segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Biblioteca de Verão

Na colectânea de livrinhos – Biblioteca de Verão - contendo pequenos contos sob uma epígrafe que lhes sintetiza a temática, publicada pelo Diário de Notícias, na benemérita intenção de actualizarmos leituras rápidas de clássicos que algum dia nos maravilharam – ou não - conta-se um livrinho com quatro “Contos ESPANTOSOS” – de Dumas, Maupassant, Balzac e Poe – que nos levam ao mundo da ficção centrada no sobrenatural, com inclusão da profecia, caso do conto de Alexandre Dumas “As Tumbas de Saint-Denis”. Uma história sobre a profanação dos túmulos reais franceses, a quando da decapitação de Luís XVI em 1793, de que transcrevo o passo seguinte:
«O ódio que Luís XVI tinha inspirado ao povo, e que não fora saciado no cadafalso a 21 de Janeiro, tinha atingido também os antecessores da sua estirpe: quiseram perseguir a monarquia até às origens, até na tumba, e lançar ao vento as cinzas de sessenta reis. Depois, talvez tivessem também curiosidade por ver se os grandes tesouros que se supunham encerrados em algumas dessas tumbas se tinham conservado intactos como se dizia. O povo lançou-se, pois, para Saint-Denis. De 6 a 8 de Agosto, destruíram-se cinquenta e uma sepulturas, doze séculos de história.
Então, o governo resolveu regularizar a desordem; registar por conta própria as tumbas e herdar da monarquia finda com Luís XVI, seu último representante. Tratava-se mesmo de aniquilar o nome, a recordação, os esqueletos dos reis. Procurava-se apagar da história catorze séculos de monarquia. Pobres loucos que não compreendiam que os homens às vezes podem mudar o futuro…mas nunca o passado.
Tinham preparado no cemitério uma grande vala comum, como a dos pobres. Nessa vala, sobre um leito de cal, seriam atirados, como a um monturo, os ossos dos que tinham tornado a França a primeira das nações, desde Dagoberto até Luís XV. Assim satisfariam não só o povo, mas sobretudo os legisladores, os advogados, os jornalistas invejosos, aves de rapina das revoluções, cujo olhar se sente ferido por todo o esplendor, como o de seus irmãos, os pássaros nocturnos, se sentem feridos pela luz. O orgulho dos que não podem construir é destruir.»
Um texto do século XIX, com perfeita actualidade neste nosso século XXI.
Lembrei-me dele a propósito duma entrevista que ouvi ontem, por Manuel Luís Goucha, feita a Clara Ferreira Alves, sobre as opiniões desta a respeito das políticas e dos políticos de agora e de ontem, que ela expõe com o arreganho de sempre.
CFA foi uma jovem intelectual dos tempos da rebelião juvenil contra o salazarismo. As opiniões que tinha a respeito da ditadura – o tal charco de águas estagnadas que refere, onde todos eram batráquios, creio que repulsivos para a sensibilidade delicada da promissora intelectual de então, fortalecida agora creio que material e culturalmente – mantêm-se hoje, com o desprezo que a gentinha lhe merece – quer seja a gente poderosa por meios ilícitos no charco de agora, quer a gentalha do mesmo charco destituída de bens materiais ou espirituais ou ambos, como expressão definitiva da nossa nacionalidade que apenas dela exclui as Claras arrogantes do designativo diminutivo, que é o mesmo que dizer destitutivo.
Creio que os familiares ligados à sua infância, todos eles pertenceram ao charco antigo, pertencerão ainda ao charco de agora. Suponho que os amplos conhecimentos da rebelde Clara, favorecidos, certamente, pela transmissão de idênticos conhecimentos desses seus familiares esclarecidos, não deixarão honestamente de reconhecer que a maior diferença entre os charcos é a de que no charco actual se pode praticar o nudismo, coisa ainda não existente no charco salazarento, motivo, talvez, da sua repulsa por esses tempos de maior resguardo.
Mas também existe neste charco um Mário Soares dos seus amores, e um Cunhal igualmente dos seus apetites, como expoentes maiores da coragem, coerência e defesa de qualquer coisa que ela gostaria que se chamasse democracia – governo do povo, pelo povo e para o povo – e já constatou que afinal não é. Se fosse, é claro que não gostaria, como demonstra nesse seu nobre desprezo pela gentinha, embora genérica.
No charco antigo, onde um ilustre amigo e igualmente admirador de Soares – Almeida Santos - lançou uma pedrada libertadora, não sei se com o conhecimento da culta Clara, em todo o caso, havia estações agronómicas para o desenvolvimento da agricultura, segundo os textos de Miguel Mota, que lemos no blogue “A Bem da Nação”, como havia um plano integrado de transportes, segundo texto de Gonçalves Viana, no mesmo blogue, que deixou de haver no charco moderno.
O tema dos charcos poderia ser vasto, dada a fauna batraciana neles proliferante. Só estranho como a evolução de alguns dos espécimes lhes não possibilite uma visão mais clarividente, mais assente na sensatez, e num estudo menos faccioso sobre um período da história a que a história portuguesa saberá dar o devido valor, em termos comparativos com o período seguinte, de charco bem mais pútrido.
Como escreveu Alexandre Dumas, “O orgulho dos que não podem construir é destruir”. E assim, o charco actual pauta-se pela destruição progressiva, como exemplificaram Miguel Mota e Gonçalves Viana, do que fora construído equilibradamente e inteligentemente durante o charco primeiro. Ou mesmo antes.
De resto, como o citado texto exemplifica, pouco importa o apagão da história, na profanação dos cadáveres dos que a representaram, quando se prefere o coaxar melodioso – outros chamar-lhe-iam melífluo - dos que a continuam a profanar, por paradoxal que se nos afigure, em figuras frágeis que se julgam de relevo no charco de que se excluem, e que aparentemente defendem a justiça e atacam a estupidez. Ainda que também só aparentemente.

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