Apetece ignorar, refugiar-nos em memórias passadas, de maior sanidade
mental, em que ainda se acreditava num futuro sóbrio e o riso não era um esgar
de repugnância e medo.
Um texto de apoio ao de Alberto
Gonçalves
«Estigmas e equívocos
«No
meio de uma enxurrada de legislação voltada para pessoas trans e queer, muitos
na comunidade LGBTQ têm sido cautelosos com narrativas que podem alimentar
estigmas e equívocos sobre experiências queer e de género.
“Acho
que há um medo real de que os direitos transgéneros e não-binários sejam
retirados se houver uma sugestão de que o género pode ser fluído porque as
pessoas podem dizer: ‘Bem, se é fluído e pode mudar, por que não é apenas
cisgénero?’”, exemplifica Katz-Wise. “Só que a realidade, é que as pessoas
geralmente não descrevem como é que fizeram essa mudança, mas sim como é que
experimentaram essa mudança acontecendo com elas.”
Desde
que se revelou como não-binária em Maio de 2021, Demi Lovato falou sobre como
antecipar essas mudanças, dizendo que a sua identidade de género seria uma
jornada “para sempre”. Em Março do mesmo ano, já a artista se tinha
identificado como queer e pansexual.»
Demi Lovato, seja lá ele(a)s quem for
Lamento que a defesa inflamada das
“identidades” seja tão selectiva. Uma ocasião, defini-me em público como
“não-contribuinte”. Não adiantou: o fisco continuou a subtrair-me rendimentos.
ALBERTO GONÇALVES
OBSERVADOR, 06 ago 2022
A
Ucrânia e Taiwan são brincadeiras. Um destes dias, a Terra acordou com a
notícia de que Demi Lovato voltou a permitir ser tratada pelos pronomes “she” e
“her”. Eu próprio fiquei tão abalado que fui imediatamente tentar descobrir
quem é Demi Lovato. É uma cantora americana, diz a internet. Diz ainda a
internet que a senhora tinha decidido em tempos deixar de ser mulher. Ou deixar
de ser somente mulher, não percebi bem. Percebi que há um ano e pouco Demi
Lovato começou a exigir que a tratassem unicamente pelos pronomes “they” e
“them”, como em: “Ele(a)s não cantam nada de jeito, mas guincham que se fartam”
e “Ouvir as cantilenas dele(a)s é equivalente a um transplante do fígado sem
anestesia”.
Não
sei de que maneira estes progressismos, evidentemente louváveis, se aplicam em
certas situações da vida prática. Se, na hora da conta do restaurante, a
pergunta “Quem paga hoje?” tiver a resposta “São ele(a)s”, é capaz de haver
confusão à mesa. Porém, pior será na esquadra, quando o interrogatório da
testemunha procura esclarecer a posse da arma que acabou de chacinar 14
transeuntes: “É dele(a)s!”. E na fila de suspeitos estão oito criaturas.
Em
qualquer dos casos, o importante é respeitar os sentimentos das pessoas. E,
agora, o sentimento de Demi Lovato (e o seu agente) sugere-lhe voltar a admitir
os pronomes anteriores sem rejeitar os pronomes entretanto adoptados. Isto
aconteceu na terça-feira, data em que a senhora se sentiu “mais feminina”. Para
a semana, é muito possível que haja novidades. Não espantaria que ela/ele(a)s
visse(m) no Ali Express uma barrete ribatejano assaz giro e decidisse(m)
identificar-se exclusivamente como marialva, reivindicando os pronomes
respectivos. Até é plausível que Demi Lovato renuncie por três meses à espécie
humana e se assuma como lontra. Ficarei atento aos telejornais e às aquisições
do Oceanário.
Restam
dois ou três problemas. Um é a notória instabilidade dos apetites mencionados.
Demi Lovato tem 29 anos (se ela concordar com a certidão de nascimento, claro).
Apesar disso, viaja entre sexos com a regularidade com que um morador de Gaia
que trabalha no Porto atravessa o Douro. A sorte é Demi Lovato, que se
considera “bastante fluIda”, se limitar a mudanças gramaticais (e não ter de
suportar o trânsito do Freixo). Imagine-se se cada epifania da senhora
terminava no bloco operatório, com uma junta médica em volta dos genitais.
Imagine-se que, em vez de uma adulta, estávamos a falar de um adolescente, que
tipicamente altera a opinião de dez em dez minutos. Imagine-se que há países
cujas legislações concedem ao adolescente, o exacto adolescente viciado em
TikTok e em défice cognitivo, a opção de ir à faca ou receber “terapia”
hormonal. Parecendo que não, é chato. Chato e um bocadinho criminoso.
É
que é legítimo duvidar da estabilidade de convicções assim. Salvo exemplos
raros, clinicamente confirmados e reconfirmados, as cambalhotas “identitárias”
prendem-se com modas peculiares, à semelhança dos chumaços nos ombros. Em 2002,
que já soa ao Paleolítico Inferior, havia 0,013% de americanos que se
“identificavam” como transexuais. Em 2011, a percentagem subira para 0,023%. Em
2016, eram 0,6%. Em 2022, 5% dos jovens adultos nos EUA afirmam-se
“transgender” ou “não-binários”. Com crescente frequência, a escola e os
“media” condenam os 95% de choninhas reaccionários e supremacistas que se
adequaram à reles biologia. Não tarda, teremos nas ruas desfiles da exótica
minoria de homens e mulheres que não se acham mulheres e homens.
