terça-feira, 9 de agosto de 2011

Corvo negro do pecado

Leio o livro “Os Portugueses” de Barry Hatton que, vivendo há 25 anos em Portugal, como jornalista e escritor, traça um retrato, que consegue ser simpático, do povo português, em toda a parte ironizado, ao longo dos tempos, pelos povos mentalmente mais desenvoltos, como povo timorato, fechado na sua timidez de incultura, e que em várias épocas da sua história conseguiu ultrapassar economicamente esses outros, por, mau grado o seu atraso espiritual, ter contribuído para o alargar dos espaços da esfera terrestre, nos altos e baixos da sua condição humana, ora selvagem e brutal, ora no proselitismo da fé que espalhou, ora na ambição do enriquecimento pela conquista e domínio de outros povos.
Hoje em dia, os povos cultos não lembram esses factos passados desse povo hispânico, sorrindo das suas inépcias resultantes, acima de tudo de um índice de analfabetismo superior, resultado da luta constante pela conquista da terra da sua lavra, ou do mar da sua ambição, obtidos na sujeição sempre aos senhores que muito os exploravam, e pouco lhes davam em troca, ao contrário de outros povos europeus mais conscientes, criados numa ideologia que foi igualando servos e senhores, obtida pelos muitos letrados que uma governação mais equilibrada possibilitara, pela criação das estruturas culturais necessárias.
Mais tarde, esses outros povos, já traçados os caminhos marítimos de longínqua escala, lançar-se-iam igualmente na descoberta e ocupação de terras, com mais capacidades técnicas e saberes das gentes superiores donde provinham.
O livro de Barry Hatton vai-nos dando conta, através da História, da Literatura e da Política actual, dessas características de um povo “único, fascinante e contraditório”, no seu dom de simpatia e afabilidade ao estrangeiro e servilismo ao poderoso, no seu esbanjamento do tempo, por um “dolce far niente” na cavaqueira sem consequência, na indisciplina e irracionalidade de adepto, não da ordem mas do improviso, não do esforço metódico mas da preguiça mental, e da anedota e das tiradas revisteiras mais ou menos grosseiras, dum convencionalismo parolo que a imposição dos dogmatismos católicos mais acentuou, povo cuja mediocridade favorece a ostentação, a inveja e o não reconhecimento da competência, tendo Camões como paradigma do génio não reconhecido na sua época, mas povo que simultaneamente é capaz da gargalhada sadia, ao estilo de Eça, do gesto grotesco à Zé Povinho, ou das graças de um Solnado dos bons velhos tempos e de tantos outros bons humoristas antigos e actuais nos seus papéis de humor, onde Victor Espadinha sobressai, contra a tal indiferença da mesquinhez que nos corrói. Um povo “sui generis” que construiu uma nação “sui generis”, com uma história “sui generis”, imortalizada por nomes que mereciam maior atenção universal, tal como o fado e os alegres ranchos folclóricos, que metem velhos e crianças, numa despretensão de gente saloia mas carinhosa, que, por outro lado, é capaz de matar, por um desvio de água das suas terras, e se lança corajosamente aos cornos dos touros nas pegas pelos forcados.
Mostrou Barry Hatton a forma pouco judiciosa de aproveitamento dos dinheiros europeus, dando azo ao desperdício e às extorsões, como já dantes fora, da parte dos que comandam os destinos da nação, contou a nossa história segundo algumas boas leituras, entre as quais Antero e as três “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” – governos absolutos prepotentes e narcisísticos, educação jesuítica obsoleta e desligada da ciência moderna, exploração económica colonialística que habituou o país à mândria – a que se acrescentaria o desastre de 1755, as invasões francesas, a perda temporária da corte portuguesa, mas onde um liberalismo de empréstimo possibilitou a implantação de reformas mais humanas. E tudo o que seguiu de reformas tecnológicas na Regeneração, com o Fontismo e a dívida ao estrangeiro, e uma primeira República desordeira, uma segunda economicamente e socialmente estabilizadora mas mesquinha e amordaçante, seguida das mudanças trazidas pela romântica Revolução dos Cravos, de uma democracia mais fútil do que real.
Um belo livro, que cita aversões e amores de gente estrangeira, que, odiando o povo na sua situação de miséria e atraso, admirou, como Lord Byron, as paisagens naturais, de uma beleza edénica não merecida por seres tais embrutecidos.
Mas ouço as histórias da minha portuguesa mãe, que uns dias canta outros dias chora. Esta tarde cantou fados de Coimbra, cuja letra eu já esquecera. Creio que foi em minha homenagem, que amanhã faço anos e vou fazer doces, e fiquei feliz a ouvi-la, alargando a homenagem, generosamente – característica nossa - a Rui Knopfli e a Jorge Amado, que em igual dia viram a luz:
Do Choupal até à Lapa
Foi Coimbra os meus amores,
A sombra da minha capa
Deu no chão, abriu em flores.

Ó Coimbra, que mais queres
Que mais podes desejar,
Se tens cá lindas mulheres
E bons corações para amar?

Se Coimbra fosse nossa,
Como são os estudantes,
Mandava-lhe pôr no centro
Uma coroa de brilhantes.



Não sei onde foi buscar tais quadras, pois a letra do Zeca Afonso nem todas essas abrange, mas os 104 anos da minha mãe dão-lhe uma clarividência de memórias que definitivamente admiro.
Hoje de manhã contara as histórias dos seus tempos de doeira, a guardar cabras pelos montes, seguidas dos corvos que no alto iam crocitando em grasnidos ruidosos, e as doeiras, para os afastar, recitavam:
"Corvo negro do pecado / Não me azangues o meu gado, / Nem o branco, nem o negro / Nem o que anda misturado. / Se queres carne vai ao Porto / Que lá está um burro morto. / Come a carne e deixa o osso / P’r’ amanhã p’r´ó teu almoço."
Esta lengalenga me fez elevar o espírito em oração fervorosa contra as ameaças dos corvos negros da nossa perdição.
Será que uma vez mais o povo valente, capaz dos heroísmos marítimos de outrora, vai conseguir arredar o mal que sobre ele paira, tal como ainda hoje fazem os toureiros em faenas dengosas, que faz Barry Hatton escrever, na Introdução do seu livro: “E uma coisa é certa: qualquer país que luta com touros para se divertir nunca poderá desaparecer”?
Oxalá tenha razão. Sigo o meu pai, que não aceitava a barbárie da tourada como espectáculo.
Mas desejo que o novo governo se mantenha firme e criterioso nos seus compromissos com o país. E que, tal como promete, em breve levantemos cabeça, pagando as dívidas, desenvolvendo as produções, aumentando o emprego e a exportação. Sem lengalenga.

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