Sangue, suor e lágrimas, no Afeganistão.
I TEXTO
▲Foi a 15
de agosto de 2021 que os talibãs, duas décadas depois de serem depostos,
subiram novamente ao poder no Afeganistão. Apesar de terem sido aconselhadas a
ficar em casa, as mulheres podem sair, desde que usem burqa. Os salões de
beleza foram encerrados e vandalizados
ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES
Foi há um ano, a
15 de agosto de 2021, que os talibãs voltaram ao poder no Afeganistão. Desde
então, muitas promessas foram quebradas. 900 mil perderam o emprego e há 18
milhões de pessoas com fome.
TÂNIA PEREIRINHA
OBSERVADOR, 14 ago 2022, 16:028
“Zhmena”, promessa em pashtun. Foi essa a palavra que vários
líderes talibãs usaram no início deste ano em Oslo,
nas negociações com
os países ocidentais, para garantir que assim que o ano escolar começasse no
Afeganistão as raparigas iam poder voltar à escola, recordou recentemente
o americano Thomas West, representante especial do Departamento de Estado para
aquele país, em entrevista à New York Times Magazine.
“Não somos contra a educação”, assegurou na
altura Zabihullah Mujahid, o porta-voz dos talibãs, explicando que se no outono
anterior só os rapazes tinham sido autorizados a regressar às aulas a partir do
7º ano tinha sido por uma “questão de capacidade”. Só era preciso preparar as
escolas para a segregação imposta pelo regime, meninos para um lado, meninas
para o outro.
Um
ano depois de o regime talibã ter sido reinstalado no país e quase cinco meses
após o arranque do novo ano lectivo afegão, a 23 de março, sabe-se que esta
“zhmena” foi quebrada. Não terá
sido a única, alertou
recentemente o diretor executivo da Amnistia em Portugal. “Tudo
aquilo que os talibãs prometeram à comunidade internacional que não iam fazer,
estão a fazer”, acusou Pedro Neto, alertando para a necessidade de a comunidade
internacional voltar a olhar para o que se passa no Afeganistão, arredado dos
holofotes mediáticos por acção da passagem do tempo e da guerra que entretanto
estalou na Ucrânia. “Direitos
civis e políticos, direitos de participação, vida em sociedade, especialmente
de mulheres e raparigas, têm sido alvo de uma repressão sufocante, o que está a
destruir a vida de mulheres e meninas, que estão a ser limitadas no seu acesso
à educação e que são vítimas de casamentos forçados.”
A decisão de
manter as raparigas fora do ensino secundário, garantiram vários membros do
Emirado Islâmico do Afeganistão ouvidos em Cabul pelo jornalista da New York
Times Magazine, não pode ser imputada ao governo estabelecido há um ano.
De acordo com as várias fontes ouvidas, todas
anónimas, terá sido apenas na véspera do início do ano escolar, já depois de o
sol se por e alegadamente ao arrepio da opinião da maioria dos membros do
governo, ministro da Educação incluído, que a Shura, o
conselho islâmico talibã, sediado em
Kandahar, se manifestou sobre o assunto e deu a ordem para manter as salas de
aula das escolas secundárias fechadas às raparigas.
Liderada pelo
Amir al-Mu’minin, o “Comandante dos Fiéis” — título que o Mullah Mohammed Omar,
fundador do Emirado
Islâmico do Afeganistão, adoptou em 1996 —, a Shura é há seis anos encabeçada pelo
Sheikh Haibatullah Akhunzada, religioso austero, pai de um bombista suicida,
descrito por membros do governo talibã como “mais parecido com o Mullah Omar do
que o próprio Mullah Omar”.
Por
decisão deste conselho, a partir do 7.º ano não há alunas nas escolas, mas,
garantiu sob anonimato à revista americana um funcionário do Ministério da
Educação, as raparigas continuam a poder frequentar não apenas o ensino
primário e universitário mas também o secundário, nos liceus privados que se
mantêm em funcionamento e também nas escolas públicas de algumas regiões do
país, que mantêm as portas abertas para as estudantes, apesar de não de forma oficial.
"Desde
que os talibãs regressaram, tenho visto muitos estudantes saírem ou abandonarem
a escola. Dos 17 ou 18 alunos da minha turma, já só restam 9" Estudante
afegã
Segundo Aziz-ur-Rahman Rayan, o
porta-voz do ministério, haverá seis milhões de rapazes e 2,7 milhões de raparigas
neste momento a estudar no país.
