domingo, 10 de julho de 2011

O corno do Custódio

Ambas comentámos a notícia, ouvida neste domingo, de que Portugal estava entre os cinco primeiros países europeus que mais maltrata os seus velhos. Os números assustam.
Há muito que lemos sobre as mortes solitárias, olhamos os velhos dos bancos dos jardins, silenciosos ou jogando cartas, conhecemos casos, entre a nossa população idosa, de pessoas doentes, que se arrastam entre o café e a farmácia, contando dos seus achaques, provavelmente no susto da casa solitária, para o enfarte ou a dor súbita, embora vão gabando a filha que, coitadinha, tem muito trabalho e pouco pode aparecer… E lemos sobre a violência doméstica, e sobre os velhos que a família abandonou nos hospitais… Tudo confrangedor. Coroado pelo conceito chocante da eutanásia libertadora.
E, por antecipação, vemo-nos daqui a uns anos, talvez em situação idêntica, forçadas a deixar o nosso mundo familiar, tudo o que preencheu as nossas vidas de alegrias e tristezas, atiradas para um lar de idosos, se tivermos essa sorte, onde teremos que iniciar uma existência desligada de tudo o que teve significado para nós, esperando a visita da família amante, não o duvidamos, mas com os seus próprios condicionalismos de limitação de espaços e de tempo.
O envelhecimento da população, concomitante com a diminuição da natalidade, torna-nos mais sensíveis ao problema, cujo tema já Simone de Beauvoir, no seu livro “La Vieillesse”, de 1970, focara, destacando a condição dos velhos como párias que a sociedade marginalizava, retirando-lhes não só os direitos mas a própria condição humana, que a fragilização gradual das faculdades mentais e físicas propiciava.
Ficámos chocadas com o que se passa no nosso país, mas eu lembrei um livro da actriz norueguesa Liv Ullmann, “Mutações”, onde, entre as suas evocações autobiográficas, conta a relação de amor com a avó, que acabou num centro para idosos, bonito, acolhedor, com empregadas pacientes, mas obedecendo aos toques das regras do convívio e onde nenhuma empatia se apercebia entre as cinquenta criaturas fêmeas que o habitavam. “Lá como cá”, pensei eu na altura, com a estranheza da convicção de que a superioridade cultural dos povos impediria equiparações connosco.
É Alçada Baptista quem igualmente foca o problema, na sua “Peregrinação Interior”, como algo que a sociedade despersonalizou, indecorosamente, retirando o idoso doente do seio da família, que se socorre da casa de saúde ou do hospital para não atravessar o horror do sofrimento e do passamento do seu familiar, querido ou não, despegando-o de si, talvez por egoísmo, talvez por amor, no apelo à salvação ou a uma provável recusa do sofrimento próprio.
Mas, porque somos dos mais favorecidos nas equiparações negativas com os outros povos, não significa que todos nós tratemos mal os nossos velhos, e por vezes a televisão leva-nos a centros de diversão para idosos que nos encantam, embora quisesse que entre as diversões houvesse espaço para leituras e convívios mais do foro intelectual.
E uma vez mais, lembro a minha mãe como pessoa de sorte, a sorte que não teve o meu pai, sujeito a um final de muito sofrimento, com um passamento longe da família, no hospital.
A minha mãe beneficia da presença das duas filhas, a mais velha rodeando-a de cuidados e companhia, trazendo-lhe revistas baladeiras, com direito a explicação sobre as personagens desse mundo real que consola e faz sonhar, passando, junto da mãe, horas da sua vida diária, conversando sobre os temas repetidos. Ao domingo, traz o almoço feito em sua casa, e a minha mãe, no seu trono real que é a cadeira de rodas, goza da nossa presença e recorda uma vez mais, o seu passado mais recuado ou mais recente, com que consegue ainda surpreender-nos, por vezes.
Foi o caso de hoje. Contou a história do seu tio Custódio, um dos seis ou sete irmãos da sua mãe, que um dia recebeu um corno enviado por um dos seus irmãos que fora para o Brasil. Era um corno competente, que comportava uns vinte litros do bom vinho que ele ia buscar à sua quinta do Casal Bom, junto do Vouga, para o levar para Ribeiradio, a pé, pois naquele tempo andava-se muito a pé. E à chegada apregoava, generosamente: “Quem quiser beber vinho do bom, venha ao corno do Custódio!” E a minha mãe ria-se, a contar, pela primeira vez, essa história, que nos divertiu também.
A minha mãe vive um presente de mimo, mas exige sempre mais. Nos espaços de mais solidão – ela sabe que eu estou perto – reza, chora, chama os seus queridos do passado, conversa com eles.
Nunca um lar lhe poderia servir. Felizmente que estamos disponíveis.
Que o corno do tio Custódio, lembrado hoje, verta sobre nós umas gotas de vinho benfazejo que abençoe o percurso final de uma mãe centenária, com a presença, constante e capaz, das filhas, nos anos que seguem, também a caminho.

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