sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Internet para pausa de revisão


A propósito do texto precioso de Paulo Tunhas, de informação filosófica sobre a semiótica actual, que impõe, com uma autoridade própria das tais ditaduras tão desclassificadas – refiro-me às de outrora, é claro - regras de abastardamento na formulação de novos signos, na sequência do abastardamento dos costumes. Fui, pois, procurar o significado da expressão  «cosmos noetus» que me levou a uma revisão de conceitos que cheguei a focar nas aulas, mas que nunca aprofundara.

Também li o texto citado de José Pacheco Pereira «Anjos, arcanjos, querubins e serafins» de 16 de Julho, que ajudaria a compreender melhor o de Paulo Tunhas, mais explícito no ataque de que foi alvo, por conta das suas razões de bom-senso e ironia crítica. Cito apenas uns parágrafos:

«Esta questão da LGBTTTQQIAA+ sempre me pareceu o afã medieval dos teólogos para definir a hierarquia dos céus, com os Serafins, Querubins, Tronos, Domínios, Virtudes, Poderes, Principados, Arcanjos, e Anjos, o que daria SQTDVPPAA, mesmo assim com menos letras e sem aquele indeterminado +. Ironia à parte, há um aspecto comum, o nominalismo escolástico que, mais do que classificar o mundo, pretende dominá-lo e hierarquizá-lo. Reafirmo o meu ponto essencial: este não é um discurso libertador, mas opressor, e as democracias contêm todas as diferenças, mas não são corporações de identidades, nem de “comunidades”. A questão para mim continua a mesma: o discurso do excesso identitário, com o seu afã de classificar tudo e todos, é censório e intimidatório, é uma linguagem de Autoridade que deslassa a democracia e marginaliza mais do que inclui. É, em substância, um discurso antidemocrático que acantona mais do que agrega, e é socialmente reaccionário nos seus efeitos, porque minimiza as principais fontes da desigualdade e exclusão de muitos na sociedade capitalista a favor de um radicalismo cultural de privilegiados. É um mau serviço ao combate à homofobia e ao racismo, como cada vez mais gente percebe. É, com o discurso “trumpista”, de que este é espelho, uma tentativa de engenharia social que constitui uma ameaça para a democracia dos dias de hoje pela sua arrogância e agressividade. De novo, insisto, isto pouco tem que ver com o combate à homofobia, é muito mais da ordem do tribalismo. (…)»

O discurso identitário e a falta de Freud

É apenas a liberdade que nos permite simultaneamente empatizar uns com os outros e guardarmos para com eles uma indiferença positiva que é uma forma de reconhecer a sua autonomia.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 04 ago 2022, 00:1910

A propósito de um artigo de Pacheco Pereira e outro de Ricardo Araújo Pereira, em torno da chamada “linguagem inclusiva” e do glossário LGBTetc., houve um pequeno caudal de prosa abespinhada que se publicou por aí, nomeadamente no Público, que cada vez mais toma para si a missão de educar os verdadeiros “portugueses de bem” nas delícias do delírio contemporâneo. Essa prosa não era muito importante. Na verdade, era insignificante, oscilando entre o furor indignado – um estilo recorrente na opinião jornalística – e uma muito cómica pretensão à cientificidade – uma não menos habitual manifestação da ignorância que a si mesma se ignora. Tudo isso sem que a língua portuguesa se ria, galhofeira, como Alexandre O’Neill queria, com quem assim escreve – antes, como O’Neill desqueria, falando bonito, chique e pudico. Por essa razão, o simples bom senso aconselharia a deixar a prosa sossegada nas suas agitações e a passar a matérias verdadeiramente interessantes.

