Simone de Beauvoir, na expressão clara das suas ideias contra a desigualdade entre os sexos, explicou no seu livro “O Segundo Sexo” que, graças à educação para a feminilidade, de que a sociedade é responsável, a mulher torna-se mulher, não nasce mulher, o que me parece um aforisma contrário aos dados fornecidos, entre outros, pela Bíblia, em que a mulher surge como fruto secundário da costela viril de Adão, e pela Biologia, com os nomes arrevesados do aparelho reprodutor, com que massacram as crianças logo no seu terceiro ano escolar, logo após as primeiras letras, fazendo-as distinguir os testículos dos ovários, os espermatozoides dos óvulos, conceitos arrevesados que remexem mais com os rapazinhos tímidos do que com as meninas inicialmente mais desenvoltas.
Mas, enfim, