domingo, 20 de novembro de 2011

Histórias dos mil e um dias

É de Fernando Dacosta o texto que segue, com o título «Seres decentes», e em epígrafe a informação «Quando cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei especialmente congeminada contra si.»

«O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber.
Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira. O desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor. Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.
Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro. Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.
As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social. Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a. Mas pedi-la, não. Nunca!»
O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
“A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”. Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta - acrescentando os outros.
“Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido, liderando”.
O acto do antigo Presidente (« cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética. Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.»
Fernando Dacosta

O texto de Fernando Dacosta não necessita de comentário. Também julgo o General Eanes uma figura de assinalar, pela seriedade e inteireza que revelou durante as suas chefias. Outros referem ainda hoje Sá Carneiro, como figura de igual hombridade, sendo ambos, para mais, amantes do seu país.
O certo é que tiveram a sorte de viver num período de malogros económicos e afundamento social, causados pelos estouvamentos de quem se julgava no direito de governar, sem para isso ter luzes, apesar de terem cravos. Como inteligentes e dignos, lançaram-se na tentativa de endireitar o que fora entortado pelos estouvados da botoeira colorida.
Entretanto, outros ventos de apetecível aparente bonança nos chegaram, com o abraço messiânico das novas políticas europeias. O deslumbramento foi geral, o mergulho sôfrego nos sacos azuis e quem sabe de quantas mais cores, a ninguém isentou de quantos a ele tiveram acesso – e foi o povo todo, que foi convidado a poisar os instrumentos da sua sobrevivência, além de outras classes sociais que receberam aumentos com maior ou menor critério, como chantagem para encobrir o escoamento que se ia fazendo em obras públicas, sim, e sociais também, mas igualmente nos bolsos das muitas tramas que se iam urdindo abjectamente pela posse de dinheiros que não obtivéramos pelo nosso próprio esforço.
E assim se criaram leis para proteger os “copains”, assim se criou uma Justiça também flexível aos valores da sofreguidão em curso.
E um ministro veio que, na necessidade de adquirir auxílio financeiro de um país grande e rico a quem amoravelmente chamava irmão, se não importou de ajavardar a sua língua, em nota de desprezo pelos próprios filhos desse seu país, nesse gesto de cobardia secundado pelo presidente do mesmo país.
O ministro de agora também anda em transacções, para saldar as contas, com desprezo igual pelos filhos do seu país, que nunca contaram para nada, a não ser para pagar as contas dos débitos permanentes da má governação. Entre os saldos, conta-se a RTP que vai ser privatizada.
Essa privatização significará talvez a extinção das coisas boas que a RTP fez, entre as quais o seu Canal 11, de Memórias. Por isso aproveito este dia escutando os fados do Canal 11, já na saudade de os não voltar a ver e a escutar.
Só sei que não sei como procederiam Francisco Sá Carneiro ou o General Ramalho Eanes, caso tivessem pertencido a este escol dos sortudos pós-1986.
Será que sairiam incólumes da atracção dos cantos dessas sereias promissoras que tão insinuantemente envolveram os seus continuadores?

Nenhum comentário: