- Chama-se Ferreira Fernandes, assina-se como jornalista de uma rubrica diária na última página do DN – “Um ponto é tudo” – geralmente insulsa, quando não pretensiosa, felizmente em reduzido tamanho, maior, todavia, do que o tal ponto que imodestamente a intitula.
- A de hoje, 20 de Fevereiro, que me permito transcrever, para maior realce ainda, pois sei bem o quanto as chamadas de atenção para as idiotias nesta nossa terra têm o condão de lhes dar mais projecção, tem por título “Vocês sabem o que é o “modus operandi”?
- «Um luandense escreve de forma lenta e esforçada: “Çapato”. Outro luandense lê e espanta-se: “Quê? Sapato com c de cedilha?!” O primeiro relê-se, hesita, mas logo contra-ataca, varrendo o espanto do outro: “E você leste bota?...” A fala que a minha cidade natal dá à minha língua, usando-a de forma saboreada e gozada, tem paralelo com a escrita que os brasileiros praticam, por exemplo entre os seus magníficos cronistas. A essas duas formas de usar o português, imaginativas, apropriadoras, piscando os olhos com os lábios, eu sei que não abuso quando as comparo com a língua substantiva dos camponeses transmontanos. Em 1975, quando Portugal fervilhava, Lisboa mandou estudantes universitários, então em parênteses com a farda catequizar aquelas bandas. “ Numa aldeia, um jovem oficial miliciano subiu ao Unimog, cercado de povo, e falou como sabia, oco: “Vocês sabem o que é o socialismo?” Ao que uma camponesa respondeu: “E vossemecê sabe o que é o salamim?” Eu, que não sabia o que era o salamim e do socialismo só julgava saber , tenho essa história demasiado presente quando leio os jornais portugueses a debater o Acordo Ortográfico. Escreve-se sem alma nem raízes, longe da coisa salamim e enrolados em vazios como “implementação” e “modus operandi” – os jornais não se lêem porque são escritos sobre Unimogs – mas sufoca-se com o “p” mudo perdido. Prefiro o luandense do “çapato” e os erros de concordância de Nelson Rodrigues.»
- Um texto que se permite ironias sobre os atacantes do AO, quando só revela lacunas gramaticais graves, na desculpabilização do erro angolano (o ç jamais inicia as palavras portuguesas), solecismos angolanos comparáveis aos que a camada popular brasileira pratica profusamente nas suas discordâncias sintácticas e fonémicas, a bajulice aos magníficos cronistas brasileiros, embora, neste ponto, com razão de ser, pois indiscutivelmente o tipo de argumentação daqueles nada tem a ver com o emaranhado fraseológico do articulista português bajulador, a indiferença pelo erro linguístico e mesmo a sua aceitação, com o pretexto desonesto de que os saberes populares se correspondem com os saberes dos oficiais milicianos e quejandos, em história memorada de despicienda experiência passadista, a inexplicável ironia sobre o uso de latinismos ou de neologismos que são, naturalmente, uma valiosa forma de enriquecimento linguístico (Camões, Garrett, Eça, os simbolistas etc., o justificam em abundância), a explicação sarcástica da falta de leitura dos jornais (e por consequência dos artigos de Ferreira Fernandes) ao que parece, por cediça instalação de quem os escreve, e finalmente a ironia do “sufoca-se com um p mudo perdido”, nem que ele colida com o p fónico em palavras de idêntica estirpe linguística – caso de egípcio com p colidindo com o seu país de origem – o velho Egito manquejante pela incompreensível destituição do seu p etimológico.
- A par de tudo isso, o bonitinho de um estilo adornado de adjectivos e com metáfora surrealista de bom efeito retórico, caso do “ piscando os olhos com os lábios”, como forma definitiva de torcer o pensamento. Se é que existe algum. Importante.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
Os extraordinários linguistas do nosso despudor
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