segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Casa Africana


No Pingo Doce encontrei o semanário I que me chamou a atenção sobretudo pela fotografia de José Gil que por vezes leio com apreço, até por ser alguém que conheci. Era filho da escritora Irene Gil e irmão de Fernando Gil, este, sim, meu colega no 7º ano de Letras no Liceu Salazar, como figura marcante de saber e rebeldia, naquele ano de 53, em que esteve preso na Pide, juntamente com outros colegas, por crime, ao que parece, de leituras subversivas e talvez reuniões condenáveis pela contestação que implicavam ao regime de Salazar.

Lembro o dia em que ele entrou na nossa pequena sala de Letras e eu soltei um deslumbrado “Olha o Gil!”, após os dias de sentida ausência, e as lágrimas, mal refreadas, lhe brotaram nos olhos, geralmente contidos, por consciência altiva da sua distância ao comum de nós outros, mortais. Significavam elas o sofrimento por que passara e o reconhecimento da amizade e admiração dos colegas no escândalo que assumira tal prisão e que, afinal, só poderia trazer-lhe mais glória ainda, na nossa impossibilidade de a penetrar, vista a fronteira intelectual que o distinguia dos colegas.

Fernando Gil e José Gil seguiram os seus caminhos que são concisamente dados a conhecer nas biografias dos seus méritos.

De José Gil, que conheci posteriormente em casa da sua mãe, já após o 25 de Abril, embora fosse referência nas conversas de uma mãe não resignada à sua solidão, vou lendo ou vou ouvindo, nas suas actuações em programas televisivos, para além do livro de fácil abordagem “O Medo de Existir” que nos encheu as medidas, na altura em que se constituíam regras perversas contra a dignidade de uma classe que fora chamada docente, impedindo-a de respirar e de viver. É certo que agora, quem impõe essas regras são todos os que têm trabalhadores a seu cargo, a ditadura/escravatura passou a ser empresarial, graças ao medo de não se existir como trabalhador, para parafrasearmos desmistificadoramente uma filosofia altamente elaborada.

Todo este introito vem a propósito da entrevista assinada por Maria Ramos Silva feita a José Gil, que termina da forma seguinte:

«-Tendo passado tanto tempo em diferentes sítios, chama casa a algum deles?

- Sabe, eu não tenho necessidade de lar porque não nasci num lar. Não nasci num lar porque o que se criou como ideia e realidade de lar em Moçambique, numa ex-colónia portuguesa, é um edifício artificial, construído sobre a ausência de lar, ausência de uma relação natural, que passa pela língua e pelo corpo, com o território. Nós, moçambicanos brancos, nascemos em Moçambique sem lar, mas criámos um, que dizemos ser o mais forte que existe, que é Moçambique. Não tenho nostalgia nenhuma de um lar que nunca tive.»

Incomodou-me tão acintosa contestação de um lar moçambicano, como humilde reconhecimento de que a sua cor de pele lhe não dava direito a uma naturalidade em terra doutra cor, mas silenciando o facto de lhe ter absorvido os bens que lhe permitiram seguir os estudos no estrangeiro, bens paternos que lhe não faltaram e que soube reivindicar como de direito, mau grado as generosidades perdulárias a favor do povo negro, sem atender aos direitos do povo branco de longa data aí estabelecido, como em outras partes da esfera acontecera, como muitos outros povos exemplificam.

Salvou a sua imagem, numa pseudodedicação à causa libertária da África negra, mas ocultou, com saber, quanto a ela devia a sua projecção actual no mundo da cultura. Sem esses investimentos na sua educação, de uns pais com posses suficientes, nessa terra que renega como sua, a sua genialidade não seria tão reconhecida agora, chamado, certamente, a cumprir na defesa da pátria, de que pôde desse modo livrar-se a tempo.

Não foi caso único, hélas, pois muitos houve que, depois de lhe saborearem os frutos, arrancaram as raízes da árvore que lhes deu o ser, a pretexto de uma ideologia momentânea que lhes dava aura: «O marxismo era a filosofia. Também me deixei apanhar; felizmente durou pouco tempo» - afirma José Gil. Apenas o tempo de poder safar-se, entendo eu, da mesma forma desmistificadora.

José Gil aponta a inveja como característica específica do temperamento português. Só desejaria que, caso lhe chegasse aos olhos este texto, do que evidentemente duvido, não atribuísse a esse feio sentimento a minha crítica. Também já não é a raiva da surpresa ingénua dos primeiros tempos perante a “fuga dos ratos” dos porões de então, que a move.

É realmente pena, por ver tão brilhantes cabeças pronunciando tão balofas sentenças.


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