sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Vésperas de Natal

Há dias foi o meu filho João que contou uma da avó. Ele disse-lhe que dava explicações de matemática e logo ela comentou:
- É da maneira que não fazes descontos para o Estado.
O João espantou-se. Como tem estado longe, não tem acompanhado as reacções da avó nas suas respostas prontas. Há pouco tempo, decifrou logo a charada armada pelo João sobre o número de bebés – três – que se encontravam ao pé da bisavó. Afirmou o João que ali estavam quatro bebés e logo a avó se denunciou como sendo o quarto.
Quando tinha a sua própria independência - ou com o meu pai, ou nos anos em que viveu sozinha, após enviuvar - raramente os netos tinham ocasião de lhe admirar o garbo, entregues eles próprios à suas próprias vivências, mas todos lhe reconheciam a força de alma e até a ginástica, contando episódios burlescos ou graciosos que os marcaram, como quando duma assentada apagou as minhas sessenta e tantas velas de aniversário, adiantando-se à minha hesitação de consciência de incapacidade.
Hoje, a minha mãe mostra-se uma pessoa muito exagerada no que toca à exigência de atenção. Creio que é por esse motivo que atravessa fases de diferente dimensão psicológica, alternadamente rindo, cantando, chorando, rezando, falando com os antepassados ligados à sua infância ou mais recentes, criticando, quando nos apanha a jeito. Percebo que é para chamar a atenção e desculpo isso, agarrada que estou ao computador que me dá a minha própria libertação daquilo a que ingratamente nem sempre dou apreço – uma vida limitada ao espaço caseiro, o que me deveria alegrar, porque, afinal, o mundo exterior chega-me a casa, através de imagens magníficas que a internet ou a televisão proporcionam, ou as leituras trazem, sem a carga de incomodidades das deslocações, para além de que o meu altruísmo não tem suficiente arcaboiço para enfrentar in loco o panorama das agruras mundiais. Também por isso admiro o arcaboiço dos repórteres mediáticos, que as enfrentam.
Nem sempre a minha paciência é de doçura, como a da minha irmã, mas julgo que é por isso que a minha mãe rejuvenesce – fisicamente porque come razoavelmente, mentalmente porque expende argumentos, às vezes altissonantes, para corresponder, sobretudo, aos meus, de cariz idêntico, quando o riso não consegue aflorar, no stress quotidiano. Quando os nossos argumentos não lhe convêm afirma que não ouve, e assim ganha sempre a partida.
Neste momento está no trenó do menino que o Zeca Afonso leva. Passou agora para o rouxinol de Bernardim, mas a tarde ainda vai no início, pois acabou de acordar, os fados de Coimbra, as canções da nossa mocidade, as canções da sua infância, tudo isso vai ser percorrido, que a tarde está soalheira, antes do lanche:


Ai, ceguinha, só tu és o meu pensar
Vem comigo, pobrezinha,
Ai que lá por seres ceguinha
Tens aqui com quem brincar.

Desde então todos os dias
Ao chegar pela tardinha
Vinha logo pró pé dela
E eu brincava co’a ceguinha…
Parece que a ceguinha morreu, a minha mãe não soube cantar o resto, que metia um terceiro comparsa na brincadeira.
Mas já passou para a Santa Combinha, que mistura com as suas recordações da passagem por Cambarinho, o grupo cantando ali uma espécie de Janeiras, com menos resultados práticos do que na altura própria destas:

Senhora Santa Combinha
Para lá vou caminhando.
Minha boca se vai rindo,
Meu coração vai chorando.

De lá venho eu agora,
Senhora Santa Combinha,
De lá venho eu agora,
Em manguinhas de camisa
Tocando numa viola.


- Quando vínhamos da Santa Combinha, ao passarmos por Cambarinho, a gente cantava, mas ninguém vinha às portas para não terem que oferecer nada. As pessoas de Cambarinho devem ser muito forretas:


Estas casas são caiadas,
Forradas de papelão,
Aos senhores que vivem nelas
Não faltam vinho nem pão.

À entrada desta rua
Logo por ti perguntei:
Não me deram novas tuas,
Com vergonha não chorei.


Nem sempre parece notar as atenções que a rodeiam, mas por vezes manda uma sentença, como piropo escondido.
- Mãe cuidadosa faz a filha preguiçosa! Mas aqui foi ao contrário: foi a filha que tornou a mãe preguiçosa.
E logo a vangloriar-se, que não deixa os seus créditos por mãos alheias, embora a gente troce do exagero:
- Mas eu comecei a trabalhar desde os cinco anos.


Outras canções lhe acodem, que nós nunca ouvíramos:


-Papagaio, pena verde,
Empresta-me o teu vestido
- O meu vestido são penas
Em penas ando metido.

Sou vendedeira de rendas
Ai, cada metro um tostão
Tenho saias de entremeios
Também tenho o meu cordão

Sou vendedeira de rendas
Ai cada metro dez réis
Tenho saias de entremeios
Também tenho os meus anéis.

- Já despejei o meu reportório. Tinha estas cantigas para cantar.


Mas outras lhe acodem, mais do meu conhecimento:

- Vai tu, vai tu vai tu, vai ela,
Vai tu pr’à casa dela…



Neste momento está no jardim com que Max define a Madeira:


… É filha de Portugal!

Não creio que o Jardim concorde com tal asserção de patriotismo, nem do Max, nem de uma pessoa que airosamente vai a caminho de mais um Natal, como todos vamos, e dos seus 105, o que é mais difícil.

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