Em sentido figurado, pura aspiração da alma, mas só no caso do Baudelaire. Em nós foi real, embora sol de pouca dura, nesse período de democracia e fartura sucedâneo ao nosso Abril 74, provindo do exterior, que a nós, portugueses, pelo menos, nos protegeu, permitindo-nos os passeios turísticos, como aos demais povos da fartura que também acolitámos, desenvolvendo as estruturas próprias para acolitar. Hoje teremos que ser mais moderados nos passeios turísticos, até por uma questão de partilha em sofrimento com esses ucranianos que nos servem de escudo até ver. Paulo Tunhas viajará, por ora, cá dentro. Para meditar e analisar estes flagrantes diários da arrogância russa, destruidora da harmonia. E que bem ele medita!
Férias, guerra e hospitalidade
A invasão russa e a barbárie da qual é
feita são a própria negação do ideal de hospitalidade universal que é a
condição mesma da própria ideia de viagem. Viajamos procurando ser bem
recebidos.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 11 ago 2022, 00:19
Por
esta altura do ano, é quase infalível: sou, como muita gente, tomado pelo
desejo de partir, de viajar. O génio da língua alemã tem uma palavra para
as formas mais extremas desse desejo: Wanderlust. Não peço, como pedia um
poeta que convidava a amiga à viagem, uma destinação recheada de “ordem e
beleza, / luxo, calma e volúpia”. Nem, como outro, ambiciono rumar para a
Pasárgada, onde, “amigo do rei”, teria “a mulher que eu quero / na cama que
escolherei”. Tampouco tenho ganas de caminhar longamente, como Jean-Albert Dadas,
um canalizador de Bordéus que, no século XIX, tomado de um irreprimível desejo
de andar a pé, vítima do que um psiquiatra chamou dromomania (do
grego dromos, corrida), calcorreou a França inteira e, não contente com
isso, prosseguiu as suas viagens, pelo mesmo meio, até Moscovo e
Constantinopla. Não quero acabar como ele, internado num hospital por exaustão
(e não só, imagino), nem tenho pernas para isso. E os tempos,
inexplicavelmente, não andam propícios a obedecer aos conselhos dos dois
poetas, que devidamente segui em saudosos dias de vinho e rosas. Quero apenas
encontrar um lugar com menos barulho do que este. Preparo-me para uma semana,
feito guarda-florestal budista improvisado, na Serra d’Arga, a meditar sobre
o Darmapada, em busca da solução para o sofrimento humano, com a ajuda do
canto dos passarinhos, antes deles se transformarem, com a noite, sem que a
gente dê por isso, em morcegos.
O
meu modesto nomadismo sazonal encontra este ano, no entanto, uma espécie de
obstáculo espiritual – ou conceptual, se se preferir, para não sugerir tanto
qualquer angústia extrema. É que, desde Fevereiro, uma coisa não me sai da
cabeça: a terrível destruição humana provocada pela invasão russa da Ucrânia.
Não quero com isto dizer, note-se, que me sinta na obrigação de abdicar dos
prazeres possíveis por solidariedade com as vítimas da barbárie. Já negociei
comigo, há muito tempo, as partes devidas a mim e ao mundo nestas coisas, e
quero preservar aquilo que a mim mesmo me devo como favor. No passado, a
agilização, como agora se diz, deste negócio colocou-me dilemas cruéis e seria
abusivo pretender que a luta contra os demónios acabou sempre com uma vitória
incontestável da minha boa consciência. A história, de resto, ainda continua.
Nunca se sabe de certeza certa a extensão do egoísmo legítimo e fica-nos sempre
a dúvida se não teremos ido longe demais.
Mas,
enfim, suponho que é mais ou menos o destino de todos os seres humanos. A
Bíblia e o resto da literatura que por inteiro dela deriva, embora às vezes
disfarce, estão cheias de exemplos, ilustres ou menos ilustres, desta nossa
condição. O que eu quis dizer acerca da guerra na Ucrânia é que a invasão
russa e a barbárie da qual é feita – e que me enche de feios sentimentos face
àqueles que contra Putin não tomam partido – são a própria negação do ideal de
hospitalidade universal que é a condição mesma da própria ideia de viagem.
