Hoje, 13 de Junho, é dia feriado nalgumas terras portuguesas, dia de Santo António – de Lisboa por aí ter nascido, (em 1195), de Pádua por aí ter sido sepultado, (em 1231), sendo canonizado no ano seguinte. Cónego regular em Portugal, prosseguiu estudos em Coimbra, tendo acompanhado os frades franciscanos como missionário em Marrocos, após o que, por ter adoecido, viveu em Itália, num eremitério em Forli. Posteriormente pregou com grande saber oratório, e exerceu cargos de ensino na Itália e França. Em Pádua, o seu santuário é local milagreiro, de peregrinação. Ao contrário do que parecem reflectir de suavidade e doçura as estátuas de Santo António transportando o Menino, as pregações de Santo António revelam-no antes como pessoa exaltada contra os heréticos e os opressores dos indefesos.
No entanto, aqui no nosso país tem profundos devotos. É o caso da Ilda, com as suas dúvidas impertinentes sobre todas as doutrinas e os seus fundadores, mas que ao Santo atribui os milagres da manutenção das casas podres de Lisboa, ou da preservação dos seus moradores quando elas acabam por cair ou ardem nos precalços dos incêndios, além de outras desventuras de que sofre a cidade por alturas de catástrofe – que é frequente, no dizer da Ilda.
O Padre António Vieira também conhecia bem a biografia do seu homólogo antecessor, na singeleza da sua bondade e sentido de justiça e no verrinoso da sua exaltação oratória, pois que o seu “Sermão de Santo António aos Peixes”, pregado em S. Luís do Maranhão em 13 de Junho de 1642, como objurgatória contra o esclavagismo dos colonos portugueses, o obrigou a embarcar secretamente para Lisboa, três dias depois da sua pregação, de tal modo a sua contundência atraiu a iracúndia desses colonos exploradores do trabalho dos ameríndios.
É uma peça extraordinária este Sermão, bem representativa do classicismo, no equilíbrio da sua estruturação, na sequência da sua argumentação, na riqueza da sua retórica e dos referentes culturais, na eloquência e dinamismo do seu discurso subjectivo, na propriedade vocabular, na ironia que desde o início se impõe pela alusão aos peixes a quem se vai pregar – inutilmente, portanto. Discurso clássico, discurso barroco, que põe em jogo toda uma arte oratória, de sedução, de crítica, de apelo – e de actualidade.
Assim, logo no capítulo I, correspondente ao exórdio e exposição, se faz a síntese do tema e objectivo do sermão: A partir do conceito predicável “Vós sois o sal da Terra” do versículo de S. Mateus (V,13), aplicado aos pregadores, cuja função é “salgar”, ou seja “ditar a boa doutrina”, verificando que a Terra se não deixa “salgar” porque está corrupta, Vieira vai pregar aos peixes, à maneira de Santo António, seu modelo, que a eles pregou por não ser atendido pelos homens.
Os dois segundos capítulos – da narração – referem, o II, as virtudes genéricas dos peixes – ouvir e não falar; terem sido os primeiros seres criados; entre eles se contarem os maiores seres criados; não se domesticarem, por desconfiarem dos homens Exemplifica ainda, com dois casos milagrosos das Escrituras: o primeiro exemplo reporta-se a Jonas, salvo da tempestade e dos homens que o lançaram ao mar, pela baleia que o cuspiu em Ninive, onde ele não deixou de pregar a palavra de Deus; o segundo exemplo refere o Dilúvio, em que todos os peixes se salvaram, ao contrário dos outros animais, reduzidos utilitariamente a um só casal, para a preservação da espécie – donde se infere que as preocupações ecologistas já estão presentes nos tempos bíblicos, com saliência no A. T. – castigados todos eles à conta dos pecados humanos, em virtude da sua maior proximidade dos homens. A extrapolação irónica: “quanto mais longe dos homens, tanto melhor”, que fez que Santo António, à maneira do filósofo que considerava como melhor do mundo “a terra mais deserta, porque tinha os homens mais longe”, pudesse alegar também que “quanto mais buscava Deus, tanto mais fugia dos homens”.
Trata o capítulo III da Narração, das virtudes particulares dos peixes e do respectivo paralelismo com Santo António ou com a sua língua. Assim, começando pelas Escrituras, o peixe do Tobias que cura a cegueira e afasta os demónios, como o fizeram, figurativamente, as pregações de Santo António. A rémora, como freio das naus (Vide Alegoria das Naus: - Soberba, Vingança, Cobiça, Sensualidade) - tal como a língua de Santo António. O torpedo que faz tremer o braço do pescador, e o simbolismo do paralelo com a língua de Santo António (Vide o texto sobre a metáfora da “pesca”). O Quatro-olhos, que se livra dos inimigos do ar e do mar, por ter dois olhos que vêem “direitamente”para baixo e dois olhos que vêem “direitamente” para cima, traduz o simbolismo de que se devem os homens lembrar de que há Céu e Inferno. Também David não queria ver a vaidade, mas contrapõe Vieira, ironicamente, a citação do Ecclesiastes (I,2) de que “tudo é vaidade”: “Vanitas vanitatum et omnia vanitas”, daí a impossibilidade de aquele ser atendido. Outras características específicas dos peixes são as de ajudarem à salvação, porque usados nos jejuns, e de constituirem alimento dos pobres, embora esta última característica seja, hoje em dia, perfeitamente obsoleta.
