sexta-feira, 1 de julho de 2011

Joanna: “Memória do «Livro do Desassossego»”

Joanna tem 24 anos, 80 menos do que a sua bisavó materna, nascida no mesmo dia, há 104 anos, minha ilustre mãe, da qual a minha sobrinha (segunda) parece ter herdado traços de coragem e vivacidade mental, como já eu o notara na sua mãe, minha sobrinha (primeira), ao compará-la com uma foto de moçoila decidida, que tenho da sua avó.
Joanna foi uma bonita criança, nascida nos Estados Unidos, excelente aluna sempre, transformou-se numa figura esbelta e brilhante, olhos claros e cabelos compridos e louros a condizer, duma suavidade de fala escondendo muito da ironia que ela encontrou naquele escritor sobre o qual fez o seu “Mémoire de Master I”, numa Escola Superior em Paris – Fernando Pessoa e o seu “Livro do Desassossego” – “La mise en scène, l’Ironie, Le Jeu dans Le Livre de l’Intranqullité de Fernando Pessoa”.
Um livro que se lê e se relê devagar, saboreando a clareza e elegância do seu discurso e simultaneamente a expressividade de uma organização interna que se distribui por vários núcleos temáticos:
Introduction.
Intranquillité: Um Livre Iconoclaste – Le Livre – Le Personnage: Bernardo Soares – Le Livre inachevé: un lieu de liberté.
L’Ironie: L’ironie ou le chemin du dédoublement de la conscience: un programme esthétique. À qui s’adresse-t-il? Mise en scène du soi, de la constellation hétéronymique et des autres.
L’écriture – une mise à distance?
L’Empire du Rêve – Les effets d’humour. Renversement de la conscience tragique. L’art de rêver.
Conclusion.
Pelo conjunto dos tópicos de análise, detectamos uma orientação segundo parâmetros que todos eles convergem em dados de clivagens do mundo pessoano que já observáramos nos vários “Pessoas” – ortónimo e heterónimos – e que este “Livro do Desassossego”, de uma composição prolongada ao longo dos 22 anos da sua vida literária – de 1913 a 1935 – escrita em variados papéis guardados na arca pela família, acentua, nas suas frases soltas que, partindo das inspirações do momento, se dispersa por núcleos de mundos do eu e do não eu, como refracções de luz que se multiplicam ao sabor do instante, em risos de mutabilidade. Daí que sejam a ironia, o humor, as características que mais se põem em evidência, no desassossego do seu jogo de escrita, mau grado o sentimento também acentuado de um profundo sofrimento que resulta das suas lutas íntimas de uma personalidade pessoana que, ele próprio, a cada passo se desdobra, se constrói e desconstrói, sempre desafiante, numa exacerbada provocação, fruto de uma inteligência que se reconhece orgulhosamente superior, numa época de niilismo nietzshiano, de não reconhecimento de Deus, ele próprio, Pessoa, se assumindo como criador, ou, pelo menos como mediador (cf. Pessoa, “Emissário de um rei desconhecido / Eu cumpro informes instruções de além… Já viram Deus as minhas sensações”).
Assim, a Introduction que se inicia por uma citação: O começo das “Viagens na minha Terra” de Garrett, no qual este faz a apologia d’ “este clima, este ar que Deus nos deu” apelativo de um passeio, ao menos até ao quintal, do próprio Xavier de Maistre que se limitou, no seu livro, a uma viagem à volta do seu quarto. (Garrett, contrariamente, alargaria o seu trajecto até Santarém e de passagem narrando, entre variadíssimos assuntos do seu muito saber, uma romanesca história cujo protagonista Carlos, alter ego de Garrett, desempenhará um papel de destroçador de corações, entre os quais o da frágil Joaninha, sua prima reencontrada).
Mas não se trata de qualquer paralelo caracterológico daquele com um Bernardo Soares incapaz de sentir sem racionalizar – (cf. Pessoa “O que em mim sente está pensando”) - (o que Joanna apontará no momento próprio da sua tese), que pretende esta escolha do excerto garrettiano introdutório. Ele serve, de facto, para fazer contrastar um clima português visto através de duas sensibilidades dimensionadas segundo vectores de oposição: uma mais realista e extrovertida que aprecia objectivamente cores e cheiros e sabores, “este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta”; outra dentro da sua percepção fragmentada de uma realidade simultaneamente física e psicológica, de um discurso de “impressões sem nexo, nem desejo de nexo”, que, por consequência traça de Lisboa uma imagem cinzenta e fria, à maneira de Baudelaire:
Le ciel couvert, qui difracte la lumière, place Pessoa près de Baudelaire, qui, lui aussi, décrit dans son Paris en mutation, un ciel laiteux le jour et dépourvu d’étoiles la nuit. Les deux poètes préfèrent, chacun dans leur ville respective, le moment du crépuscule, celui auquel s’identifient le plus leurs réalités intérieures – le desassossego et le spleen.” (“Mémoire”)
Uma estética, em ambos, governada pela imaginação, pelo sonho em Pessoa:
“L’univers de Bernardo Soares est fait d’images réduites et de signes parfois microscopiques, car son contact avec l’extérieur est restreint. Mais dans chaque infime détail il peut voir l’infini, grâce à l’intense analyse des sensations et à un grand pouvoir d’imagination.” (“Mémoire”)
Daí que o próprio título – “Livro do Desassossego” – seja também ele marcado pela ironia – um “desassossego” (neologismo de Pessoa), que levando à descontinuidade, à dispersão, ao inacabado, dificilmente poderá caber na denominação geralmente adoptada de “livro”, como obra ordenada e encadernada com fins precisos.
Todavia, no seu próprio contra-senso, esse título contém todo um programa de escola – a escola do primeiro modernismo, marcada pela ruptura, pela contestação dos valores literários e plásticos tradicionais dos inícios do século XX, pela subversão – “le livre de l’Intranquillité est un concept qui parvient à capter et à concentrer les forces de la modernité esthétique du XXème siècle naissant: l’inachevé, l’insignifiant, le fragmentaire.” (“Mémoire”)
E é na consciência de uma “grandeza infinita” e de uma “miséria infinita”, como contingências da condição humana, que nasce o sentimento do Absurdo e o sentido do humor na perspectiva do escritor, que criará o seu estilo “immense et multiple, propre à quelqu’un qui entrevoit l’infini de sa fenêtre sur la rue”. (“Mémoire”)

Segue-se o capítulo “L’Intranquillité: Um Livre Iconoclaste” iniciado por excerto do poema de Pessoa “Liberdade”:Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / E não o fazer! … O sol doira sem literatura”.

E, sobre o “Livro” se apontam o estado depressivo, a melancolia, a tristeza, como sentimentos expressos pelo narrador Bernardo Soares e que são fruto da sua natureza hipersensível, “dont les regards lucides sur lui-même se multiplient par des effets de miroir” ("Mémoire"). E do sentimento do absurdo, comum a outros heterónimos, com especial relevo para Ricardo Reis no sentido do efémero, absurdo resultante também do sentimento da banalidade quotidiana, surgem o cansaço, o tédio que levam ao sonho e à inacção e à convicção do falhanço, como em Pessoa, em Álvaro de Campos (p. ex. “Tabacaria”), em Caeiro (“Quem me dera que eu fosse o pó da estrada”), ou o próprio poema “Liberdade”, encimando estes conceitos de cansaço perante a inutilidade da acção.
Um livro cujo conteúdo remete muitas vezes para a sua própria correspondência (“Correspondência”) onde se define como vivendo em estado depressivo:
O meu estado de espírito actual é de uma depressão profunda e calma. Estou há dias, ao nível do Livro do Desassossego” Carta de 14/10/1914), O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.” (Carta de 19/11/1914 )”… (“Mémoire”)
Sendo, pois, em parte, um livro autobiográfico, embora sem uma sucessão temporal linear visto que se trata de uma autobiografia sem acontecimentos, ele está centrado no jogo de uma escrita de paradoxo acompanhando o jogo de um pensamento de ironia.
“Como há quem trabalhe de tédio, escrevo, por vezes, de não ter que dizer”. (L. D.)
E o confronto com textos do mundo pessoano, facilmente detectáveis, provoca a seguinte conclusão, sobre este livro de “bastidores” justificativo das suas diferentes “máscaras”:
Le Livre de l’Intranquillité serait ainsi une sorte de coulisse de toute la dramaturgie pessoenne, retranscrite en prose. Cela nous amène à formuler deux hypothèses, non totalement contradictoires: ou bien ce texte se situe à un degré moins élevé de fiction, (aproximando-se das "Confissões" de Rousseau) ou bien il est issu d’un dédoublement du sujet qui va encore plus loin”, numa prosa verdadeiramente irónica, alimentada pela “ironie amère de Pessoa, qui nous livrerait des confessions totalement fictives.” (“Mémoire”)

“Au contraire de Rousseau, Soares n’a aucun ideal de sincérité, bien au contraire, il nous entretient dans son goût (ou peut-être une fatalité à laquelle il ne peut pas échapper) du paradoxe, de l’illogique, du trompeur. De plus, il n’a rien à avouer de sa vie, banale comme celle de n’importe qui. Ce qu’il nous raconte enfin, c’est l’histoire de sa propre écriture, cette création qui, finalement, est la seule expression, la seule concrétisation de sa vie personnelle. (“Mémoire”)

Le Personnage – Bernardo Soares
A publicação do Livro do Desassossego, numa primeira edição de 1982, veio desestabilizar conceitos já conclusivos sobre a interpretação do universo pessoano na sua multiplicidade, com a criação de uma obra em prosa como “une découverte posthume de sa modernité, et une des plus vives manifestations de son génie”, o seu narrador Bernardo Soares ocupando o estatuto de semi-heterónimo, segundo Pessoa, na Carta a Adolfo Casais Monteiro de 13 de Janeiro de 1935 sobre, entre outros motivos, a génese dos seus heterónimos: “É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela”:
“Cet aide-comptable qui vit et travaille dans la seule rue de la Baixa, au centre de Lisbonne – rua dos Douradores – est un individu anonyme, banal, effacé … ayant un nom assez commun, Bernardo Soares, qui exerce le modeste métier d’aide-comptable à Lisbonne…”
(“Mémoire”)

E prossegue uma longa análise entremeada de excertos do Livro sobre esta personalidade banal, solitária e apagada, que um retrato conjunto com os empregados da firma mais contribui para se anular, fisicamente: “A minha cara é inexpressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer outra coisa, seja o que for, que a alce da maré morta das outras caras.” ("L. D.")
Bernardo Soares est un des personnages qui ont opéré le basculement du modèle du héros tragique dans la modernité: il traverse la vie plus ou moins indifféremment, son existence au-delà de l’entreprise dans laquelle il travaille n’est qu’intérieure, et même plongé dans son intériorité la plupart du temps, il s’échappe à lui-même. Il se place hors de la vie parce qu’il est toujours en train de s’analyser minutieusement, en devenant étranger à tout ce qui l’entoure. Il est un spectateur de lui-même, et, par analogie et généralisation de sa démarche, de la vie intérieure des hommes: (“Mémoire”)

«A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.»
(L. D.)
Uma identidade flácida, mutável, contraditória, que reivindica uma alteridade absoluta, o poder ser outro, num mundo de evasão, de fuga à prisão do ser que lhe permitem a recusa do acabado, da finitude, justificando o seu estilo fragmentário.
E assim, oscilando entre a consciência da sua nulidade como pertencendo aos anónimos que povoam o seu Livro – a costureira, o barbeiro, o homem da tabacaria, os passantes - e o orgulho de pertencer aos génios da humanidade – Milton, Shakespeare, Dante – torna-se uma personagem “intervalar”:
C’est un personnage intervallaire, un homme-crépuscule: il se situe entre le quotidien et le rêve, la conscience et l’inconscience, entre le corps et l’esprit, entre la sensation et la pensée, entre un “narcissisme démésuré” (Françoise Laye) et la dépersonnalisation, entre l’éternité de l’écriture et la hantise de se voir disparaître dans le passage du temps, entre l’immanence et la contingence”. (“Mémoire”)

Daí que seja o humor que, permitindo-lhe assumir uma tal multiplicidade de facetas, constitua a característica fundamental neste seu jogo de máscaras, que simultaneamente o situam no vanguardismo iconoclasta do primeiro modernismo português, para além da sua integração no universo nietzshiano, abolidor de Deus, que lhe permite assumir um papel de livre criador:
“Il ne cesse de se dissoudre, dans les autres, dans le temps, dans la pensée et le rêve, dans les possibles. Après “la misère infinie” d’un monde sans Dieu tel que l’éprouvé par Soares dès le début du Livre, vient le triomphe du génie individuel sur les règles de grammaire et de syntaxe (les anciennes divinités de la littérature…): (“Mémoire”)
Os Deuses são uma função do estilo”.("L. D.")

Le livre inachevé: un lieu de liberté
“Cette oeuvre manifestement incomplète n’est jamais limitée par sa finitude. Elle reste un lieu de liberté pour son auteur, un lieu où il peut trouver une place pour chaque nouveau texte, chaque nouvelle idée, le lieu où il pouvait recommencer lécriture sans jamais l’achever.”…
“D’une certaine manière nous pouvons dire que “Le Livre de l’Intranquillité” est une polyphonie, concept opposé à celui de monologue – non à travers plusieurs voix mais une seule qui adopte plusieurs points de vue, qui dialoguent entre eux.”
(“Mémoire”)

E é este ajudante de guarda-livros que, na sua alternância de estados psíquicos, elege Lisboa como o espaço vital do seu mundo de escrita sensacionista, de diversão lúdica da linguagem, no seu jogo humorístico já citado:
«Se houvesse de inscrever, no lugar sem letras de resposta a um questionário, a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia nele sem inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço chave LISBOA.» ("L. D.")

L’IRONIE
L’ironie ou le chemin du dédoublement de la conscience:
Un programme esthétique
Tão intensa e labiríntica é a rede de vias de um percurso a cada passo interrompido em todos os sentidos, no seu jogo de desdobramento da consciência e pondo em causa as noções de realidade e de verdade, que dir-se-ia ela consiste numa constante busca do absoluto.
E o desdobramento da consciência – a que escreve e a que se vê escrever – é, juntamente com a ironia, a capacidade que distingue o homem superior do homem vulgar, que, este, não se questiona:
«Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais complexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos são todos inconscientes – não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há duas consciências.» ("L. D.")
L’intranquillité est la critique des certitudes, ou le constat de la fin des croyances, en Dieu, dans l’humanité, dans les idéaux enfin, laisse un espace vide de manque ou d’incertitude”: (“Mémoire”)

«Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas… Vou a falar e falo eu-outro. De meus só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo quanto é a vida. (L.D.)
Comment trouver une unité, et donc une identité, dans des consciences éparpillées parmi plusieurs, souvent contradictoires, parfois incompatibles? Où il n’y a plus de distinction entre vérité et mensonge, le sens des concepts et des termes est secoué par cette tempête qui brise le príncipe de l’identité, qui finit par sombrer dans l’angoisse existentielle éprouvée et exprimée par Soares.” (“Mémoire”)

A ironia é a sua tábua de salvação, ao fazer vacilar as certezas da verdade pelo efeito de uma contradição entre o sentido implícito e o sentido explícito dum enunciado, fazendo compreender ao interlocutor o contrário do que se afirma.
“C’est le contraire de la littéralité, et en ce sens elle s’approche de la littérature.” ("Mémoire")
Mas a ironia resulta igualmente da cumplicidade criada entre o narrador Soares e os seus interlocutores; ou do afastamento entre a dimensão do sonho – infinitamente grande – e o infinitamente medíocre do quotidiano.
C’est la sensation de l’échec, très présente dans ses écrits, qui dans le caractère pluriel de notre personnage, est associée à la gloire de pouvoir tout rêver”.
“Néanmoins, la conscience de l’écart entre les mots et les choses constitue pour Bernardo Soares un véritable champ de possibles esthétiques, imprégné qu’il est à la fois d’une sensibilité moderne et d’une vision critique de la modernité.”
(“Mémoire”)
Critica uma concepção da arte – da escrita – como cópia da realidade interior ou exterior. Adepto da arte aristocrática, e no seguimento da filosofia de Nietzsche, condenatória da democracia, condena a democratização da arte trazida pela escola romântica, no seu sentimentalismo sincero mas inferior, fechado no casulo de uma só consciência.
«A ruína dos ideais clássicos fez de todos os artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras – poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos.» ("L. D.")
Condena, assim, a imagem do espelho no seu significado de meio visual de definição da realidade, abolindo a imaginação, e defende a dualidade ou mesmo a multiplicidade da verdade, segundo os ideais clássicos gregos, na sua arte de fingir com que Bernardo Soares se identifica.
«A mais vil de todas as necessidades – a da confidência, a da confissão. É a necessidade da alma de ser exterior. Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.» ("L. D.").
(O poema de Pessoa “Autopsicografia” - “O poeta é um fingidor….”, enquadra-se, naturalmente, nestes conceitos de fingimento subjacentes à criação artística, expressos no “Livro do Desconcerto”).
Ao destruir constantemente os seus postulados, novos postulados cria, toda a expressão comportando sempre a mentira, até mesmo a que constata a verdade:
Nous nous confrontons donc à une multiplication de dédoublements qui nous conduit à une aporie insoluble, et nous laisse finalement face au vide.” ("Mémoire")



À qui s’adresse-t-il?
Mise en scène de soi, de la constellation hétéronymique et des autres
As suas ideias sendo múltiplas, como o é ele próprio, a sua escrita cria uma cumplicidade com os seus leitores, com os seus heterónimos, em diálogo permanente, consigo próprio também que constantemente pretende ser outro, e num jogo de ironia “qui ne pourrait subsister dans la pure solitude”. Daí que utilize a interrogação, o imperativo, escrevendo muitas vezes como se respondesse a perguntas:
«Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está para mim, em parte alguma.» ("L.D.")
E o paralelo com o poema de Álvaro de Campos ilustra a análise feita em prosa por Soares: "Afinal a melhor maneira de viajar é sentir. / Sentir tudo de todas as maneiras” que, embora preceito de escola – o sensacionismo – é bem expressão de uma personalidade absurdamente dividida, numa hiperestesia de extraordinária dimensão.
La forme dialectique adoptée par Pessoa représente une sensibilité qui tient compte des autres sensibilités. La mise en scène permise par un langage souvent “emphatique” inclue aussi le lecteur, le public, qu’il met à l’épreuve par la mise en question du sens commun, de la bonne pensée, et même, pourrait-t-on dire, de la Vie (telle qu’il l’écrit avec majuscule) qui n’est que la Réalité regardée par chaque individu avec les yeux de sa propre expérience. Ces idées sont clairement dirigées vers quelqu’un, comme un personnage du théâtre qui s’adresse et s’affirme devant un public: il parle de manière exclamative, ou en soufflant, ou avec réticence, ou plein de certitude… Ce jeu théâtral se déroule dans l’univers de Pessoa, traversé par l’opposition de la pensée et de l’écriture, représentées chacune par un ou plusieurs hétéronymes, qui sont subtilement utilisés dans le Livre. Sa démarche faite de questions et de réponses séparées par des passages n’ayant rien à voir constitue une intelligente provocation.” (“Mémoire”)
Um público, pois, constituído pelos próprios heterónimos (V. carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos seus heterónimos: «Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre R. Reis e Á. De Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria).»
Público constituído também pela sua ideia de leitor, onde ele situa as convenções e os preconceitos, - o “vulgo” – que poderia identificar-se com as personagens quotidianas do Livro: o empregado da tabacaria, a lavadeira, o barbeiro, o criado do café, a costureira, na ambiguidade da sua descrição, partilhando humildemente a sua condição, idêntica à do gato e do cão, na satisfação inconsciente que rege as suas vidas, mas por vezes irmanados aos grandes génios: «do outro lado estamos nós – o moço de fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas, o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio Dante Alighieri (…)» (L. D.). Uma fraternidade que inclui as pessoas com quem trabalha, “patrão Vasques”, ou “o Moreira”, talvez como ironia ou como provocação.



“Provocation élargie par l’ironie mise au service d’un renversement du sens commun, des idées reçues, de l’orthodoxie comme manière unique de bien penser, donc forcément limitée et incomplète, vu qu’elle se fonde sur l’unicité de l’être et de la pensée. La déconstruction de la bonne pensée est partie integrante, sur le fond comme sur la forme, de son écriture qui adopte le paradoxe, la contradiction, l’antithèse, et tous ces outils de l’intellect étrangers à la pensée orthodoxe.” (“Mémoire”)
A ironia como marca de superioridade de homem de cultura, detentor de duas consciências e de um complexo de inferioridade, pois que, ao contrário destes seres felizes, ele não o é.
“Dans un autre passage, très parlant et drôle, qui évoque ces hommes “inconscients”, l’ironie révèle un humour moqueur, mais fraternel, presque teinté d’admiration (puisqu’il compare ses semblables aux dieux), à la fois:” (“Mémoire”)
«Mas como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna – a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!»
("L. D.")
Mas, como a “ceifeira” de Pessoa, estes seres, desprovidos duma verdadeira sensibilidade, não podem tomar consciência da sua infelicidade, ao contrário de Soares, de Pessoa, limitando-se a ser simplesmente felizes, como os deuses.
Na sua “estética do fingimento”, os sentimentos mais poderosos como a dor e o sofrimento sofrem uma metamorfose através de uma recriação dramática que espera a análise do leitor:
«Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho sido actor sempre e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.» ("L. D.")
Um eu estilhaçado, dramaticamente, teatralmente, na origem dos seus heterónimos.
“C’est pour ça que nous retrouvons la dramaturgie chez Soares, bien qu’elle ait une place un peu à part dans la constellatin pessoenne, étant plus subtile et profonde: on y entrevoit les causes, les processus, comme dans des coulisses où courent les acteurs, les auteurs et les maquilleuses, mais où chaque élément n’est compréhensible qu’à la vision du tout, du spectacle qui a lieu devant le public, devant les lecteurs de l’oeuvre complète.” (“Mémoire”)