Em março, num relatório da Human Rights
Watch que dava conta da disparidade de regras nas
várias regiões do Afeganistão, uma aluna
de Mazar-i-Sharif, capital da província de Bactro, no norte do país, explicou
que, por medo dos talibãs, muitas colegas deixaram de ir às aulas antes
sequer de serem proibidas de frequentar o ensino.
“O nível de
frequência baixou significativamente. Em
cada aula só estavam oito ou cinco pessoas presentes. Os professores tiveram de
juntar as turmas. O baixo nível de assiduidade era assustador”, revelou a
aluna. “Desde que os talibãs regressaram, tenho visto muitos estudantes saírem
ou abandonarem a escola. Dos 17 ou 18 alunos da minha turma, já só restam
nove”, contou outra.
Mais de 90% da população não comeu o suficiente
no ano que passou e metade do país estará em “situação de insegurança alimentar
aguda”
Se não foi consultada no que diz respeito ao regresso
das mulheres às universidades, que efectivamente foi autorizado, a
Shura tem-se manifestado no que diz respeito a uma série de outras políticas
instituídas desde que, a 15 de agosto de 2021, os talibãs tomaram o poder no
Afeganistão, duas semanas antes da data apontada pelo Presidente Joe Biden para
a saída dos últimos militares americanos do país.
Desde então, os funcionários
públicos receberam ordens do reinstaurado Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício — instalado no espaço deixado vago pelo extinto Ministério dos Assuntos das
Mulheres — para usar
turbante e deixar crescer as barbas e as mulheres e raparigas foram
aconselhadas a cobrir-se perante os homens que não façam parte da família e a
permanecer em casa — se tiverem mesmo de sair, decretaram as autoridades
talibãs, devem fazê-lo tapadas da cabeça aos pés,
preferencialmente de burqa. Em caso de prevaricação, instituiu o ministério, serão os homens da família — e não as próprias — a
sofrer as respetivas punições.
Com
a saída do país de uma série de empresas e de embaixadas internacionais; a
apreensão, por parte dos Estados Unidos, de 7 mil milhões de dólares em activos
bancários afegãos no seu território; e os cortes nas subvenções estrangeiras,
que garantiam três quartos do orçamento nacional, o desemprego disparou no Afeganistão — e com ele grassou a fome, que multiplicou por
quilómetros as filas que a população diariamente já fazia à porta das
organizações humanitárias distribuem alimentos no país.
Até 15 de agosto de 2021, o Programa
Alimentar Mundial dava assistência a cerca de um milhão de afegãos todos os
meses. Só em junho deste ano, o organismo das Nações Unidas deu apoio a oito
milhões de pessoas, sendo que 18 milhões de afegãos necessitam neste momento de
ajuda para comer, revelou um relatório publicado
a 12 de julho sobre a situação no país.
Os
números são devastadores: todas as 34
províncias do Afeganistão apresentam “níveis de crise ou de emergência de
insegurança alimentar aguda”; mais de 90% dos afegãos registaram “um consumo
alimentar insuficiente” nos últimos nove meses; 3,9 milhões de crianças estão
desnutridas de forma aguda e 4,7 milhões de crianças, mulheres grávidas e
lactantes correm, ao longo do ano corrente, o risco de cair nesta mesma
situação. Entre junho e novembro de 2022, pode ler-se no documento, estima-se
que quase metade da população, 18,9 milhões de pessoas, vá estar em “situação
de insegurança alimentar aguda”.
"As mulheres ainda podem ir para a
faculdade de medicina, mas já não há professoras, a maioria
delas escapou" Mursal
Rasool, médica
A situação é mais grave nas
famílias que têm mulheres à cabeça — agora impedidas de trabalhar numa série de
sectores, com a medicina a representar provavelmente a maior excepção. Como
explicou à New York Times Magazine Mursal Rasool, “jovem médica” da Maternidade
Malalai, em Kabul, a segregação obriga a que as mulheres sejam assistidas
por outras mulheres, em vez de por médicos homens. Aliás, será por isso mesmo
que nas universidades de medicina as mulheres continuam a poder ter aulas.
Problema: entre os mais de 100 mil afegãos que há um
ano conseguiram escapar do país estavam os e as profissionais mais qualificados
e qualificadas do Afeganistão, incluindo educadores e educadoras. “As mulheres
ainda podem ir para a faculdade de medicina, mas já não há professoras, a
maioria delas escapou”, lamentou Mursal Rasool, a médica responsável por
coordenar com a Cruz Vermelha Internacional, entidade que gere agora 33
hospitais públicos em todo o Afeganistão, o funcionamento da Maternidade
Malalai.