Viajamos procurando ser bem recebidos. Não viajamos na esperança de que a nossa
presença seja encarada com hostilidade. A hospitalidade é a condição de
possibilidade da viagem. O precioso Vocabulário das instituições
indo-europeias, do grande linguista Émile Benveniste, tem, no capítulo dedicado
à hospitalidade, páginas excelentes sobre a evolução da relação entre as palavras latinas hostis e hospes,
que esclarecem o que acabei de dizer sobre hospitalidade e hostilidade. Há
obras de erudição que nos dizem muito sobre o nosso dia-a-dia e espero que me
fiquem gratos por esta gentileza – ou que, pelo menos, não a levem a mal.
O
tema da hospitalidade é igualmente um tema central dos escritos
histórico-políticos de Kant,
dos quais o mais famoso é o pequeno tratado sobre A paz perpétua. Os
escritos histórico-políticos de Kant
gozam, para o público comum que ouviu falar deles, de uma certa reputação de
superficialidade. Hegel primeiro, depois Marx, e, finalmente, a pura e simples
ignorância, são responsáveis por esta injusta fama. Na verdade, eles são um prodígio de acerto e
subtileza. E são inteiramente “actuais”, como se diz. O que é, para um grande autor
do passado, ser actual? É encontrar as suas questões, e as suas respostas,
recolocadas, reactivadas, num tempo que é posterior ao seu, não por qualquer
artificialidade, mas por uma necessidade própria a esse tempo.
Os escritos
histórico-políticos de Kant têm por horizonte a ideia de paz perpétua. A primeira condição para que nos encaminhemos para
esse horizonte é que cada Estado se dote daquilo que ele chama uma “constituição
republicana”. A constituição republicana não se define por ser
monárquica, aristocrática ou democrática: não se define pela natureza daqueles
que detêm o poder no Estado. Define-se sim pelo modo de governar, e esse
modo obedece, na constituição republicana, contrariamente ao que se passa na
constituição despótica, ao princípio da representatividade. É o princípio
da representatividade que funda o republicanismo de Kant. A instituição por
cada Estado de uma constituição republicana é o passo propriamente político em
direcção à paz perpétua.
O
segundo passo, que poderíamos chamar histórico, reside na criação de uma
federação dos Estados republicanos (na acepção de Kant). Seria a essa federação – Kant dá-lhe vários
nomes: “Congresso permanente de Estados”, “Liga dos Povos” e ”União de Estados”
–, e não, por exemplo, a uma monarquia universal, que caberia a elaboração de
um verdadeiro tratado de paz perpétua, como coisa distinta dos anteriores
tratados de paz, que não seriam, de facto, senão armistícios disfarçados. Mas,
note-se, essa federação seria constituída por Estados soberanos. Kant, ao
contrário do que certas modas nos querem fazer pensar, é um teórico soberanista
que, sob muitos aspectos, prolonga Hobbes. Só essa federação de Estados
republicanos soberanos estaria em condição de resolver aquilo que ele designa
por um dos “problemas do homem que pensa”, a saber: a guerra.
Tudo
isto poderá parecer muito formal. Acontece, no entanto, que, do mesmo modo que
o formalismo da sua ética, que é real (o célebre “imperativo categórico”), é
acompanhado de inúmeras considerações que o complexificam, introduzindo
elementos que, como o desejo de felicidade, poderiam passar por contraditórios
com ele (mas não o são, de facto), também os textos histórico-políticos de Kant
abundam em considerações antropológicas que nos fornecem o verdadeiro substrato
ao qual se aplicam as doutrinas da constituição republicana e da federação dos
Estados. Assim, por exemplo, ambas as doutrinas têm de ter em conta a
“insociável sociabilidade” dos seres humanos – a dupla e simultânea tendência
destes para a aproximação e o afastamento. E dado que – postulado
kantiano – a quantidade de bem e de mal no coração humano permanece
inalteravelmente a mesma ao longo da história, é preciso jogar com as virtudes
civilizacionais da dissimulação, que nos faz adoptar uma máscara que, com o
tempo, imperceptivelmente se colará ao nosso próprio rosto. As nossas inclinações egoístas disfarçar-se-ão e desse
disfarce resultará não certamente um progresso da moralidade nos nossos
corações, mas, o que dificilmente poderá ser visto como desprezível, um
progresso da civilização. Mais: a paz perpétua é um ideal do qual nos devemos
aproximar “a pouco e pouco”, não de um só golpe, por decreto. Na terminologia de Kant, ela tem um estatuto
regulador – serve de fio condutor para orientar o nosso pensamento – e não
constitutivo: não descreve a realidade fenomenal tal como ela é.