Descontada
a mutilação de menores de idade, por mim tanto faz. A propósito de descontos,
apenas gostaria que não me descontassem os impostos para patrocinar o conforto
emocional alheio. A propósito de impostos, lamento que a defesa inflamada das
“identidades” seja tão selectiva. Uma ocasião, defini-me em público como
“não-contribuinte”. Não adiantou: o fisco continuou a subtrair-me rendimentos.
E não faltam injustiças e opressões similares. Há gente que se identifica com
“etnias” diferentes e, em lugar de aplausos, recebe uma bordoada nas costas,
nem sempre metafórica. Não é preciso recordar Rachel Dolezal, a caucasiana que
sonhou ser negra e terminou excomungada pela sociedade. Recentemente, uma
actriz portuguesa de telenovelas surgiu de trancinhas no cabelo e viu-se
informada, com péssimos modos, de que só os negros estão autorizados a usar
trancinhas.
Porque
é que os “activistas” das “causas”, que berram pela liberdade na escolha do
sexo e do “género”, abominam a mesmíssima liberdade na escolha da “raça”?
Porque é que se pode ignorar o aparelho reprodutivo que o acaso nos deu e é
blasfémia desprezar o tom da pele com que se nasce? Porque é que uma coisa é
considerada subjectiva e a outra não se deixa alterar nem a tiro?
Conheço
os “argumentos” que “justificam” a contradição (a “apropriação”, o
“voluntarismo”, etc.). Não me apetece debatê-los. Não se debate com zelotas e
não se debatem patetices. Noto, por desfastio, que aplaudir a “fluidez” no
“género” e proibi-la na “raça” implica aceitar que as “raças” possuem
características distintas, que essas características são decididas pelos
“activistas” do ramo, e que os “activistas” impõem estereótipos a que a
humanidade, devidamente retalhada em categorias, deve sujeitar-se sem um pio.
Isto não é só segregacionismo, ou puro racismo: isto é medonho. As ideologias
“woke” estão radicadas na intolerância. Naturalmente, fingem o contrário. Demi
Lovato, sedenta de holofotes e da aprovação deste circo ridículo, também finge
ter dois “géneros”. E dois neurónios.
IDENTIDADE DE
GÉNERO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS
klaus muller: AG, veja se
vai passar uns dias aos States para, quando regressar, nos elucidar sobre como
está a correr a campanha para as eleições de novembro. É que basearmo-nos no que a nossa CS por aqui nos vai
impingindo, não vale a pena.
Fernando Cascais: Excelente
como sempre. Nasci
num mundo e vou morrer noutro diferente. Os que nascem neste agora irão também
morrer noutro diferente. O mundo, depois de centenas de anos em que não saía do
mesmo sítio, agora corre que nem um Jack Russel desvairado. Que saudades tenho
dos anos oitenta quando se conduzia sem cinto de segurança e ligeiramente
alcoolizado, se apreciavam as mulheres sem olhar para a cabeça, não se pagava
IVA, ninguém fazia IRS e existiam anúncios como o Restaurador Olex sem ninguém
ir fazer queixa ao MP. Velhos tempos. Hoje está tudo diferente e amanhã estará
ainda mais. De vez em quando, já com alguma frequência, encontro jovens em
caixas de supermercado e lojas que creio representarem o “novo-género”
não-binário. Uma espécie da antiga mulher do circo com barbas. Alguns têm
efectivamente barba, aparentemente são homens pelas feições, todavia, tem as
unhas das mãos grandes, arranjadas e pintadas, maquilham-se como as mulheres
dos anos oitenta e andam de saias. Fico sem perceber se podem engravidar ou se
conseguem engravidar alguém. Nos anos oitenta seriam vistos como “aliens” e
podiam mesmo ser agredidos tal a desordem social que podiam causar. Hoje
começa a ser perfeitamente normal e o espanto fica contido. Algumas
regiões do globo ainda continuam nos anos oitenta, designadamente no continente
africano. Mas, a nova grande dinâmica do mundo veio para ficar. Se
conseguíssemos espreitar pela fresta de uma porta temporal a década de sessenta
deste século, a estupefação apanharia também de surpresa os não-binários actuais.
Ao Alberto Gonçalves dava-lhe logo um fanico que ia desta para melhor. Eu,
provavelmente, seria exibido num qualquer circo do futuro. Na antiguidade e na idade média nascíamos e morríamos
no mesmo mundo. Hoje, por mais voltas que possamos dar, o mundo em que morremos
não é o mesmo em que nascemos. O mundo não pára e somos apanhados neste
turbilhão sem nada poder fazer. É comer, refilar e depois calar.
klaus muller > Fernando Cascais: lol, tive que ir ver o que era o restaurador Olex. Realmente
hoje em dia não seria possível semelhante anúncio. É tudo tão triste ...
Maria Silva: Excelente,
como sempre! BOAS FÉRIAS! (como vamos nós sobreviver sem as suas análises este
tempo todo? :) )
Nenhum comentário:
Postar um comentário