domingo, 21 de agosto de 2022

E assim vamos viajando


No mapa e na História. Que Nossa Senhora de Fátima se amerceie deste mundo, de trânsito, de facto, provocatório. Vou ler antes as Viagens de Paul Bowles, ou então, talvez o livro de cabeceira que me emprestou a Paula, de Gerald Messadié sobre “a senhora Sócrates, de seu nome Xantipa… Uma mulher que Sócrates não soube convencer”, vem escrito na capa, ele que se fartou  de convencer… É claro que não valeria a pena aconselhar o Putin a ler as tais “Viagens” de Paul Bowles, que levaram o escritor e compositor a uma vida de evasão pelos espaços do mundo, curtindo e descrevendo-os com muito ardor, sem qualquer ambição de posse – material, digo - que preferiu amar a Terra na sua variedade e dispersão. Quem dera que Putin assim amasse a Terra! Ou mesmo só a leitura, para se distrair, fazendo interregno nas suas ambições de posse e  de crueldades desumanas. Mas leiamos o artigo de Cátia Bruno, sobre mais uma hipótese de conflito, que nos trouxe informações preciosas sobre espaços terrenos aonde ainda não tínhamos estado, historicamente falando, nem sequer no mapa – o arquipélago Svalbard, a zona habitada mais a Norte, cheia de recursos naturais “e de interesses geopolíticos”, e agora zona provável também de conflito, como bem descreve.

Árctico. O próximo ponto de tensão com Putin depois da guerra na Ucrânia?

A nova doutrina naval russa anunciada por Putin inclui a defesa "das águas russas do Árctico". Numa região cheia de riqueza natural e interesses geopolíticos, a guerra da Ucrânia deixa todos nervosos.

CÁTIA BRUNO: Texto

OBSERVADOR, 17 ago 2022, 21:597

Índice: Uma suspensão e uma nova doutrina naval. As consequências da guerra da Ucrânia no Ártico. As riquezas geladas do Árctico e a influência da China,  NATO e Rússia. Um embate de titãs a Norte?

Svalbard é um arquipélago gelado, onde vivem menos de três mil pessoas e é obrigatório andar armado quando se sai das cidades, por causa do risco de ataques dos ursos polares. É a zona permanentemente habitada mais a norte de todo o globo. E é também o “calcanhar de Aquiles da NATO no Árctico”, como lhe chamou em tempos um professor de Estudos de Segurança.

Formalmente, Svalbard está sob soberania norueguesamas graças a um tratado com um século, muitos outros países têm direito a explorar os seus recursos naturais. Em concreto a Rússia, que explora minas na região há anos, muitas vezes com recurso a trabalhadores ucranianos, na maioria vindos da região do Donbass. Na cidade abandonada de Pyramiden, ainda é possível encontrar um busto de Lenine e um slogan que diz “O comunismo é o nosso objectivo.

Em janeiro deste ano, cerca de um mês antes da invasão russa da Ucrânia, deixou de haver internet por alguns dias em Svalbard. Um dos cabos de fibra óptica subaquático, que assegura o fornecimento, estava danificado. As autoridades locais disseram que uma das hipóteses para explicar o problema era o “impacto humano”, não chegando oficialmente a apontar dedos. Mas, para bom entendedor, meia palavra basta. No último relatório anual dos serviços de segurança noruegueses, destacava-se que a Rússia estava a desenvolver a capacidade de danificar cabos subaquáticos e o país era identificado como “a maior ameaça” para a Noruega em termos de ataques cibernéticos.

Nada que seja propriamente novo. Há vários anos que a Rússia tem levado a cabo pequenas provocações no arquipélago, usando-o como se fosse seu território. Foi o caso da visita-surpresa do vice primeiro-ministro Dmitry Rogozin a Svalbard em 2015 ou a escala de forças especiais chechenas na região. Mas, até há pouco tempo, ninguém acreditava que a paz no Árctico estivesse verdadeiramente em causa.Por um lado, a Rússia demonstra o seu poderio militar violando espaços aéreos e marítimos, realizando exercícios de larga escala, reabrindo bases soviéticas”, escrevia já em 2017 o Wilson Center. “Por outro lado, os responsáveis russos sublinham consistentemente a necessidade de despolitizar a cooperação na região e de manter canais de comunicação de alto nível.” Com a guerra na Ucrânia, a situação mudou. Em junho, a Rússia acusou a Noruega de impedir a passagem pelas suas águas de um navio com destino a Svalbard, que transportava bens alimentares. “As autoridades norueguesas estão a tentar garantir que os menores russos fiquem sem comida, o que é imoral”, acusou um responsável de Moscovo. Na prática, a Noruega estava a aplicar as sanções europeias aplicadas à Rússia — e o país poderia contorná-las enviando o barco por outra rota, como fazia até então.

