam as mulheres sem olhar para a cabeça, não se pagava IVA, ninguém fazia IRS e existiam anúncios como o Restaurador Olex sem ninguém ir fazer queixa ao MP. Velhos tempos. Hoje está tudo diferente e amanhã estará ainda mais. De vez em quando, já com alguma frequência, encontro jovens em caixas de supermercado e lojas que creio representarem o “novo-género” não-binário. Uma espécie da antiga mulher do circo com barbas. Alguns têm efectivamente barba, aparentemente são homens pelas feições, todavia, tem as unhas das mãos grandes, arranjadas e pintadas, maquilham-se como as mulheres dos anos oitenta e andam de saias. Fico sem perceber se podem engravidar ou se conseguem engravidar alguém. Nos anos oitenta seriam vistos como “aliens” e podiam mesmo ser agredidos tal a desordem social que podiam causar. Hoje começa a ser perfeitamente normal e o espanto fica contido. Algumas regiões do globo ainda continuam nos anos oitenta, designadamente no continente africano. Mas, a nova grande dinâmica do mundo veio para ficar. Se conseguíssemos espreitar pela fresta de uma porta temporal a década de sessenta deste século, a estupefação apanharia também de surpresa os não-binários actuais. Ao Alberto Gonçalves dava-lhe logo um fanico que ia desta para melhor. Eu, provavelmente, seria exibido num qualquer circo do futuro. Na antiguidade e na idade média nascíamos e morríamos no mesmo mundo. Hoje, por mais voltas que possamos dar, o mundo em que morremos não é o mesmo em que nascemos. O mundo não pára e somos apanhados neste turbilhão sem nada poder fazer. É comer, refilar e depois calar.

klaus muller > Fernando Cascais: lol, tive que ir ver o que era o restaurador Olex. Realmente hoje em dia não seria possível semelhante anúncio.  É tudo tão triste ...

Maria Silva: Excelente, como sempre! BOAS FÉRIAS! (como vamos nós sobreviver sem as suas análises este tempo todo? :) )

 

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