Quase um milhão de adultos desempregados, milhares de crianças a mendigar
ou trabalhar
Impedidas
de trabalhar, as mulheres chefes de família estão a passar por dificuldades
acrescidas, com o Programa Alimentar Mundial a registar um aumento de quase
100% nos níveis de insegurança alimentar nos respetivos lares. Se em abril
deste ano 69% das famílias chefiadas por mulheres relatavam “níveis graves de
insegurança alimentar”, em maio esse valor disparou para os 82%.
E
o pior estará ainda por vir, avisam os especialistas — e não apenas para os
agregados encabeçados por mulheres.
Como
se não bastassem as dificuldades domésticas — que em junho foram exacerbadas
por um terramoto que
vitimou pelo menos mil pessoas e deixou outras 1.500 feridas e
que incluem a previsão de colheitas abaixo da média, fruto da seca
recorrente há pelo menos dois anos e de outros eventos climáticos extremos
—, também o panorama internacional contribui para as previsões de um inverno
ainda mais “frio” do que é habitual no Afeganistão, com a crise de preços
generalizada em todo o mundo pela invasão russa da Ucrânia e o aumento da
inflação que se começou a registar no pós-pandemia.
Há
mais: apesar de os números concretos não terem sido ainda divulgados, em maio a
americana SIGAR, a Inspecção-Geral Especial para a Reconstrução do
Afeganistão, estimou que cerca de 900 mil afegãos ficaram
desempregados desde que os talibãs subiram ao poder — e não é expectável que a
tendência seja reversível tão cedo.
"Os ricos foram-se embora, os que
eram um pouco pobres tornaram-se mais pobres, e os muito pobres
estão desesperados" Yousef
Nawabi, director de programa humanitário
Em
sentido contrário, estão a disparar os números do trabalho infantil, com
milhares de rapazes em idade escolar a serem chamados a providenciar o sustento
das respectivas famílias. No
final de abril, o Washington Post entrevistou Yousef Nawabi, o director de um programa que
nos últimos meses tinha visto a procura aumentar significativamente — e estava
a fornecer almoço a 1.500 rapazes de Cabul, que depois das aulas da manhã saíam
às ruas para trabalhar ou mendigar.“Os ricos foram-se embora, os que eram um
pouco pobres tornaram-se mais pobres, e os muito pobres estão desesperados”,
resumiu o diretor do programa Aschiana, lamentando o fechar da torneira de
grande parte dos fundos internacionais que ao longo das duas últimas décadas
alimentaram os programas sociais à disposição no país. “Agora tudo isso parou.”
Como consequência, testemunhou o repórter do diário
americano, milhares de crianças como Shahid e Karzai Balochkhel, irmãos de 14 e
16 anos, que, em vez de estarem na escola, passam os dias a calcorrear as ruas
da capital afegã, a vender rolos de papel higiénico à comissão, na tentativa de
ganhar o suficiente para o jantar da família nessa mesma noite.
No dia em que o Washington Post os acompanhou, em
pleno Ramadão, os dois rapazes fizeram 400 afegânis (o equivalente a 4,35
euros) em cerca de quatro horas de trabalho, sem comer nem beber.
Não foi sequer o que levaram para casa: a esse valor
ainda tiveram de descontar a comissão do fornecedor, que lhes adiantou os rolos. “Se voltarmos para casa com
algum dinheiro para comida, os nossos pais ficam felizes. Se não o fizermos,
eles ficam chateados. É a única coisa em que pensamos todo o dia”, explicou
Shahid, que tal como o irmão mais velho teve de abandonar a escola para ajudar
a família. Até há um ano, o pai, Yusuf, de 45 anos, era polícia e ganhava mais
de 400 dólares por mês. Demitido com a chegada ao poder dos talibãs, explicou
ao jornal, não consegue agora arranjar trabalho e depende unicamente dos
filhos, que ainda assim não conseguem ganhar o suficiente para assegurar a
renda da casa e uma refeição familiar diária — na maior parte dos dias
não comem mais do que arroz e lentilhas. “Tínhamos o suficiente para viver. Os
rapazes estavam a dar-se bem na escola. Não tínhamos preocupações”, desabafou.
“E depois, em apenas um dia, perdemos tudo.”