Isto conduz-nos à
hospitalidade universal. A
própria forma esférica da terra obriga-nos a convivermos entre nós, a entrar em
comunicação uns com os outros. Os barcos ligam os continentes. E os camelos,
esses “navios do deserto” (sempre gostei muito desta imagem), ajudam-nos a
atravessar os mais áridos territórios. O cosmopolitismo de Kant,
que, de certo modo, prolonga o dos Estóicos, atribui um grande papel à noção de hospitalidade, ao
“direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude da sua
vinda ao território de outro”.
Há, por assim dizer, um “direito de visita” universal, o “direito de
hospitalidade”, que é um “direito cosmopolita”. Ora, a guerra,
quaisquer que tenham sido os seus benefícios no passado da humanidade, pondo,
como o comércio, os povos em contacto uns com os outros, funciona, agora que
esse contacto se encontra estabelecido, como o mais terrível obstáculo à
hospitalidade.
Saindo
agora de Kant, e voltando ao meu problema. A invasão russa da Ucrânia representa o ataque de um
Estado governado por uma constituição despótica, que ambiciona como única paz
perpétua a paz dos cemitérios, a um outro governado por uma constituição
republicana, que deseja a paz que pode ser atingida através de uma federação de
Estados soberanos. É
a Ucrânia que defende aqui a hospitalidade universal. E assistir ao seu sofrimento faz-nos duvidar da
oportunidade de viajar quando a hospitalidade, condição da viagem, se encontra
assim tão flagrantemente posta em causa.
Permito-me um exemplo, quase obsceno pelo ridículo. Tenho um guia (Lonely
Planet) da Ucrânia. O guia data de 2018. Não contém informações sobre a Crimeia
posteriores a 2014. Mas contém informações actualizadas (à data) sobre o resto
da Ucrânia. Desde Fevereiro que vou notando o que, no que o guia
menciona, foi destruído pela selvajaria invasora. Os ataques à hospitalidade
universal até por tão pueris processos se podem medir.
Bom,
mas, como disse atrás, temos que levar a cabo essa eterna negociação com nós
mesmos entre as partes que nos são devidas e as partes que são devidas ao
mundo. E seria o último a condenar os heliotropismos próprios à época. Mais:
admiro-os e invejo-os. Deixo de bom grado as indignações virtuosas às
sensibilidades demonstrativas que por aí abundam. Eu próprio, na encarnação de
guarda-florestal budista que por uns dias vou adoptar, émulo de certas
personagens de romances beat que lia na adolescência, estarei longe
de me sentir culpado. E, se surgirem problemas, espero que
o Darmapada me ajude a resolvê-los. Com uma pequena ajuda dos
passarinhos.
FILOSOFIA CULTURA GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS:
Eduardo Abreu: Paulo, a tua prosa é uma mensagem de paz e harmonia como não lia há muito.
Votos de uma boa jornada pelos trilhos da serra.
Francisco Assis: Comparem este admirável texto com as ruminações que liliputianas
inteligências exibem com despudor na chamada imprensa de referência deste país.
Francisco Tavares de Almeida: Admirável.
Américo Silva: Houve um tempo em que se viajava, ias para Moçambique
em semanas, tinhas companheiros de viagem, voltavas, se voltavas, passados
anos, e eras um homem diferente. Na tua aldeia o padre e o professor ouviam-te
com atenção. Agora és cliente das viagens, estúppido
vai estúppido vem, as pessoas toleram-te num casamento para passar o
tempo, no intervalo do campeonato em que as velhas apuram qual a mais doente.
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