sexta-feira, 11 de março de 2011

Um país pequeno

Falámos de expressões faciais. Concordámos que Herman José era o mais expressionista, para utilizar o termo, com um significado não de escola pictural de uma arte expressiva de um universo agressivo interior, mas de uma arte teatral histriónica, de variedade de trejeitos, em imitação de personalidades, composta com muita arte, pese embora um acentuar de jeitos, por vezes, já vistos no seu passado de actor, mas indiscutivelmente enriquecidos de maturidade que nos pareceu o projectaria a novas glórias na sua carreira, que por culpa própria talvez, por se ter deixado manipular por programadores pouco escrupulosos, ia perdendo, na senda provocatória contra a decência e a sensibilidade alheias.
Na questão de jeitos oratórios, lembrámos também alguns dos nossos parlamentares, admirando, no nosso PM, a arte de bem falar, de denunciar, de simular, e simultaneamente de se desenvencilhar da rede de acusações alheias, contra-atacando com saber, atropelando realidades, descartando responsabilidades, na indiferença pela situação de desastre nacional, do seu país de penúria, histrião inteligente.
Foi a propósito da “moça magrinha”, na expressão da minha amiga, que muda muito de cabelos, mais claros ou mais “foncés”, mais compridos ou mais curtos, mas de grande destreza expressiva a respeito das coisas e dos seres deste país e mesmo doutros países, em profusão de conhecimento só comparável à elegância e ironia dos seus discursos. Clara Ferreira Alves.
A minha amiga captou-lhe uma frase, que eu depois encontrei no seu Prefácio a um livro de João Gaspar Simões - “Fernando Pessoa – Ensaio Interpretativo da sua Vida e da sua Obra” da colecção “A minha vida deu um livro”: «para ser génio, bastava-lhe ter escrito “Tabacaria”».
Concordei com a afirmação. “Tabacaria” é o poema do ser genial mas consciente da realidade banal, universo de náusea, para o “eu” superior, com a consciência da sua nulidade, num mundo absurdo, sem sentido. Lê-se, interioriza-se, vibra-se e sofre-se lendo-o, no seu desgarramento íntimo que tem subjacente o estudo de filosofias niilistas, e que poderíamos, talvez, ilustrar com “O Grito” de Munch.
Mas o Prefácio de Clara Ferreira Alves tem por título o excerto de uma frase de João Gaspar Simões – “Um grande poeta num pequeno país” – (“Um grande poeta não pode viver, porém, num pequeno país”), e essa frase fere também pelo absurdo.
Porque quem não pode viver num pequeno país são as pessoas que procuram meios materiais de sobrevivência fora dele, onde lhes será reconhecido o seu trabalho.
Não os grandes poetas. Talvez no seu pequeno país é que eles se possam sentir seres de eleição, ou com a sorte de o virem a ser, reconhecidos pelos Gaspares Simões que os projectaram. Para o mundo inteiro, afinal, mas depois que o soubemos nós reconhecer.
Também Mário de Sá Carneiro achou que precisava dum grande país de sobrevivência intelectual, mas matou-se, em Paris. E quem o reconhece somos nós, que nos admiramos de que o mundo ignore a magia do seu verbo expressivo de idêntico mundo de tédio e frustrações existenciais, em arte mais rendilhada que a de Pessoa, mas não menos autêntica, e pescando nas mesmas fontes culturais – o que denuncia, um pouco, a mistificação na arte da criação poética. Mas enquanto Álvaro de Campos desenvolve todo um tratado sobre a condição humana, em que se salienta o afundamento numa angústia total, traduzido num universo imagístico poderoso, Sá Carneiro brilha na magia verbal do seu intimismo:
«Um pouco mais de sol – eu era brasa
Um pouco mais de azul – eu era além
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém… (…)
(“Quase”)
É um país pequeno, Portugal, um país de discrepâncias fundas, um país que nem sempre reconhece os seus valores, “os que serão sempre os que não nasceram para isso”, um país que gostaríamos que tivesse uma população intelectualmente mais desenvolvida, um país com mais ordem... Mas ainda bem que houve génios nele. É a consciência disso, desses valores, que nos faz amá-lo mais. Juntamente com os ribeirinhos cantantes, ou as paisagens e criações artísticas dos que lhe traçaram o perfil.
José Hermano Saraiva, outro génio de comunicação, não tem vergonha de mostrar o seu sentimento pátrio, de nos levar nos seus percursos a notar as belezas do seu país, condenando embora o que não é correcto. E há muita coisa incorrecta, que é preciso corrigir.
Ainda bem que Fernando Pessoa por cá ficou, todo um mundo, vindo de um pequeno mundo que enriqueceu com ele o mundo inteiro, como já o tinham feito os navegadores portugueses pioneiros…

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