Acontece, no entanto, que a prosa em questão, a tal prosa chique e pudica, acaba por ser significativa de um certo ponto de vista: ela exprime, à sua maneira fruste, uma tendência geral do pensamento democrático contemporâneo que encarna, sem verdadeiro paradoxo, uma vocação despótica, uma tendência que, com uma presciência que, nunca será demais sublinhar, Tocqueville diagnosticou já em meados do século XIX. Na sua forma actual, essa tendência manifesta-se de múltiplas maneiras, que são coerentes entre si e que transcendem de longe as questões de género: o apelo a uma regimentação da linguagem, tão mais invasiva quanto novas proibições do uso linguístico se sucedem umas às outras, acompanhando a luxuriante criação de novos termos, quer de utilização obrigatória, quer denominando o que se poderia chamar “crimes de palavra” (por exemplo, “capacitismo”); a divisão da sociedade em identidades estanques que não comunicam entre si, já que tal comunicação seria vista como um modo de ceder ao poder opressivo de uma suposta maioria que tem por objectivo único a destruição dessas mesmas identidades; a própria exorbitação das identidades, que as alça a um patamar metafísico absoluto; e a dissolução dos indivíduos, com a sua dinâmica própria, na identidade metafísica que são supostos representar (veja-se tudo o que se diz sobre o “género”). Poderia continuar, mas isto chega.

É difícil não ver neste tipo de discurso uma quase paródia do platonismo, sem, obviamente, a consciência das aporias que o génio de Platão reconheceu na sua própria construção. Como se sabe, Platão distinguia o mundo das ideias, ou das formas, eterno e inamovível, do mundo fenomenal, passageiro e mutável. Os habitantes do mundo fenomenal “participavam” dos habitantes do mundo das ideias, recebendo destes o que de precária realidade ontológica possuíam. O que obrigava Platão a reconhecer, no mundo das ideias, o kosmos noetos (1), ideias como, por exemplo, a de pêlo, da qual os pêlos sensíveis seriam uma cópia ou imitação. O novo platonismo do discurso identitário reproduz, na sua essência, este arranjo metafísico das coisas. Até na sua dissolução dos indivíduos em identidades absolutas das quais são provisórias encarnações. E não há a mínima variação sensível que, à imagem do pêlo, não encontre logo uma ideia eterna que lhe corresponda e que a “ciência” justifica (aquele “+” em “LGBTQIA+” indica exactamente o infinito dessa população no mundo das ideias). A diferença principal entre as duas construções reside aqui, é claro, para além daquela que resulta do génio de Platão, em que a primeira foi, logo desde Aristóteles, vista por muitos como como uma depreciação do sensível e da sua riqueza e a segunda é concebida como uma “libertação”.

Mas não é uma “libertação”. Basta ler Montaigne para ver que não é. A identidade dos indivíduos – de todos os indivíduos – é dinâmica, não matemática. Cada um busca para si, ao longo da vida, a criação de uma “forma própria”. Mas essa criação faz-se na vida, que é um movimento imperfeito, avesso à estabilidade e à solidez. “Há pouca relação entre as nossas acções, que se encontram em perpétua mutação, e as leis fixas e imóveis”. Não passamos, como ele diz, de retalhos diversos, no fundo descosidos uns dos outros, e mesmo descosidos de nós mesmos, mesclados e remendados. Montaigne viu bem que a criação da “forma própria” é o resultado de uma dissemelhança constante que permite, no fim, uma auto-imposição de limites, um apanhar da vida como um todo. Aqui sim, trata-se de libertação. A “forma própria” não é o resultado de uma “participação” no mundo das ideias. É o resultado de uma actividade que é, no fundo, uma actividade de auto-elucidação.

Não andamos, por acaso, longe de Freud. Há muito tempo que me apanho a lamentar o modo como Freud se tornou um pensador maldito e propriamente irrecebível para a cultura contemporânea, algo que alguém com a minha idade teria dificuldade, uns anos atrás, em imaginar. Não falo de Freud como o inventor de uma técnica terapêutica nem da psicanálise como um todo: falo de Freud como um filósofo da alma – ou da psique, se se preferir a palavra de origem grega à palavra de origem latina. Nestes tempos, Freud faz imensa falta. Até porque se encontra nos antípodas do platonismo despótico do discurso identitário.

