terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A terra do João

A história do meu e do teu
Também La Fontaine a tratou
Exemplarmente,
E ainda actualmente
Tem seguidor competente:
O povo da morena vila bem gostaria
De ao “meu” aceder
Mas quem melhor nele embarcou
Foi, naturalmente,
O urbano senhor
Que se prepara
Para dar o fora
Se não tiver que responder
Ao juiz de fora
Porque o de dentro, coitado,
Está muito acanhado.
Ou acabado,
Segundo algum impertinente
Menos paciente.
Leiamos devagarinho
«O Gato, a Doninha e o Coelhinho»
“Do pátrio ninho de um Coelhinho
Dama Doninha se apoderou
Numa bela manhã: eis uma grácil
Esperteza.
Com o dono ausente, tornou-se coisa fácil.
Com ligeireza,
Levou para casa dele os seus penates,
Num dia em que, à Aurora, ele fora
Fazer a corte,
Entre o tomilho e o orvalho.
Depois que roeu, trotou, correu
Joãozinho Coelho voltou
Todo pimpão,
À subterrânea mansão.
Dama Doninha tinha postado, à janela,
O seu nariz,
Tal como o faria mais tarde, ao que se diz,
A Carochinha
Do João Ratão,
O que morreu na panela
Do feijão.
“Ó Deuses hospitaleiros! quem vejo eu
Aqui aparecer?” – disse o animal
Expulso da residência pessoal.
“Olá! Senhora Doninha,
Vamos a sair, sem mais demora!
Ou irei avisar todos os Ratos cá da terra.”
Mas a dama de nariz pontudo
Replicou que a casa pertencia
Ao primeiro que a ocupasse.
“Era um belo assunto de guerra,
Uma casa, onde ele próprio só entrava a rastejar…”
“E mesmo que um reino fosse,
Gostaria de saber
– Disse ela, com ironia -
Qual foi a lei que para sempre o outorgou
A João, filho ou sobrinho
De Pedro ou de Guilherme, ou mesmo de Maria,
Em vez de o fazer a Paulo
Ou sequer a mim que o poderia
Merecer
Tanto como outro qualquer.”
João Coelho alegou
O uso e o costume habituais:
“São, disse ele, as suas leis
Que desta habitação me tornaram
Dono e senhor
E que de pai para filho a transmitiram
De Pedro a Simão,
E mais tarde a mim, João.
“O primeiro ocupante é uma lei mais justa?”
- Disse ele, com irritação.
- Ora bem, sem mais gritar,
Vamos Raminagrobis consultar.”
Era um Gato vivo, como um devoto ermitão
Um Gato a quem
A hipocrisia quadrava bem,
Um santo homem de Gato,
De peles bem forrado,
Gordo, anafado, de bom trato,
Árbitro perito em qualquer questão.
João Coelho contrata-o para juiz,
Ei-los a ambos chegados
Com humildade
Diante de sua Majestade,
Que, de sobrepeliz, lhes diz:
- “Aproximai-vos, filhos meus,
Aproximai-vos, que surdo sou,
Por desejo de Deus, que não me poupou
A velhice em que estou.”
Ambos junto dele foram,
Como patinhos que eram,
Sem medo se aproximaram.
Assim que ao seu alcance chegaram,
O bom apóstolo Gatarrão
Lançando simultaneamente
As garras sobre os dois contestantes
Pô-los de acordo, finalmente
Papando-os devotamente.

Isto se assemelha aos debates
Que por vezes os reis insignificantes
Têm diante
Dos reis maiores
A quem pedem favores.”

Pois é, exactamente, essa a questão
Da crise que atravessamos,
De Coelhos e Doninhas espojados
Nos pedaços dos espaços
- Que eles acham seus
Mas que poderiam também ser meus -
Comendo sem contenção,
Todos apostados
Em defender o que lhes pertenceu
Não por uma lei de raiz,
Afinal também injusta,
Segundo a Doninha diz,
Mas por uma lei pessoal
Igualmente impertinente,
De injustiça colossal
No atabalhoamento
Sem quartel
De uma sociedade
Quase se diria irreal
De tão pouco importante
E brutal.
Mas o Gato lá estará
A repor a lei por cá.
Será que o conseguirá?
Em minha opinião
Os Coelhos e as Doninhas
De cá
Continuarão
A comer os de cá e os de lá
Até à sua extinção,
Que não tarda aí, dirão,
Pois o espaço europeu
É um Gatarrão
De mérito reconhecido,
Nestas coisas de invasão.
Temos que prestar contas
Ao Gatarrão
Mas as contas são cada vez mais tantas,
Que o Gatarrão é capaz
De nos deixar em paz.
É assim que se faz
Quando não há salvação,
Segundo um bom cristão.
Mas o certo é que o mal está em todos nós
Que não temos correcção
Na esperteza saloia
Da nossa humilde condição,
Coelhos ou Doninhas defendendo
O seu meu, julgando
Que o Gatarrão vai ser brando.
Ou nem sequer nos importando,
Sempre mentindo e prometendo
Que vamos conseguir, sem o Gatarrão cá vir,
O que não é para crer
Segundo o meu parecer.
Não, não é para crer.

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