L’écriture – une mise à distance?
Numa alternância de estados psíquicos, que vão da inacção epicurista à inquietação, para concluir no vazio, no non-sens de tudo, vazio é também o lugar dos afectos, concluindo Soares na sua “incapacidade de amar” na sua “secura de coração”: «Vale mais para mim um adjectivo do que um pranto real da alma». ("L. D.")
L’amour comme comblement de la distance par la contemplation de l’objet aimé est inconcevable pour Bernardo Soares. Et c’est peut-être le mouvement par excellence de la prose de Bernardo Soares: revenir à une distance qu’il maintient toujours vis-à-vis de la vie. La distance imposée par son fameux dédoublement de la conscience. Il ne peut pas s’arrêter d’analyser le moindre événement, la plus petite sensation, vivant comme un étranger ethnographe dans la rue même où il habite - «Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro» ("L. D."). La nature de Soares lui fait analyser la vie à la place de la vivre. Sa vie, c’est la distance créée par l’analyse de la myriade d’impressions que son esprit sensible recueille du monde: (“Mémoire”)

«Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência.» ("L. D.")
O distanciamento efectua-se por intermédio do humor, contrário a uma relação trágica com a vida. A sua capacidade de despersonalização dramática permite-lhe transformar o absurdo em obra de arte, dar uma forma ao caos, através da escrita, que para ele substitui a vida.
Il vit dans la discontinuité: être autre et écrire autrement à chaque jour. Dans un monde de personnalités changeantes, les concepts changent aussi, sans cesse, selon les points de vue et les postures. L’ironie correspond à une position épistémologique basée plus que dans le scepticisme, dans la relativité de la connaissance. L’ironie dissout les significations des concepts et de leus correspondances dans le langage”. (“Mémoire”)
A ironia, como essência da literatura, no seu distanciamento, funcionando como definição de literatura, com autores e leitores como personagens de ideologias diversas povoando o seu universo de ficção.

