sexta-feira, 20 de junho de 2008

João Malaca Casteleiro, o “guardador da língua”

Fernando Pessoa, na figura simpática de Alberto Caeiro, diz que é um “guardador de rebanhos”, rebanhos que são os seus “pensamentos”, pensamentos que são as suas “sensações”. Para afirmar tal coisa é porque pensou bem, com certeza, concluindo que “o único sentido oculto das coisas é elas não terem sentido oculto nenhum”, e que “não pensar em nada” já implica “metafísica” suficiente. Tudo muito simples, tudo muito falso, já que a gente sente logo um raciocínio poderoso por detrás destas afirmações tão drásticas. Tou certa ou tou errada?
Na revista NS do dia 14 do corrente, lemos na página 40, que João Malaca Casteleiro, professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de maneira nenhuma se tornará rival de Caeiro, pois é apenas “guardador da língua”, (coisa bem mais concreta do que os pensamentos abstractos do Caeiro - quanto mais não seja em sonoridade ou na vista - e por isso sem tanta dimensão como aqueles), sentindo um ardor que lhe “ilumina o rosto” quando das palavras fala. Ele há gostos para tudo, mas reduzir o ingente esforço de quatro décadas do professor, que tanto se tem empenhado no “Acordo Ortográfico”, a esse banal epíteto de “guardador da língua”, só porque também tem trabalhado muito o léxico e a sintaxe, sendo ainda o rosto principal na organização do “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea” em dois volumes, da Academia das Ciências, parece-me muito injusto. É que Malaca Casteleiro também tem à sua guarda uma biblioteca de seis mil volumes, e não só da sua especialidade linguística, pois contém literaturas do mundo. Ele próprio afirma, segundo Ana Vitória, a entrevistadora, que, dada a sua “especialização” profissional, tem um “gosto especial” (jogo lexical de excelente recorte do senhor Professor jubilado) pelas gramáticas, dicionários e ortografia.
Por isso se farta de falar do Acordo, “consciente da polémica” que este levantou, exemplificando com os casos da Alemanha e da França, onde as alterações ortográficas – certamente que as que se praticam usualmente nos países, para simplificação da escrita, em função das adaptações à sua modernização – também desencadearam protestos, sendo isso natural, no seu parecer cordial, porque as pessoas são geralmente refractárias às mudanças. Nisso, contesto, pois não se me daria mudar para uma casa nova em folha, como me parece ser também o sonho de toda a gente, excepto os que já têm “casa”, o que não é o meu “caso”. (Os meus trocadilhos também possuem carisma, em nada desmerecendo dos do Senhor Professor).
Mas as justificações do Senhor Professor para o nosso Acordo Ortográfico afiguram-se-me perfeitamente indescritíveis, pois que não existem: não argumenta, narra. Aliás, parece que a entrevista tinha o objectivo de pôr o Dr. Casteleiro a narrar. Conta coisas pessoais, como a dos seus milhares de volumes que não cabem na sua casa. Com certeza, não se lhe dava de fazer uma mudança de casa, tal como eu, para poder encaixar os seus livros todos, cujos clássicos franceses “aprecia” enormemente, “revisitando-os” para “manter o francês activo”, lamentando que “a comunicação internacional” se faça agora “em inglês”, lamento a que eu adiro com “pareille” emoção. Mas também aprecia muito a literatura espanhola, como Cervantes e o seu Quixote. O seu “encanto especial para com a poesia tem todavia menos peso na minha (sua) biblioteca”, escolhendo “os volumes que fazem síntese de tudo o que de mais importante se publicou em poesia”. Mas aos 71 anos já sabe seleccionar as suas leituras, procurando ver o que vai sendo publicado nas literaturas de expressão portuguesa.
Em jovem frequentava bibliotecas para poder ler, por não ter dinheiro para comprar; já formado começou a comprar - por já ter dinheiro, obviamente, ganho com o suor do seu rosto - sobretudo o que já conhecia de jovem, constatando que muito do que se publica hoje tem pouca qualidade, mas conserva a esperança de “ver como é que a história vai avaliar isto”.
Termina o texto de Ana Vitória com “UMA NOTA” intitulada “MATURIDADE” sobre a inexistência, no Dicionário da Academia de Ciências, do vocábulo “light” aplicado a literatura, ao contrário do termo “bué” que aquele consolidou. Deve ter sido a Ana Vitória que lhe fez a pergunta, cuja resposta destacou. O argumento de Casteleiro para o ostracismo do “light” é que o termo também se aplica aos refrigerantes e daí que seja uma “aproximação duvidosa”, preferindo, a “literatura light”, “literatura ligeira”. Por aqui nos apercebemos de que o seu amor pela literatura é inverso do pelos refrigerantes, mesmo no verão. Mas conclui, sentenciosamente: “Isto de ser escritor é um dom que exige grande maturidade”. Daí o título da NOTA com que termina o texto.
E foi desta massa de “guardadores” - de “rebanhos” mas estes sim, autênticos, biológicos - que no nosso país se fez o Acordo Ortográfico. E nós, os carneiros, assim vamos sendo apascentados, que remédio!

20/6/08

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