Com efeito, como vários outros filósofos, Freud concedeu uma grande importância ao princípio da continuidade. Há continuidade entre as várias formas de sexualidade. Há continuidade entre cada ser humano e a variedade quase ilimitada da humanidade. Há continuidade entre o pensamento vigil e o pensamento do sonho. Há continuidade entre os factos psíquicos normais e os factos psíquicos mórbidos. E por aí adiante. E é sobre essa continuidade que se estabelecem todos os conflitos dinâmicos que constituem a vida psíquica. O projecto de Freud – fazer nascer o Eu aí onde se encontra o Id, o inconsciente – possui notáveis semelhanças, sob vários aspectos, com o de Montaigne: o Eu freudiano – que, conquistando espaço ao Id, nos permite melhor amar e trabalhar, transformando a miséria neurótica em banal sofrimento – é afim da “forma própria” de Montaigne.

Freud faz falta porque o seu pensamento é um convite à reflexividade que é a condição indispensável da liberdade. E é apenas a liberdade que nos permite simultaneamente empatizar uns com os outros – o que implica a admissão da continuidade que nos liga – e guardarmos para com eles uma indiferença positiva que é uma forma de reconhecer a sua autonomia. Tudo aquilo que o identitarismo contemporâneo, na violência sobre a linguagem comum que exerce, nega, quaisquer que sejam as boas intenções – em Portugal, as boas intenções do puritanismo possível a católicos ateus – que em muitos casos o possam mover.

LIBERDADES   SOCIEDADE   LÍNGUA   CULTURA   LGBTQ   DIREITOS HUMANOS

COMENTÁRIOS:

Liberales Semper Erexitque: A única relação que eu vislumbraria entre o doutor Sigmund Freud e um "activista" resultaria de o primeiro tratar o segundo.               Pobre Portugal Realmente; entre os “identitários” e os “Pereiras” (o Pacheco e o Ricardo), não há diferença nenhuma. Todos uns totalitários empenhados em combater, … o Totalitarismo. Depois bastava ver onde toda esta gente fervilha, sic/expresso e público/sonae, para sabermos ao que vêm.          João Alves: Não seria melhor, em vez de fazer uma platónica, montaigneana (lá estou eu a inventar, eruditamente, mais uma palavra) e freudiana leitura metafísica do neomarxismo identitário de inspiração gramsciana (outra), desmontá-lo analiticamente, expondo s suas contradições estruturais?             Liberales Semper Erexitque > João Alves: O marxismo é o cristianismo reciclado. Surge, naturalmente, quando Deus morre após as Luzes, no século XIX. Parecia o marxismo ter falecido em 1989, mas uma nova emanação do mesmo moralismo serôdio atinge nos nossos dias todo o seu "esplendor". É o "ambientalismo". É aí que está o perigo, não nas patetices "identitárias".                Desabafo Assim: As emoções têm sempre uma graça tradução na linguagem, até se brinca com esse facto, "fogo que arde sem se ver". Platão e Freud falam-nos dos nossos dias que também eram os seus, nestas sombras que se agitam na calada da noite, nesses cenários teatrais e na procura da compreensão do que se passa na mente do encenador, revolucionários antes como agora, uma abordagem pagã como nos convém. Os "recados", as sombras da parede, os mistérios do superego, tudo nos tira capacidade, nos coloca como simples peões, subordinados numa engrenagem, estrangeiros dentro de nós próprios. Pois o "super homem" nasce no consciente e por iniciativa vence o subconsciente, o complexo está dependente de coisinhas muito simples.           Cisca Impllit: É  muito bom ler uns textos de um Homem que se conhece e se aprecia muito também!   Cada vez melhor, se é  possível! bento guerra: Tem aparecido por aí, uma foto da Beyoncé a promover o último disco. Aquilo dispensa cartão identitário, mesmo que com muito "photoshop"           Américo Silva: Gostei muito da sua crónica. Temos de nos atualizar, por acaso sabe, sem qualquer acinte ou soberba presunção, o que é o flexifeminismo?, o último must das correntes progressistas. Vou exemplificar, quando uma mulher, ou afim, sente que o chefe lhe põe a mão nas nádegas, vai para casa e pensa se vai apresentar queixa por agressão sexual, se vai pedir uma promoção, ou se embarca numas férias a dois pagas pelo chefe.         Américo Silva > Américo Silva: É que tem todo o direito de se ofender à segunda, gostar à terça, ficar incapacitada à quarta, e assim sucessivamente, é o eterno retorno lavado de nome novo, como aquelas empresas manhosas que vão mudando a designação, o macaco é sempre o mesmo.

 

(NOTAS DA INTERNET)

(1) Kósmos Noetós:

A Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce

Ivo Assad Ibri

Enquanto a reputação filosófica de Charles S. Peirce continua a ascender à proeminência de primeira linha na história da filosofia americana, esta obra do internacionalmente renomado acadêmico e editor, professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, atinge o âmago do sistema arquitetônico peirciano das categorias fenomenológicas, metafísicas e semióticas que, heuristicamente, caracterizam nosso mundo como "um universo perfundido com signos".

NOVEMBRO 8, 2016

O signo: elementos semióticos de Peirce

Nada é um signo, a menos que interpretado como um signo. C.S.Peirce

O filósofo Charles Sanders Peirce (1839 — 1914) investigava a relação entre objetos e o pensamento. Em sua perspectiva, seria impossível compreender objetos externos ao sujeito de forma acurada e de maneira universalmente aceitas entre diferente sujeitos. Essas críticas epistemológicas remontam de Locke, Hume e Kant, para quem um mero empirismo ou um racionalismo isolado não seria capaz de compreender a realidade. Peirce aproveitou o conhecimento e reflexões adquiridos em sua formação como físico e matemático para formular sua teoria da semiótica, o estudo dos signos.

objeto teria qualidade intrínseca, mas de sua relação com o sujeito por meio da linguagem resultava na representação da realidade.

A unidade semiótica seria o signo: o estímulo com parâmetro dotado de significado. Peirce listou três modos de o signo mediar os significados:

Ícone: um parâmetro com relação de semelhança com o objeto. Uma foto, por exemplo. Onomatopeias seriam ícones verbais. As limitações do ícone basicamente são duas: nem todos os seres reconhecem um ícone (animais se auto-reconhecerem em uma pintura) e depende da qualidade da representação, como um retrato cubista não ter um retratado tão facilmente reconhecível quanto em uma pintura realista.

Índice: um parâmetro cujo signo possua uma relação de causalidade sensorial indicando seu significado. Alguns índices podem ser interpretados por animais. Por exemplo, onde há fumaça geralmente há fogo. Uma poça d’água pode indicar que houve chuva. Pronomes demonstrativos e advérbios são equivalentes verbais dos índices.

Símbolo: uma relação puramente convencional entre o signo e seu significado. Não há fortes evidências que animais na natureza usem os símbolos. Sinais de chamados de baleias, cachorros e pássaros aproximam-se mais dos índices. A gorila Koko ou outro primatas que respondem a símbolos são exceções a serem estudados. O símbolo é explicado ad infinitum por outros referentes, como nas definições de um dicionário que levam a outra definição. Alguns símbolos são não verbais, como a cruz para simbolizar uma sepultura, a religião cristã, uma nacionalidade (em bandeiras), um hospital, dentre outros. Nas línguas, quase a totalidade das palavras são símbolos, representando alguma coisa, quer nominal (um substantivo ou adjetivo) ou uma ação.

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Baseado em Peirce, Charles William Morris (1901 – 1979) estabeleceu três disciplinas semióticas: sintaxe (estudo da relação entre signos e signos), semântica (estudo das relações entre signos e objetos) e a pragmática (estudo da relação entre signo, objetos e usuários).

As tríades de Peirce (ícone, índice e símbolo; o representante, o objeto denotado, o interpretante) contrapõe às dicotomias da teoria dos signos de Saussure, mas o foco comum no signo sedimentou a semiologia como a ciência dos significados, influenciando a teoria da comunicação, o estruturalismo e a linguística.

Com essa abrangência os conceitos da semiótica somaram-se aos da antropologia. Além dos fenômenos da comunicação, a semiótica passou a ser aplicada a outros atos simbólicos, como a música, a ciência, a religião, a literatura, as relações políticas, o vestuário, a culinária, a organização social, dentre outros. Com essa abrangência da semiótica, Lévi-Strauss empregou largamente essas teorias na formulação da antropologia estruturalista. Também são patentes as influências na antropologia simbólica de Geertz, Turner e de Mary Dougla


Li também o extenso artigo: Semiótica – Wikipédia, a enciclopédia livre

https://pt.wikipedia.org › wiki › Semiótica

 

 

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