sábado, 4 de fevereiro de 2012

Em busca dum tempo nunca vivido

O mundo dos sentimentos íntimos, de par com a extraordinária capacidade de os descrever – nos amores, medos, raivas, inquietações, ciúmes – e a presença dos seres que amou – a mãe, a avó, “non plus ultra” da distinção e beleza de uma burguesia defensora dos princípios éticos, os amigos, as amadas, jovens e mulheres distintas na aristocracia que frequentou, e juntamente as evocações dos momentos vividos, as figuras, os odores, os sabores, os gestos, os caracteres, os sentimentos, configurados num tempo não cronológico mas durativo, despoletando um descritivo rigoroso e apaixonado, brilhante de convívios e ternuras, de uma França que para sempre permaneceria a pátria intelectual da admiração e do amor do mundo inteiro. Tal o universo em síntese do livro “Em busca do tempo perdido” de Marcel Proust.
Não se trata dos discursos apaixonados de um Rousseau, um Lamartine ou tantos outros que traduziram os sentimentos nublados das lágrimas românticas e saudosistas pela amada perdida, em recolhimento espiritual e em meio de dolente ou sombria natureza com eles convergente. Pelo contrário, Proust, mostra-se extremamente arguto, ao pôr a nu os sentimentos do seu universo de personagens, recolhidas do seu passado, a que a memória deu amplitude, e favorecido, não só pelo desenvolvimento dos estudos da psicanálise, como por uma infância e adolescência demasiado protegidas, na preocupação materna pela sua doença crónica de asmático. Eram mundos diversos, vidas livrescas diferentes, que marcaram as respectivas épocas de acordo com os parâmetros da evolução social.
Entre nós também hoje há quem analise e se analise na fogosidade das paixões, pondo a nu descritivos que pendem mais sobre pormenores de erotismo, a espiritualidade dando lugar à sacralização da “besta humana”, numa vulgaridade de discurso tantas vezes grosseira e mesmo animalesca que o cinema, aliás, favorece.
É certo que há quem escape a esta ordem da obrigatoriedade da pornografia, e eleja, para valores de mais ampla universalidade, feita das experiências e reflexões pessoais, as temáticas humanas centradas tanto no ego como no que está para além dele e que é descodificado com extrema argúcia. É o caso de Pedro Mexia, de Gonçalo M. Tavares.
Mas aquele mundo do requinte e luminosidade que nos é trazido por Proust, não existe para nós, habituados a uma literatura passional de sofrimento, violência e miséria bem choradinhos com que Camilo nos marcaria, no seu estilo profuso em rico vocabulário colhido nos clássicos e com enredos sobre figuras aparentemente extraídas de consulta documental, a que acrescentaria a exacerbação moralista dos seus comentários apaixonadamente críticos, tantas vezes satíricos.
Não, conforme se diz que não temos bossa dramática, também não temos uma literatura romanesca tão expressivamente elegante como a que nos é revelada por Proust e tantos outros escritores da narrativa e da dramaturgia francesas.
Um universo cultural que não temos, a não ser por núcleos esporádicos e fechados, seria fundamental para tal criatividade, e mesmo as sociedades pseudo-elegantes ou pseudo-literárias do romance queirosiano não deixam de revelar a mediocridade, a frivolidade ou a avidez financeira ou de notoriedade das figuras repetidas ao longo da sua ficção. Ressalvamos em parte a “Peregrinação Interior” de Alçada Baptista, no seu memorialismo de sensível recorte humorístico, mas a que não é alheia a crítica social.
Porque hoje aqui vivemos numa época de remendos, tentando consertar o caos criado pelos génios que trabalharam obscuramente no seu próprio proveito, e só tardiamente se deu por isso, pelo que escaparam à justiça, fumando charuto.
Não, a nossa intelectualidade fica-se pela poesia de alguns. A maralha entretém-se a referir as suas misérias. Aos jornalistas ou às vizinhas apiedadas.
É o nosso mundo. Mundo que sempre tivemos. Como uma bandeira emporcalhada.

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