Uma suspensão e uma nova doutrina naval. As consequências da guerra da Ucrânia no Árctico

Um mês depois, a Rússia anunciava a sua nova doutrina naval, onde acusa os EUA e a NATO de estarem a tentar uma estratégia de domínio mundial — incluindo no Árctico. “Estas são as nossas águas”, declarou Vladimir Putin no discurso no Dia da Marinha russa, referindo-se a essa região. “Vamos garantir a sua proteção firme e com recurso a todos os meios.” O documento inclui agora menções a “Preparação e prontidão para a mobilização” e “Procedimentos para recurso aos instrumentos da política nacional marítima para proteger os interesses nacionais”que estavam ausentes da versão anterior, publicada em 2015.

David Auerswald é taxativo sobre os últimos acontecimentos em Svalbard: “São daquelas acções provocadoras que chamam a atenção, mas é pouco provável que levem a um conflito armado”, diz ao Observador este professor da norte-americana National War College, que prestou declarações a título pessoal. Já quanto à questão do Árctico na nova doutrina naval russa, Auerswald diz que “é muito difícil saber as verdadeiras intenções da Rússia relativamente ao Árctico”, mas arrisca uma hipótese: “Os anúncios recentes parecem ser uma continuação da política russa e não uma iniciativa totalmente nova. A Rússia teve de desviar recursos significativos para sul, para o conflito na Ucrânia. Talvez estes anúncios sejam uma forma de compensar as capacidades militares decrescentes a norte.”

Esta política de continuidade no Árctico é explicada ao Observador pelo russo Alexander Sergunin: “Já na estratégia naval russa de 2015 o Árctico e o Atlântico Norte eram identificados como regiões onde tem havido aumento de atividades militares da NATO”, afirma o professor da Universidade de São Petersburgo. “Esta doutrina naval mais recente é um reflexo das políticas mais assertivas da NATO na região na sequência deste agravar da crise ucraniana em 2022.”

Logo após o início da invasão à Ucrânia, sete dos oito membros do Conselho do Árcticoque reúne Rússia, Canadá, Estados Unidos, Dinamarca, Noruega, Islândia, Finlândia e Suécia — decidiram suspender a participação russa no órgão. Um primeiro sinal de que a definição da região como uma “zona de paz e cooperação”, como em tempos a definiu Mikhail Gorbachev, pode deixar de fazer sentido.

“A suspensão temporária da Rússia do Conselho do Árctico é um reconhecimento por parte dos poderes ocidentais de que o trabalho do Conselho já não pode ser compartimentalizado e afastado dos desenvolvimentos geopolíticos mais latos”, comenta David Auerswald. “Isto é novo. O Conselho continuou a funcionar depois da anexação russa da Crimeia em 2014, porque se acreditava que a cooperação científica e ambiental era importante e que o Conselho poderia ser um local onde a Rússia podia exercer o hábito da actividade diplomática normal.”

Na prática, os restantes países Árcticos não se podem dar ao luxo de ignorar a Rússia. É o país que detém a maior área territorial da região, com uma costa árctica que se estende por quase 25 mil quilómetros e uma zona económica exclusiva com mais de dois milhões de quilómetros quadrados de área. Em termos militares, a Frota do Norte é a maior frota russa e o seu quartel-general, na península de Kola, tem depósitos de armamento nuclear. Mas essa mesma militarização pode fazer aumentar o risco na região, num momento em que a tensão na Ucrânia se alastra a outros pontos de globo.

As riquezas geladas do Árctico e a influência da China

E a guerra na Ucrânia começa a ter outros efeitos na região. As sanções aplicadas à Rússia têm levado à diminuição do investimento no Árctico, o que provocou o congelamento de vários projetosincluindo até na área científica. Também muitos investimentos económicos russos estão agora em stand by, e isso é dizer muito numa região que se manifesta como um novo El Dorado para muitos países. Com a aceleração das alterações climáticas, o degelo das calotes permite agora a navegação por zonas que antes não eram circuláveis, o que abre rotas comerciais inéditas. Além disso, o Árctico é rico em recursos: 16% de todo o petróleo mundial por explorar está ali, bem como 30% do gás natural. Somam-se a isso minerais raros.

“O Árctico está a aquecer de forma muito mais rápida do que o resto do planeta, o que significa que é agora mais fácil e barato aceder a hidrocarbonetos, explica o professor Auerswald. “Ao mesmo tempo, porém, as sanções ocidentais tornam extremamente difícil [para] a Rússia continuar a extrair esses recursos em larga escala.” Empresas como a Total, a Exxon Mobil e a BP já cancelaram os projetos que tinham com Moscovo na região.

"A Rússia não está interessada em que a China se torne um actor geopolítico mais relevante na região e vai tentar limitar a sua cooperação com Pequim no Árctico à esfera económica.”

Alexander Sergunin, professor da Universidade de São Petersburgo

Veja-se ainda o caso do projecto Arctic LNG 2, ligado à extração de gás liquefeito (GPL) no Árctico. Com a suspensão da compra de GPL russo por parte de quase toda a União Europeia (a Hungria ficou fora do acordo), a Rússia teve de interromper a construção de um projecto que tem um custo estimado de mais de 20 mil milhões de euros. “A primeira linha de produção do Arctic LNG 2 já está pronta a 98% e provavelmente entra em funcionamento em 2023. Contudo, a principal dona, a Novatek, anunciou recentemente que a construção da segunda e da terceira linhas de produção vai ser adiada por falta de investimento e de tecnologia”, ilustra Sergunin. Isso não significa, porém, a morte do projecto: “A China já é o maior investidor estrangeiro no Arctic LNG e certamente vai aumentar o seu papel neste sector.”

A isso soma-se a dependência russa dos mercados chineses, agora que o mercado europeu se fechou. Mas David Auerswald relembra que a China não tem a poção mágica para resolver todos os problemas económicos de Vladimir Putin: “A China não consegue preencher todo o vazio deixado pelo Ocidente. Dou apenas um exemplo: as linhas de abastecimento que existem actualmente e as planeadas representam apenas uma fracção das que existem a ligar a Rússia à Europa.”

Esta dependência, porém, não agrada a Moscovo. “A China sabe o quão dependente a Rússia se tornou da sua generosidade. E essa relação desequilibrada só vai fazer aumentar o sentimento de insegurança da Rússia”, acrescenta o professor norte-americano. Da Rússia chega a confirmação dessa percepção: “A Rússia não está interessada em que a China se torne um actor geopolítico mais relevante na região e vai tentar limitar a sua cooperação com Pequim no Árctico à esfera económica”, resume Alexander Sergunin.

Ao mesmo tempo, Moscovo tentará jogar com os receios do Ocidente face ao gigante chinês para não perder a sua influência na região“Se sairmos de Spitsbergen, quem pode substituir-nos? A China, por exemplo”, avisou há uns tempos o cônsul russo Sergei Guschin, usando o nome russo de Svalbard (Spitsbergen), o arquipélago norueguês da discórdia.

NATO e Rússia. Um embate de titãs a Norte?

Este puzzle complexo não deixa ninguém indiferente no Árctico. A Noruega, país a que pertence Svalbard, já há muito que se preocupa com a actuação russa na região. “As Forças Armadas russas modernizaram-se significativamente nos últimos 12 anos”, avisou o ex-ministro da Defesa de Oslo, Frank Bakke-Jensen, no ano passado. “A Rússia consegue agora conduzir operações sobre uma vasta área no Árctico”, o que reduz “a liberdade de movimento da NATO”.

À altura, a Noruega era um dos vários membros do Conselho do Árctico que pertence à NATO, a par dos EUA, Canadá, Dinamarca e Islândia. Um ano e meio depois, porém, a situação é outra. A guerra na Ucrânia levou a Suécia e a Finlândia a pedirem a adesão à Aliança Atlântica, o que muda significativamente o cenário na região: em breve, a Rússia será o único país do Conselho que não pertence à NATO.

