Como deve ter abençoado Maria José
Nogueira Pinto. Por serem – ou terem sido - inteligentemente
escrupulosos. E corajosos ou realmente livres, como foi também esse que
descreve com amizade e nobreza – António Marques Bessa.
Um homem livre: António Marques Bessa (1949-2022)
Com a morte de António Marques Bessa,
professor catedrático do ISCSP, desapareceu um dos mais interessantes
pensadores do País – sem que “o País” tivesse dado por isso.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do
Observador OBSERVADOR, 27 ago 2022, 00:1418
Éramos uma minoria político-ideológica, uma minoria de direita nacional
revolucionária que procurava sínteses entre a nação – que nesse tempo era
também o Império – e princípios de solidarismo e justiça social, que pouco
tinham a ver com a ordem estabelecida. Só mais
tarde nos daríamos conta que estávamos numa batalha de antemão perdida contra
os ventos da História.
Os ventos de cá também não nos eram,
então, favoráveis, entre a abertura europeísta da ala liberal-chique do Regime,
o imobilismo da ala conservadora e uma frente de esquerda que ia do radicalismo
maoista e trotskista e do clandestino e ortodoxo PCP às várias famílias do
Reviralho tradicional. Mas isso não nos demovia.
Quando as questões corporativas militares trouxeram o golpe de Estado
do 25 de Abril, que eutanasiou o Estado Novo, as várias vanguardas esquerdistas lançaram-se à
conquista do Estado.
Nós,
os da Direita que não era do Regime, estávamos naturalmente no topo das listas
de “suspeitos” que os nossos condiscípulos antifascistas faziam o favor de
fazer chegar ao COPCON. E não éramos só “suspeitos” porque desde o dia 26 de
Abril que procurávamos, de facto, salvar o que valesse a pena ser salvo e que
pudesse ainda salvar-se dentro do novo quadro democrático e de competição
partidária proclamado pelo MFA e pela Junta de Salvação Nacional.
Quando a esquerda radical e os seus aliados no MFA, percebendo que
em democracia talvez não conseguissem os seus objectivos, deram os golpes do 28
de Setembro e do 11 de Março, com a cumplicidade dos democratas
“antifascistas”, a neutralização pela proibição e pela prisão das forças
políticas da Direita passou a ser efectiva.
O António Marques Bessa, que aderira ao Partido do Progresso,
foi dos que escaparam à prisão no 28 de Setembro e conseguiram ir para Madrid.
Nada o perturbava: “Oh meu amigo, eu e o Nogueira Pinto (o António optava
sempre pelo apelido quando falava de nós aos outros) éramos das direitas em
faculdades dominadas pelas esquerdas, de modo que não temos medo de nada e
estamos preparados para tudo!”
Em
Madrid, participou activamente na resistência, mas não parou de investigar e de
escrever, e publicou, com Juan Vargas, um Diccionario Politico para Occidente, em que também colaborei.
Esse
tempo de exílio foi um tempo em que aprofundámos a nossa amizade; escrevemos em
parceria, no Verão de 1977, a Introdução à Política. Dividíamos os temas,
escrevíamos durante o dia e, à noite, depois do jantar, o António vinha ter a
minha casa e harmonizávamos e depurávamos o texto, até de madrugada.
O António foi das pessoas mais
divertidas e com maior sentido de humor que encontrei na vida: um humor acutilante, vicentino, camiliano, desabrido
que não poupava nada nem ninguém e muito menos as pompas e circunstâncias do
meio universitário, as hipocrisias, as intrigas, as invejas, os golpes baixos,
sob as vestes e insígnias da respeitabilidade académica. Não posso esquecer que foi ele, com a
sua amizade teimosa, persistente e inteligente, que desmontou a encapotada
“proscrição inquisitorial” que me bloqueou o doutoramento durante anos.
Pensamento e obra
Olhando
para alguns dos títulos publicados por António Marques Bessa, não é difícil entender o sentido do seu pensamento
e dos seus interesses: o estudo da
Política, atestado
pelos Dicionários de Política e pela Introdução à Política e o tema da Utopia, que
esteve no cerne do seu pensamento crítico, associado, como quase tudo nele, a
um lado lúdico, neste caso à ficção científica, onde abundavam as utopias e as
distopias. O António era, como muitos da nossa geração, um
fanático da Scfi: lera
centenas de volumes e sabia outros tantos enredos com precisão. Vivendo
na segunda metade do século XX, contemporâneos dos horrores do comunismo nas
suas versões soviética, maoista e terceiro-mundista (e até do breve ensaio
doméstico de 74-75) eram sobretudo as distopias que nos interessavam.
O
António era daqueles que, como José António Primo de Rivera, considerava Rousseau um homem nefasto, com
a sua teoria do “bom selvagem”, do homem naturalmente bom, uma
convicção comum aos iluminados do século XVIII que, para criticar os europeus e
os seus sistemas políticos, endeusavam chineses, persas e ameríndios.
Para o António, as utopias distópicas, saídas das “rêveries” do
“passeante solitário de Genebra”, só se curavam com realismo, com a observação
do homem e da experiência histórica das sociedades humanas. E fixava-se nos esforços dos utópicos chegados ao poder, dos
jacobinos aos bolcheviques, que, para domesticar e “tornar bons os homens
maus”, modificando a sociedade, denunciavam, prendiam, torturavam e
assassinavam mais e com maiores requintes do que os regimes reaccionários que
pretendiam combater e extirpar.
Desta
visão realista resultou também o seu interesse pela Etologia,
nomeadamente por Robert Ardrey e Konrad Lorenz, que desenvolveria em vários ensaios e artigos,
sublinhando que, paralelamente à construção cultural, os
homens não escapavam às regras e às leis comportamentais das sociedades de
hominídeos, estudadas no seu meio natural.
Deste
realismo político e antropológico nasceu também a preocupação do estudo do
governo das sociedades e da realidade e verdade do poder, para além do discurso
e das fórmulas ideológicas. O António foi aqui, como muitos de nós, influenciado
pelos escritos de Sorel, de Pareto, de Mosca, de Michels, a começar pela teoria
da circulação das elites; isto é, pelo estudo das oligarquias, que
seria o tema da sua tese de Doutoramento: Quem Governa? Uma Análise
Histórico-Política do Tema da Elite.
Também a análise da sociedade internacional devia ser feita, não a
partir das fórmulas ideológicas e propagandísticas dos poderes dominantes e das
instituições internacionais e internacionalistas suas subordinadas, mas de uma perspectiva realista, ou seja, a partir dos interesses
históricos dos Estados, dos povos e dos dirigentes.
Foi
sempre, por intuição, por convicção e por estudo, um nacionalista realista que seguia, na
análise da História de Portugal, as pistas de Borges de Macedo e de Franco
Nogueira e da experiência do “isolamento orgulhoso” do Portugal dos anos 60.
Os seus ensaios – Para uma teoria geopolítica do conflito na Europa
do Nosso tempo (1997), O olhar de Leviathan –
uma introdução à política externa dos Estados modernos (2001) e Salto
do Tigre, Geopolítica Aplicada (2007)
reflectem a sua visão realista das relações internacionais.
Como todos os homens de pensamento
que acreditam na necessidade e importância da acção e da cultura, o António Marques Bessa
deixou-nos também muitas centenas de artigos dispersos por revistas, jornais,
conferências, debates, programas partidários e folhetos panfletários.
Dele
fica ainda, ou sobretudo, um legado de milhares de horas de aulas dadas a
milhares de alunos que, ao longo dos anos, nunca deixou de ensinar e de
impressionar – pela inteligência fulgurante, pela capacidade pedagógica, pela
imaginação criativa e exemplificação inesperada e lúdica, numa linguagem que
nenhuma censura ou código repressivo, alheio ou próprio, calava ou domesticava.
O António era assim: inesquecível e inultrapassável, humanamente e
politicamente livre e por isso incorrectíssimo na sua liberdade.
Sensível
à importância do poder cultural, de Gramsci à Nouvelle Droite, o António
Marques Bessa esteve em vários movimentos que, na Direita-Direita
(a que nunca foi do Centro), foram
mantendo vivo um pensamento alternativo. Assim, fez parte do núcleo fundacional
da revista Futuro
Presente, em 1980, integrando
o movimento de renovação do pensamento de Direita que, então, agrupava
correntes nacionais revolucionárias, tradicionalistas, conservadoras e liberais.
Do lado de lá
Deixo para o fim o mais importante.
Além de toda esta actividade política e cultural, o António Marques Bessa era
um católico de convicção e
observância, um homem com uma fé profunda, vivida com obediência e coerência
mas sem maniqueísmos ou sectarismos.
Morreu no dia 16 de Agosto, dia de
Santo Estêvão, rei da Hungria, homónimo do primeiro mártir do Cristianismo.
Estêvão, que foi o unificador das tribos húngaras e o primeiro rei cristão do
país, consagrou a nação húngara à Virgem Maria – e o António Marques Bessa, que
procurava um Deus escondido e surpreendente que gostava de se revelar aos mais
pequenos por pequenos sinais, era um mariano devoto. Lembro-me de falarmos sobre o paradoxo de um Deus
e de um Bem que se escondem e nos surpreendem e de um Maligno e de um Mal que
se revelam e nos solicitam, e de concluirmos, como crentes inquietos com os
desencontros da Fé e da Razão, que era mais um mistério que só desvendaríamos
do lado de lá. O António agora já lá está, e imagino como seria divertido
ouvi-lo contar como é; ouvi-lo, como tantas vezes o ouvimos noutras histórias e
noutras descobertas de enigmas do lado de cá, com o seu riso poderoso,
dominador, alegre, desprendido, desmistificador, a expor esse e outros
mistérios do Além. Mas vamos ter de esperar até que chegue o nosso dia.
OBITUÁRIO SOCIEDADE FILOSOFIA POLÍTICA POLÍTICA
COMENTÁRIOS:
V. Oliveira: O "país" anda entusiamadíssimo com a ideia de uma estátua a
um tal Vasco Gonçalves, membro da "... esquerda
radical e os seus aliados no MFA, percebendo que em democracia talvez não
conseguissem os seus objectivos, deram os golpes do 28 de Setembro e do 11 de
Março, com a cumplicidade dos democratas “antifascistas”. Enquanto isso, os jovens
continuam a rumar ao norte europeu (e não só os detentores de diploma
universitário), as grávidas deambulam dezenas de quilómetros para dar à luz, as
urgências têm dia e hora marcados, os alunos anseiam por professores, etc. Os
sucessos da vanguarda que tomou conta deste "país" são às mãos
cheias... Alexandre
Areias: Que bonita homenagem! Neste tempo de cinzentismo e lambe-botismo militante,
com um país dominado por boçais convencidos da sua sapiência parola e direito
de pilhar o país, que falta fazem homens livres e de verdadeiras convicções miguel cardoso:
Exmo. Senhor Dr.
Jaime Nogueira Pinto: Mais uma vez tocado por um texto seu, na minha apagada
existência lembrei a formação que tive com o "Futuro Presente" e a
importância que tiveram os textos de António Marques Bessa (e de outros) na
altura em que, por todos os lados , vivíamos mergulhados na sopa marxista, e
tanto precisávamos de ar. O que nos conta hoje, para além da homenagem, sincera
e explicada a um amigo, mostra mais uma vez o que é ser de Direita: ver as
pessoas (o Homem e as suas circunstâncias) e não as massas e a sua moldagem nas
mãos de um qualquer ceramista louco, Respeitosamente Miguel Geraldes Cardoso Joaquim Lopes: O que dizer mais? Que Deus lhe
dê saúde para continuar a escrever, Senhor Jaime Nogueira Pinto, o Senhor tem
muitos mais admiradores do que a sua humildade pode levar a pensar. Há dias lembrei-me da maioria
silenciosa e dessa manifestação, sem partidos políticos, excepto aqueles que
sempre se infiltram, Portugal na fase em que está precisa se levantar, contra
as minorias que têm destruído o país de Abril. J S: Excelente, excelente artigo.
Pena ser difícil de encontrar o seu livro "Quem governa?". Pedro Gonçalves: Muito obrigado pelo texto (excelente) e por trazer a notícia da
partida de Marques Bessa para o espaço mediático, de onde creio que esteve
totalmente ausente. Não fosse o artigo (merecido e justo) motivado por um evento triste e o
regozijo de poder ler um dos melhores professores que tive, a homenagear outros
dos excelentes com quem estive em sala de aula, seria maior. Obrigado Professor JNP e até
sempre Professor AMB, que muita falta fará à Academia e espaço público, onde
Homens de pensamento livre, disruptivo e estimuladores de pensamento crítico já
praticamente não existem. bento guerra:
Um bom epitáfio, para
um homem que passou despercebido dos títulos e que qualquer um gostaria de
receber. Sempre do lado de cá, porque de lá, não vêm notícias. Felisberto Ramos: Muito bem! Maria Nunes:
Excelente
homenagem de JNP a um Amigo. Passou completamente despercebido o
falecimento de AMB. Só num país de gente pequenina isso
poderia acontecer. Madalena Sa: Oh que texto maravilhoso! Linda
homenagem
António Louro: Excelente. Filipe Paes de
Vasconcellos: É tão bom ler textos de pessoas brilhantes sobre
pessoas de grande qualidade e que este País de pobres de espírito
desaproveita! Rui
Teixeira: Excelente texto para um grande homem. O meu amigo
António MB era uma personalidade. Uma Força. Um Homem....que o país do
"faz de conta" dos homenzinhos mediáticos e políticos e intelectuais
"tão conformes" só podia envolver num círculo de silêncio. Tal como o
fizeram com o general João Almeida Bruno, por exemplo. Um abraço aí para cima, meu
querido António.
Riaz Carmali: Bem vindo de volta caro JNP. Fiquei sensibilizado com a
forma como retratou o seu amigo. Não sabia que o JNP era um
Católico devoto. Eu sou um Muçulmano devoto. Irei rezar ao DEUS ÚNICO pela
alma do António Marques Bessa. Um abraço para si Alberto Rei > Riaz Carmali: Ó Riaz, então tu dizes cobras e
lagartos do Nogueira Pinto, e agora estás com falinhas mansas ? Bessa
andou com os socialistas na governação, mas depressa se desiludiu. Grande
economista, também estudei aqueles livros amarelos. Mas foi um silêncio o
seu deparecimento, lá isso foi. É assim nesta terra que não sabe reconhecer os
seus ilustres filhos. Tantos. Riaz Carmali > Alberto Rei: Eu critiquei-o onde achei que
deveria fazê-lo, e já o elogiei anteriormente também onde achei que deveria
fazê-lo. Eu sou um homem de coração, caro Alberto. Não guardo
rancores. E fiquei bastante comovido com este texto, pela amizade que unia JNP
e AMB. Um abraço.
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