terça-feira, 14 de outubro de 2008

"A Mula do Papa"


É uma história cheia de humor, esta das “Lettres de mon Moulin” de Alphonse Daudet, “La Mule du Pape”, que nos inspira reflexão, no sabor da sua leitura prazenteira. Trata-se de uma muito amada mula papal, pertencente ao não menos amado Papa Bonifácio de Avignon, no tempo em que a Cristandade resolvera cindir-se em dois chefes espirituais, o que seria gorado posteriormente, que todos os chefes preferem sempre governar sozinhos.
Em Avignon, todavia, por esse tempo, tudo corria pelo melhor, o Papa cavalgando a sua mula e atravessando a ponte, ao som da charanga e da alegria geral e seguido do seu cabido, até ao recanto preferido – uma pequena vinha, nos arredores de Avignon, onde se deliciavam com o vinho da sua lavra – o futuro vinho Château-Neuf des Papes. E à noite, era o próprio Bonifácio que ia amimar a mula com uma tigela cheia do bom licor papal que tanto a deliciava. E todos viviam felizes.
Mas um dia apareceu um moço bem safardana no caminho do passeio papal, Tristet Védène, o qual, de tal modo lhe elogiou a mula, que o Papa Bonifácio, rendido, o convidou para seu servidor no palácio. Que a mula era, naquela época, a cunha mais eficaz para as promoções no Papado. Porém à noite, quem passou a substituir o Papa no transporte da malga de vinho para a mula, passou a ser o velhaco do Tristet Védène, devido à confiança grata e ao cansaço do velho Papa Bonifácio. Tudo se acaba, infelizmente para os prazeres, felizmente para as desgraças. Para a mula papal foi o desastre. Que Tristet Védène era um fingido, um relapso, que diante do Papa amimava a mula, e à noite, com os camaradas de estúrdia, a maltratava e escarnecia, levando-a a cheirar os odores do vinho, apenas, porque os que o bebiam eram eles, para em seguida lhe puxarem a cauda e as orelhas, em brincadeiras de péssimo gosto. E o rancor da mula foi crescendo, crescendo, embora comedido, à espera de oportunidade para uma justa vingança. Mas as patifarias do Tristet Védène também aumentaram, a ponto de a levar à sorrelfa, pela escadaria em caracol até à torre do campanário, e querer convencer o Papa, estarrecido, - que desde então passou a desconfiar da sanidade mental da sua mula – de que a mula se passara e subira sozinha, numa de mula de circo. Foi indescritível a aflição humilhada da pobre mula. Mas, tirada a custo do campanário, em triste espectáculo degradante, inesquecível para uma orgulhosa mula papal, quando quis vingar-se de Tristet Védène, já este vogava para a corte de Nápoles, a fim de se aperfeiçoar nos estudos diplomáticos e sociais, que contemplavam procedimentos de respeito por todos os seres da criação.
Sete anos passaram e Tristet Védène voltou, para mimar a mula e obter novo cargo, o qual lhe foi concedido devido ao enternecimento do velho Papa Bonifácio. Mas quando se aprestava a assinar a sua tomada de posse, com as palavras usuais: “Juro solenemente pela minha honra que respeitarei...”, foi interrompido com uns coices da mula, de alcance fortalecido por sete anos de espera, de tal modo que de Tristet Védène só restou a lembrança da sua participação no provérbio a respeito dos rancores vingativos: “Ser-se como a mula do Papa que levou sete anos para mandar o coice...”.
É certo que a história e a ficção mundiais estão impregnadas de episódios assim, de “vendettas” mais ou menos ilustres e duradoiras, a começar pela de Aquiles que ia tramando a causa dos Aqueus na destruição de Tróia, recusando-se a participar na guerra, movido por ódio vingativo contra Agamémnon, por lhe ter roubado a escrava Briseida, muito amada. Felizmente para o poema “Ilíada”, a morte do seu grande amigo Pátroclo fê-lo arripiar caminho e o destino de Tróia cumpriu-se, com a participação de Aquiles, embora funesta para si.
Mas vinganças e retaliações são mais que muitas, senão nem tínhamos o nosso Romeiro a tramar o Manuel de Sousa Coutinho e família, nem o Simão Botelho alvo de perseguição, ou o João da Cruz morto a tiro de bacamarte. O próprio “Mário” do Silva Gaio é um alfobre de forças destas, e os escritores do século passado também contaram muitos casos, com o Miguel Torga na vanguarda da escrita meritória.
Não faltam casos também, hoje em dia, mesmo no nosso país de valentes heróis do mar. A imprensa diária, a televisão, a rádio, a internet, o telefone, as bisbilhotices entre amigos fartam-se de os referir – pessoas que denunciam outras com quem viveram em livros de muita aceitação pelo nosso público, pessoas que matam familiares, ou sócios, devido a descobertas infamantes, ou aqueles que invejam outros por serem mais ricos até em petróleo, em suma, todos os que retaliam por se julgarem com mais qualidades ou direitos.
E como tudo se processa com maior velocidade, já não há quem espere os sete anos que esperou a mula do Papa para mandar o coice. Mas isso também se deve ao progresso.

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