II TEXTO:
Afeganistão: "Usar a burca é como ser sepultada
viva"
Passar a usar a burca foi "como
se fosse sepultada viva", relatou uma afegã de 19 anos à agência Lusa
AGÊNCIA
LUSA: Texto
OBSERVADOR,
13 ago 2022,
Passar
a usar a burca foi “como se fosse sepultada viva”, relatou uma afegã de 19 anos
à agência Lusa a propósito do primeiro aniversário da retoma do poder no país
pelos talibãs. Zahra (nome fictício) só conhecia, até há um ano, o Afeganistão
que resultou da ocupação dos Estados Unidos e dos aliados ocidentais, em 2001.
Vinte anos depois, em 15 de agosto de
2021, os talibãs reconquistaram o poder, prometendo, na altura, manter os
direitos conquistados pelas mulheres, permitindo-lhes trabalhar, frequentar
escolas e ter um papel nas decisões sobre o país.
O regresso dos talibãs aconteceu na
sequência da retirada das tropas norte-americanas e aliadas do solo afegão,
depois de o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ter anunciado, em abril,
o fim da guerra contra o terrorismo naquele país.
Apesar de considerar que a situação em
que cresceu “não era a ideal”, Zahra defendeu que a que resultou da saída dos
ocidentais e do regresso ao poder dos talibãs “é muito, muito pior” e “chega
para tirar a esperança” sobretudo às mulheres, raparigas e meninas. As restrições impostas às mulheres começaram logo
e muitas tiveram de deixar de trabalhar, afastar-se de cargos públicos, deixar
as escolas e, a partir de 06 de maio passado, usar uma burca sempre que
estiverem em público.
“Devem usar o ‘chadri’ [a burca] porque
é tradicional e respeitoso”, impôs um decreto publicado pelo regime talibã,
adiantando que a obrigação abrange todas “as mulheres que não são nem
demasiado jovens nem demasiado velhas” e que estas “devem velar o seu rosto
quando encontram um homem que não é membro da sua família” de forma a evitar
provocações.
A primeira vez que usou burca, Zahra
sentiu “vergonha e só conseguiu olhar para o chão”, e considera que “é isso
mesmo que é pretendido, que as mulheres se sintam inferiores”.
A
burca não era estranha a Zahra, claro, e costumava ver muitas mulheres com
aquele manto preto ou azul e rede nos olhos, mesmo no tempo do Governo
anterior. Mas nunca tinha usado e “tem medo de ter de a usar para sempre”.
“É como se fosse sepultada viva”, garantiu, defendendo vivamente que tem a
certeza de que Deus não quereria isso para ninguém.
O
medo é o sentimento mais presente na vida desta jovem afegã. Zahra contou que vive numa família só de mulheres,
partilhando a vida com a sua mãe e a sua avó, que ainda se lembra de usar
minissaia e passear sozinha com as amigas nas ruas de Cabul.
Mas
isso “foi antes”. Antes de os talibãs tomarem o poder, antes da imposição da
‘sharia’, o sistema jurídico do Islão tornado fundamentalista, e “antes de as
mulheres serem consideradas pessoas de segunda categoria”, lamenta Zahra.
“Agora, vivo com medo do futuro. Tive de abandonar a escola e temos muitas
dificuldades financeiras”, afirmou, acrescentando que a mãe não a quer obrigar
a casar, mas “um dia, talvez tenha de aceitar o destino”.
Como
vive numa família só de mulheres, as dificuldades agravam-se quase todos os
dias. Sair à rua
é um processo complicado porque não tem em casa um ‘mahram’, um homem que a
acompanhe e sirva de guardião aos olhos dos fundamentalistas. Embora confesse
que a mãe às vezes arrisca, Zahra foi proibida de sair sem cumprir as regras.
“Elas têm medo por mim”, explicou, referindo-se à mãe e à avó e admitindo que
ela também tem.
Por isso, quando é absolutamente
necessário sair, pede ajuda a um tio ou um primo, mas normalmente deixa-se
ficar no seu quarto ou costura algumas coisas para “ajudar nas despesas”.
A
contrastar com as histórias que a avó conta dos anos em que era nova, quando o
Afeganistão era mais parecido com um qualquer país da Europa, Zahra nem sonha em usar minissaia. Foi educada
na modéstia e sempre cobriu a cabeça. “Mesmo que vivesse noutro lado, acho que
não seria capaz”.
Mas
conduzir um carro é um sonho que tem desde pequena. “Ir para o trabalho a
conduzir o meu próprio carro e a cumprimentar as pessoas na rua”, descreve,
referindo que reza todos os dias por esse momento. “É um sonho de liberdade”,
concluiu.
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