No Pingo
Doce encontrei o semanário I que me chamou a atenção sobretudo pela fotografia
de José Gil que por vezes leio com apreço, até por ser alguém que conheci. Era filho
da escritora Irene Gil e irmão de Fernando Gil, este, sim, meu colega no 7º ano
de Letras no Liceu Salazar, como figura marcante de saber e rebeldia, naquele
ano de 53, em que esteve preso na Pide, juntamente com outros colegas, por
crime, ao que parece, de leituras subversivas e talvez reuniões condenáveis
pela contestação que implicavam ao regime de Salazar.
Lembro o
dia em que ele entrou na nossa pequena sala de Letras e eu soltei um
deslumbrado “Olha o Gil!”, após os dias de sentida ausência, e as lágrimas, mal
refreadas, lhe brotaram nos olhos, geralmente contidos, por consciência altiva da
sua distância ao comum de nós outros, mortais. Significavam elas o sofrimento
por que passara e o reconhecimento da amizade e admiração dos colegas no
escândalo que assumira tal prisão e que, afinal, só poderia trazer-lhe mais glória
ainda, na nossa impossibilidade de a penetrar, vista a fronteira intelectual
que o distinguia dos colegas.
Fernando
Gil e José Gil seguiram os seus caminhos que são concisamente dados a conhecer
nas biografias dos seus méritos.
De José
Gil, que conheci posteriormente em casa da sua mãe, já após o 25 de Abril,
embora fosse referência nas conversas de uma mãe não resignada à sua solidão, vou
lendo ou vou ouvindo, nas suas actuações em programas televisivos, para além do
livro de fácil abordagem “O Medo de Existir” que nos encheu as medidas, na
altura em que se constituíam regras perversas contra a dignidade de uma classe
que fora chamada docente, impedindo-a de respirar e de viver. É certo que
agora, quem impõe essas regras são todos os que têm trabalhadores a seu cargo,
a ditadura/escravatura passou a ser empresarial, graças ao medo de não se existir
como trabalhador, para parafrasearmos desmistificadoramente uma filosofia altamente
elaborada.
Todo este introito
vem a propósito da entrevista assinada por Maria Ramos Silva feita a José Gil,
que termina da forma seguinte:
«-Tendo
passado tanto tempo em diferentes sítios, chama casa a algum deles?
- Sabe,
eu não tenho necessidade de lar porque não nasci num lar. Não nasci num lar
porque o que se criou como ideia e realidade de lar em Moçambique, numa
ex-colónia portuguesa, é um edifício artificial, construído sobre a ausência de
lar, ausência de uma relação natural, que passa pela língua e pelo corpo, com o
território. Nós, moçambicanos brancos, nascemos em Moçambique sem lar, mas
criámos um, que dizemos ser o mais forte que existe, que é Moçambique. Não tenho
nostalgia nenhuma de um lar que nunca tive.»
Incomodou-me
tão acintosa contestação de um lar moçambicano, como humilde reconhecimento de
que a sua cor de pele lhe não dava direito a uma naturalidade em terra doutra
cor, mas silenciando o facto de lhe ter absorvido os bens que lhe permitiram seguir
os estudos no estrangeiro, bens paternos que lhe não faltaram e que soube reivindicar
como de direito, mau grado as generosidades perdulárias a favor do povo negro,
sem atender aos direitos do povo branco de longa data aí estabelecido, como em
outras partes da esfera acontecera, como muitos outros povos exemplificam.
Salvou a
sua imagem, numa pseudodedicação à causa libertária da África negra, mas
ocultou, com saber, quanto a ela devia a sua projecção actual no mundo da
cultura. Sem esses investimentos na sua educação, de uns pais com posses
suficientes, nessa terra que renega como sua, a sua genialidade não seria tão reconhecida
agora, chamado, certamente, a cumprir na defesa da pátria, de que pôde desse
modo livrar-se a tempo.
Não foi
caso único, hélas, pois muitos houve que, depois de lhe saborearem os
frutos, arrancaram as raízes da árvore que lhes deu o ser, a pretexto de uma
ideologia momentânea que lhes dava aura: «O marxismo era a filosofia.
Também me deixei apanhar; felizmente durou pouco tempo» - afirma José
Gil. Apenas o tempo de poder safar-se, entendo eu, da mesma forma
desmistificadora.
José Gil
aponta a inveja como característica específica do temperamento português. Só
desejaria que, caso lhe chegasse aos olhos este texto, do que evidentemente duvido,
não atribuísse a esse feio sentimento a minha crítica. Também já não é a raiva
da surpresa ingénua dos primeiros tempos perante a “fuga dos ratos” dos porões de
então, que a move.
É realmente
pena, por ver tão brilhantes cabeças pronunciando tão balofas sentenças.
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