L’Empire du Rêve
Les effets d’humour
Entre os dois títulos acima, precedendo a análise que segue, a transcrição de um passo do “Livro do Desassossego”, que, no seu discurso de alegoria retrata um ser repartido entre o sentido das suas misérias e da sua genialidade:
«Afinal quem sou eu quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das Sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia»
E é novamente do humor que trata este capítulo, como marca relevante da personalidade múltipla pessoana, resultante do facto de nenhuma das suas criações levar a sério nem a vida nem a obra, sendo que a vida é a obra.
C’est pourquoi nous nous prenons si souvent à sourire devant son ironie, et à rire parfois de l’absurdité de ses propos, ou même d’un franc humour noir. Plus nous passons de temps avec Pessoa, plus nous devenons sensibles aux composantes humoristiques de son “monde imaginaire”… “Faire dissoner, et ainsi dissoudre les certitudes d’une pensée unique, en survolant tous les points de vue à la hauteur d’un sourire ou d’un éclat de rire. La mise en scène comme dédoublement perpétuel, le théâtre dans le théâtre, dégage de vrais effets du comique.” (“Mémoire”)
Seguem-se exemplos:
- De humor absurdo: «Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a ideia dum cataclismo próximo» ("L. D."): “Cette déclaration semble absurde, mais nous pouvons aussi la comprendre comme une moquerie supplémentaire de Pessoa à l’encontre de la croissante société de consommation qui crée des envies et des frustations insensées. Mais sitôt après, nous voyons, non sans une certaine ironie, qu’acheter des choses inutiles a aussi l’avantage d’être une manière d’acquérir des petits rêves et de revenir ainsi à l’enfance.” (“Mémoire”)
E o efeito cómico resulta, pois, não só do exagero da afirmação feita, mas também do contraste entre o sensato e o absurdo conjuntos, dos seus postulados.
A linguagem torna-se, assim, a verdadeira manifestação não só do génio inventivo como da existência de Bernardo Soares, única distracção da sua vida, mesmo sentindo-se em estado depressivo ou melancólico, defendendo uma estética do fingimento, da ficção, jogando com os vários efeitos do discurso, ao nível do significante, dos sons, ou do significado, como jogo metafórico, como jogo humorístico.
Na sequência da afirmação tão brutalmente pessimista de Nietzsche “L’homme souffre si profondément qu’il a dû inventer le rire”…l’ “humour dans cette oeuvre est surtout négatif, même s’il n’est pas partout de l’humour “noir”. Ainsi, il déclare vouloir tout subordonner à l’art, qui est ce qui demeure dans le temps, alors que la vie matérielle finit très vite:” (“Mémoire”)
«O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação. Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se” ("L. D.")»
Avesso à ideia de metafísica, na sequência do Mestre Caeiro, (ou, como Álvaro de Campos em “Tabacaria”: (“A metafísica é uma consequência de estar mal disposto”), dentro da doutrina Nietzshiana de abolição de Deus, Soares erigiu o poder da escrita como ditadura a que é necessário submeter-se:
Le dire instaure une Vérité (qui, en termes pessoens, est paradoxalement une “vérité fictionnelle”). En quelques mots, nous passons du sacré, les pieds du Christ, au profane, l’enivrement, si nécessaire pour bien écrire.” (“Mémoire”)
Uma escrita assente, por vezes, na valorização do significante, como um discurso humoristicamente construído em jogo de sons, destituídas as palavras de um nexo significativo (de que o poema de Pessoa “Saudade Dada” é exemplo expressivo: “Em horas inda louras, lindas / Clorindas e Belindas, brandas, / Brincam no tempo das berlindas, / As vindas vendo das varandas, / De onde ouvem vir a rir as vindas / Fitam a frio as frias bandas….”)
Por outro lado, segundo o conceito freudiano da dissemelhança, como técnica do cómico, surge, por vezes, a justaposição de dois universos diferentes numa só percepção:
Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assinar.” ("L. D.")
Escrita - acção - associada ao sono – inacção: a escrita de Soares, próxima do sonho, da inacção; e a vida não moedável, comparada a um papel que confirma uma compra, embora sem valor por falta de assinatura: eis a sua vida sem sentido - quase sem identidade.
Ces contrastes extrêmes entre matérialité et abstraction, entre vide et infini, entre le plus grand et le plus mesquin, sont encore une facette de la volonté de Pessoa de renverser les postulats de certitude, de voir toujours au-delà. Parfois dans l’invraisemblance totale, donc comique”. (“Mémoire”)
É exemplo disso o passo do Livro de atribuição de uma alma às figuras artificiais – caso de uma chávena de porcelana que uma criada quebrou – para ele tão dotadas de existência e de vida como as figuras com quem se cruza na rua.
Un sens invraisemblable et plein d’absurdité, mais qui enrichit la vie d’un nouveau territoire: la nouvelle science de la psychologie des porcelaines. À nouveau deux univers dans une seule perception – il confond délibérément la vie avec la littérature. Si la vie est quotidiennement banale, la littérature est universelle et elle a de place pour l’infini. Pourquoi pas le contraire, si la vie réelle est la littérature? Cet infini est concrétisé par les dédoublements de fictions en série dans lesquels nous entraîne Soares: sa collection de tasses japonaises est imaginaire, ainsi que la domestique, ainsi que le salon où il converse avec des interlocuteurs imaginaires lorsque ce petit événement a lieu. Ce n’est pas seulement le sens et l’absurdité qui dégagent un effet humoristique, c’est aussi l’élévation de l’imagination à des degrés extraordinaires que n’atteignent d’habitude que les jeux des enfants, qui se perdent souvent dans le déploiement de l’imagination et de la feinte." (“Mémoire”)
Eis o passo de Soares: «Quando se quebrou uma chávena da minha colecção japonesa, eu soube que mais que um descuido das mãos de uma criada tinha sido a causa. Eu tinha estudado os anseios das figuras que habitam as curvas daquele serviço de louça; a resolução tenebrosa de suicídio que as tomou não me causou espanto. Serviram-se da criada, como um de nós de um revólver. Saber isto é estar além da ciência hodierna, e com que precisão eu sei isto!»
E nestes jogos de absurdo e de contradição, em que vive, Bernardo Soares se afasta da Realidade que exige, ao contrário, a ponderação, o sensato o pragmático:
«O absurdo salva de chegar apesar do tédio, àquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar. (…) Absurdemos a vida.» ("L.D.")
E neste afastamento da moral comum, troça dos valores por ela aceites:
«Mas os termos “dever cívico”, “solidariedade”, “humanitarismo”, e outros da mesma estirpe, repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim das janelas. (…) Não posso considerar a humanidade senão como uma das últimas escolas na pintura decorativa da natureza.» ("L. D.")
(Compare-se com idêntica ironia, sem tanto desprezo implícito, todavia, no poema de Caeiro “Ontem à tarde o homem das cidades…”:Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros, /Quer para fazer bem, quer para fazer mal.”)
É a secura de coração (de Soares / Pessoa), pela incapacidade de amar com o sentimento, que dá lugar à via satânica do riso, no rastro da filosofia de Henri Bergson: “A insensibilidade acompanha geralmente o riso. O riso não tem maior inimigo que a emoção” tornando aquele que ri um “espectador indiferente” de “dramas que se tornam em comédia”… “O cómico exige uma anestesia momentânea do coração. Dirige-se à inteligência pura”.(“Le Rire”).
Baudelaire o dissera: “Le rire humain est intimement lié à l’accident d’une chute ancienne, d’une dégradation physique et morale” (“De l’essence du rire”).
Esta tomada de consciência da indiferença entre os homens, que em Pessoa é sempre uma dupla consciência, revela-nos um dos melhores exemplos de humor negro no Livro do Desassossego:
«Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos os que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida… Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros (…) Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?» ("L. D.")
A tragédia convertida em riso, de um suicídio de alguém de quem se não suspeitara que tinha alma e cuja recordação ficara circunscrita, para o narrador, a um casaco sujo e mal talhado ou a um pensamento irrisório sobre uma calvície precoce que não chegaria a verificar-se, pontua bem o exemplo da via satânica na escrita do narrador Soares, na junção obscena do trágico com o grotesco.

