terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ensino e Reformas

Ensino e Reformas
O texto que segue, precedido da carta a um qualquer jornal para onde foi enviado, foi escrito em 1989. Dezanove anos passados, parece ter perfeita actualidade, no que concerne às reformas pedagógicas que desde a revolução de 1974 não pararam de realizar-se, e sempre dentro do lema de uma falsa afectividade, tendente a transformar a escola num jardim celeste, ou espaço lúdico para os alunos, condenados a um estreitamento de responsabilidades e interesses culturais, nessa atmosfera de laxismo e impunidade com, certamente, consequências catastróficas para si próprios e para o país de mentecaptos progressivamente em evidência.
Para os professores, pelo contrário, um espaço de receio e frustração, para os realmente empenhados em transmitir os ensinamentos da sua esfera de competências, paralisados à partida por sobrecarga de normas e burocracias cada vez mais sinistras, se não ridículas e desmotivantes - se não para todos, (há sempre a imagem do professor camarada, que alinha, em apelo ao voto, sem se preocupar com a eficiência, nem com o país, nem com o material humano que deveria ajudar a formar), pelo menos para a maioria, que continuo a julgar responsável e desejosa de obter êxito no seu trabalho formativo.
Quero crer que, felizmente, haverá sempre quem avance, na floresta perigosa, de não um mas múltiplos lobos maus que os perseguem, em truques de prestidigitação, de que os “magalhães”, nas classes primeiras, constituem barreira contra os objectivos de bem ensinar a ler, escrever e contar, e a profusão de alunos deficientes nas escolas, exigindo competências docentes, decerto que miraculosamente atamancadas e espinhosamente difundidas, constituem barreira insuperável, só satisfazendo as doutrinas da nossa caridadezinha educativa, exigida pelo nosso Ministério da Educação.
A esses professores que conseguem vencer os obstáculos contra a autenticidade educativa, sujeitando-se ao amontoado de exigências despóticas, insensatas e punidoras, e apesar disso procurando a exigência cultural para a transmitir, mesmo à custa da saúde e da família, o meu sincero apreço.

Eis os textos de 1989 (in “Anuário – Memórias Soltas”):
Exmo. Sr. Director do Jornal...
“O assunto do texto em anexo – “Percurso de um Professor Secundário” sobre as questões da “Formação Contínua” dos professores e da “Avaliação” dos alunos, segundo a Nova Reforma, é, por demais, candente para merecer a atenção de V. Exª. Embora o discurso tenha saído em tom pessoal, devo explicar que ele pretende retratar, acima de tudo, um perfil esteriotipo do professor consciente e com o brio profissional que me parece ser comum a grande parte dos professores.
Vejo-os demasiado passivos a uma ridícula imposição provinda do Ministério, de apresentação de Currículos ou Relatórios para poderem mudar de escalão, sinto o crescendo de agressividade nas relações entre os colegas – os que se pretendem com mais “carisma” pondo mesquinhamente em acção atitudes acusatórias contra a actuação dos colegas, num propósito de relevo pessoal pouco ético, vejo a tensão que de repente se apoderou da maioria dos professores, sobretudo os mais jovens, a quem uma longa carreira espera ainda de estágio permanente, sob o olho pesquisador de colegas zelosos – para além da cada vez maior violência da sua própria missão docente – e daí o ter desejado escrever um texto que defendesse um ponto de vista menos draconiano.
Como orientadora de estágio que já fui, sei quanto esse aspecto contribuiu para uma actualização de conceitos, mas sei também quanto devo a todo um longo percurso de estudo e autoformação, que me conduziu a uma escolha consciente de opções, e a compreender quanto determinados conceitos têm empobrecido cada vez mais o panorama do nosso ensino.
O assunto é vasto, e não é minha intenção fazer-lhe perder mais tempo. Agradeço a V. Exª a publicação, no seu Jornal, se possível, do texto que segue:

Percurso de um Professor Secundário
Um curso superior coroaria esforços que se projectaram – devo dizer que sempre com garra e empenho – numa carreira de transmissão das matérias naquele colhidas e a qual o estudo e preparação de aulas fortaleceria, de acordo com a evolução das matérias de ensino e das metodologias para as veicular. Mantendo, embora, conceitos menos flexíveis sobre a pedagogia de alarde afectivo há uns anos instaurada para incremento do desrespeito e da violência na escola, sou, actualmente, um professor trabalhador e assíduo que alcançou, penso, o estatuto de competência – relativa, naturalmente, como tudo o que define qualquer posicionamento neste mundo sublunar.
Verifico, todavia, que as provas prestadas em cada dia que passa, de aquisição constante, e tantas vezes de desgaste físico e psicológico, consequência da doutrina da permissividade que as pedagogias impõem, apesar de defenderem, enfaticamente e capciosamente, os valores da responsabilização, em nada contribuem para a progressão na minha carreira: novas provas e exames me esperam, se quiser ascender a escalões a que o estudo, a assiduidade e o empenhamento demonstrados me pareciam dar direito.
Se jogo com o factor da assiduidade, respondem-me que tolo fui eu em não ter beneficiado das faltas a que tinha direito. Quanto à competência e empenhamento – quem conhece os alunos que ajudei a formar? – de quem espero, aliás, não o atributo de apreço mas, se isso os favorecer na sua carreira, a indiferença ardilosa ou mesmo a rivalidade acintosa que os elevará mais depressa ao topo, em detrimento do ex-professor, renitente ao espalhafato efusivo e pouco educado de uma pseudo-formação contínua, tão expressivo da idiossincrasia de um povo materialmente e intelectualmente pobre e sentimentalmente mesquinho, que da tal democracia apenas retirou o direito à liberdade de se assumir alvarmente, sem respeito nem grandeza.
Quando, por outro lado, assisto ao desenrolar de um processo de avaliação dos alunos segundo a nova Reforma, que acentua o carácter mistificatório de um ensino que põe à prova, farfalhudamente, jeitos de cooperação e actuação, mais do que as exigências de uma real aprendizagem, baseada em aquisições do foro cognitivo e que, com a autonomia que se concede aos alunos, cada vez mais os afasta do desenvolvimento mental, apanágio aparente da escola, e em que o professor, quaisquer que sejam os comportamentos e os resultados observados, se limitará a deixá-los passivamente vencer anos até à barreira selectiva do 9º, interrogo-me sobre o significado de um ensino que cada vez mais retira as bases necessárias, mas que exigirá, no secundário e seguintes, domínios de conhecimento que o aluno por si só nunca mais alcançará.
Na sua vida futura, todavia, outras exigências lhe serão impostas, já sem afectividade nem respeito, que só aparentemente – ou cinicamente – se observam para com a criança, não por ser frágil ou desamparada, mas porque nessa altura não causa ainda sombra a ninguém. Quando mais tarde, na vida prática, lhe forem impostas normas e exigência de competências que hipocritamente lhe haviam sido retiradas para colmatar índices de insucesso escolar desprestigiante perante as nações culturalmente mais bem artilhadas, o então adulto sentir-se-á defraudado, se tiver a inteligência necessária para se aperceber do logro: se for esperto e sem escrúpulos, usará a manha ou o encosto ou o atropelo, para vencer. Se for honrado, as hipóteses são menos tranquilizantes.
Esta, a sociedade que preparamos e, como professor cônscio dos valores indispensáveis ao desenvolvimento intelectual dos alunos, mau grado a enxurrada de acefalia e contradição das propostas educativas ministeriais, recuso-me a pactuar com elas.
Mas tal posição, que naturalmente resulta da competência relativa que julgo ter alcançado com a minha autoformação contínua, não me é favorável nas pretensões de acesso aos escalões. Nem o meu empenhamento, nem a minha assiduidade: tudo isso é nada – é fado, segundo alguns mais passadistas. – pois outros me avaliarão, sem nada conhecerem de mim nem eu deles.
Se me mostrar demasiado radical nas afirmações – a flexibilidade da espinha e das ideias está, provavelmente, na razão inversa da idade e da reflexão – não haverá contemplações para com o meu natural desejo de ascensão na carreira.
E toda a gente sabe quanto depende essa ascensão, tantas vezes, da empatia que provoca, ou da gravata que o distingue.
Professor Secundário

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