Simbolicamente, é uma grande transformação da geopolítica do Árctico, que pode servir para a Rússia carregar no discurso de que se sente ameaçada pelo avançar das fronteiras da Aliança. Desde o início do conflito na Ucrânia, a NATO reforçou a sua presença no Árctico com uma série de exercícios militares no norte da Noruega, a que deu o nome de Resposta Fria 2022.

Mas, na prática, a mudança é mais cosmética, segundo o professor Sergunin. Apesar de reconhecer que, com a entrada na NATO, a relação da Rússia com a Finlândia e a Suécia “nunca mais será a mesma”, o russo considera que é uma mudança mais de forma do que de conteúdo. “A Suécia e a Finlândia estão alinhadas com o Ocidente há décadas. Ainda antes de se candidatarem à NATO, participaram em exercícios militares e treinos com membros da NATO durante anos. A única coisa que muda é que os dois países comprometem-se agora com o Artigo 5 [‘Um ataque a um membro é um ataque a todos’]”, diz.

"Eles estão a colocar recursos no Árctico que tentam projectar poder. Isso, combinado com a vontade da Rússia de desprezar o Direito Internacional, faz com que os Estados a Norte tenham todo o direito a preocuparem-se."

E haverá na verdade o risco de um conflito militar no Árctico? As opiniões dividem-se. Auerswald considera querisco existe em várias formas, como “uma escalada na Ucrânia, uma invasão militar dos Estados bálticos ou um erro de cálculo durante um exercício militar”, que “inevitavelmente se espalhariam ao Árctico”, devido ao envolvimento da Frota do Norte. Já Sergunin sublinha que nenhuma das partes tem interesse em partir para um conflito na região, incluindo a própria Rússia: “Moscovo não está interessada em meter-se em mais um conflito perto da sua fronteira além do da Ucrânia. Além disso, [a Rússia] entende que agora, no Árctico, está rodeada de países da NATO e qualquer conflito com eles traz riscos de uma escalada militar considerável ou até mesmo uma guerra em larga escala.

Numa zona militarizada e numa época de tensão, o risco está sempre presente. A forma como se olha para o futuro no Árctico pode, por isso, ser mais ou menos cor-de-rosa. Alexander Sergunin quer manter-se optimista: “É claro que a nova fase da crise ucraniana tem um efeito de alastramento negativo ao Árctico, mas creio que é mais uma interrupção temporária da cooperação na região do que o início de um conflito”, afirma, apontando os problemas comuns que assolam todos os Estados da região, como as alterações climáticas.

Em Washington, porém, o ambiente é de reserva face a uma Rússia que se revelou imprevisível, como resume David Auerswald. “Eles estão a colocar recursos no Árctico que tentam projectar poder. Isso, combinado com a vontade da Rússia de desprezar o Direito Internacional, faz com que os Estados a Norte tenham todo o direito a preocuparem-se. As tentativas de intimidação russa podem escalar para a coerção militar — talvez até para um conflito armado.”

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COMENTÁRIOS:

Pedro R. Almeida: A doutrina são palavras e a megalomania palavrosa sai barata. Por cá nós também reclamamos uma área gigantesca do Oceano que a nossa marinha não consegue proteger, mas pelo menos temos noção disso. No caso dos russos, com a falta de noção da realidade, que preocupa mais é que, tendo em conta a qualidade do material recauchutado dos tempos da URSS que usam, se resolverem passar das palavras aos actos e resolverem andar a passear aqueles mamarrachos no Arctico será mesmo a poluição que vão causar. Miguel Ramos: O Árctico! Ora aqui está um belo sítio para os trolls russos irem defender a Mãe RuSSia e o Pai Putin.              João Eduardo Gata: Como se a Falhada Rússia Putinesca  tivesse alguma hipótese no Árctico, quando estão a ser derrotados na Ucrânia.            António Abreu: Nem agora dão conta do recado...   Geiger Dieter: A Rússia é inimiga do resto do mundo, 140 milhões de seres humanos contra 7000 milhões. E a culpa do ressurgimento do kremlin foi a tomada de poder pelo Bidet em Washington. Os lideres fracos convidam à agressão. Espero que o Xi lhe passe aguarrás no sim senhor.          Nuno A: Estamos em guerra. Não percebo pq não entramos em campo. É insuportável ...            bento guerra: Tenham calma, pequenas!

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