Renversement de la conscience tragique



Desta forma, pela ironia, Bernardo Soares vai demonstrando a sua ausência de empatia e a sua incomunicabilidade com os outros, espectador dos gestos e destruidor dos mitos que poderiam dignificar o homem, como o humanitarismo, que não é senão uma embriaguez enganadora:
«Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz – quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos – na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.» ("L. D.")
«Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.» ("L.D.")
Encarando a vida como um espectáculo, ele próprio também em palco, à distância de todos, na secura dos seus sentimentos, na insensibilidade perante o sofrimento, tudo desconstrói até chegar ao nada, pela constatação de que “tudo é absurdo”.
Le vide intérieur du personnage est preuve d’un vide infiniment plus grand: l’absence de Dieu et la conscience intime de l’absence de sens. Un Cosmos renversé.
Que nous reste-t-il alors?”
(“Mémoire”)


L’art de rêver
O vazio dos afectos, a ausência de toda a divindade, a ausência de si, a irrealidade dos outros, o sentimento da solidão e de ser diferente, a abolição do mistério com o desenvolvimento da ciência e da técnica, tudo isso que o situa no modernismo e se traduz em descrença e desencanto, justifica uma arte fragmentada, cujo inacabado lhe dá perspectivas para um sentimento de infinitude, que a janela de Soares, aberta no seu quarto da Rua dos Douradores simboliza, funcionando como alavanca entre a exterioridade do mundo e a interioridade das suas várias consciências, nas contradições que capta, numa imaginação que se desdobra.
«Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução. (…) Se eu tivesse o mundo nas mãos, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores. (…) O Ganges passa também pela Rua dos Douradores. (…) Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão, por acordo de ritmo com a distância exposta, para as viagens aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis. Mas enfim, também há um universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver.» ("L. D.")
L’imagination, qui dans le sens littéral désigne la capacité à former des images, permet d’affronter le temps, elle atténue et adoucit l’angoisse du passage du temps. C’est l’imagination qui ouvre la pensée vers les innombrables possibilités de création de quelque chose qui, au premier regard, peut paraître n’être qu’un rien.” ("Mémoire)"
«Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo, um tudo ou um nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é renová-la, multiplicá-la por si mesma. É por isso que o espírito contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito
» ("L. D.")
“C’est dans le passage à l’écrit qui s’effectue cette alchimie: la transformation des miettes du vécu en absolu.” ("
Mémoire")
De uma vida real apagada, é pelo sonho, pela imaginação que ele se engrandece, partindo da desconstrução para uma reconstrução, que, jamais acabada, no seu todo fragmentado, mostra as infinitas possibilidades de um universo situado entre a consciência e a inconsciência do sujeito.

Conclusion
Um livro em movimento: uma obra aberta, de leituras diferentes, conforme as sensibilidades dos leitores.
C’est un livre fascinant pour la jeunesse, presque un livre initiatique. Par sa forme, proche du journal intime si souvent rédigé par les adolescents, et par sa démarche de mise en question généralisée à travers paradoxes et contradictions, il nous apprend à penser, à être critique et savoir aller au-delà de l’orthodoxie, il nous apprend ce qu’est l’ironie, et comment nous pouvons l’utiliser pour garder parfois la distance vis-à-vis de la vie.” (“Mémoire”)

Um livro que Joanna considera das mais belas prosas que alguma vez se escreveram em língua portuguesa.
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Um trabalho cuidado, esta “Memória” sobre o livro de Bernardo Soares, que vai semeando autores e referências, e conclui, naturalmente, com bibliografia adequada – as obras de Pessoa (bibliografia primária), estudos sobre Pessoa (bibliografia secundária), entre os quais os de Eduardo Lourenço e a tradução por Françoise Laye, de “Le Livre de l’Intranquillité” seguida por Joana, na tradução dos excertos de Bernardo Soares, outros autores complementares, como bibliografia terciária.
Um livro – mais um, mas quão diferente! – este “Livro do Desassossego”, que tão rebuscadamente se apoia no velho conceito socrático do autoconhecimento como forma de alargamento do saber: “conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses”.

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