Seguem-se, nos capítulos IV e V da Narração, os defeitos dos peixes, genéricos no capítulo IV, particulares no capítulo V. Entre aqueles, a voracidade e a injustiça da prepotência dos grandes: não só vos “comeis uns aos outros” como “os maiores comem os mais pequenos”. Tal escândalo também se verifica entre os homens (Vide a extraordinária alegoria do “açougue terreno”). Outro grande defeito específico dos peixes é o da sua ignorância e cegueira, ao deixarem-se atrair pela isca, que os leva à morte, e bem assim os homens pelo retalho de pano da bandeira, que igualmente os conduz à destruição, podendo nós daqui inferir do antibelicismo de Vieira. Também, com esse exemplo da cegueira e da isca, Vieira ergue desassombrada sátira ao tráfico de panos no Maranhão, feita pelos portugueses, apontando a insensatez dos homens do Maranhão que, pela vaidade dos “trapos”, se deixam atrair pelos retalhos de pano das “quatro varreduras das lojas” trazidas pelo “mestre de navio de Portugal”, assim comprometendo as economias do ano inteiro e mesmo dos seguintes.
Relativamente aos defeitos específicos dos peixes (Cap. V), são por demais conhecidas, as formidáveis alegorias: dos roncadores e o seu significado – os que blasonam; dos pegadores (os parasitas, os aderentes); dos voadores (os ambiciosos, vaidosos, megalómanos); do polvo (os hipócritas, tartufos, traiçoeiros) – como peças de arte barrocas, traduzidas no perfeito domínio linguístico, na clareza de raciocínio e no conhecimento humanístico. Através deles, se faz a apologia de Santo António, apontando-se o seu procedimento, contrário ao dos peixes – e respectivos homens por aqueles simbolizados. Assim, contrariamente aos “roncadores”, Santo António, “porque calou, por isso deu tamanho brado”; Santo António foi “pegador”, “mas de Deus: por isso se salvou”; “voou para baixo e não para cima”, entendendo com isso a sua modéstia, pois que, “sendo a Arca do Testamento, era reputado por leigo e sem ciência”; contrariamente ao “polvo”, foi “o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade”.
Contém o final do Capítulo V, a confirmação, como parte da estrutura interna do Sermão, com o apelo final aos peixes, apontando o castigo e excomunhão dos que se apropriam dos bens alheios, e o capítulo VI a peroração, com o julgamento final dos peixes com autocrítica em paralelismo antitético, finalizando com os louvores a Deus.
Não resistimos a transcrever alguns excertos desta extraordinária peça de oratória, como não resistimos a apodá-la de absolutamente “brilhante”, não só pela energia do seu discurso subjectivo e variado, de frequente trocadilho e propriedade vocabular, como pelo conhecimento humano que nele transparece e pela sua perfeita actualidade:
Do Exórdio (I Capítulo):
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra?O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: ... “Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil, para que seja pisado de todos. ...
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António, com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam....
Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje...
... quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes...
Da narração:
Cap. III: Das virtudes específicas dos Peixes - “Alegoria das Naus”:
... “O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de António quanta força tinha, como rémora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique, se a rémora da língua de António lhes não detivesse a fúria, até que, composta a ira e o ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas, e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse parar, como rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Scila ou em Caribdes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de António os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.
Capítulo III – O torpedo e “as pescas”:
Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa (da rémora e o seu poder de prender e amarrar “mais do que as mesmas âncoras”), passemos ao louvor e inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo, começa a lhe tremer o braço. Pode haver mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana, e da cana ao braço do pescador...
Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espantya é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
Pudera-se fazer problema: onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra as varas (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer.
Vinte e dois pescadores destes se acharam acaso a um sermão de Santo António, e as palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés; todos, tremendo, confessaram os seus furtos; todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram de vício e se emendaram. (Hoje em dia, mau grado a sua fé no Santo António, a Ilda confia ainda mais na eficiência do nosso primeiro ministro para as restituições, embora não para as emendas, que isso é mais coisa p’r’ós santos).
Capítulo IV: Os defeitos genéricos dos “peixes” – “Comeis-vos uns aos outros”. O stress e o açougue humanos:
... Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto ainda o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
Capítulo IV: A “isca”
Outra coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?
Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago (Estes exemplos, bem provam a inexistência ainda, nesses tempos, da isca futebolística que também provoca muita dor e exaltação, com alguns estragos ... mas também com muito lucro. Outros tempos...) ; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião, ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.
Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos nem ambição de hábitos (Também ainda não existia o estádio do Maracanã, nem o Pelé ou o Ronaldinho...).
Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal (Agora, cá em Portugal, e talvez também no Maranhão, vem da China, e também engana muito) com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhe sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida quem o leva? Não o levam os coches nem as liteiras nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano. (O cartão de crédito actual e a divisa “leve agora e pague depois”, limitam o stress inicial do não ter que vestir. Graças a Deus!).
Da Peroração:
Capítulo VI: Superioridade dos peixes sobre os homens em paralelismo antitético subentendido:
Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou.....
Um comentário:
Gosto muito do que escreves. Agradeço o teu comentário ao meu poema e a tua opinião geral. Gostei muito!.. Beijinho **
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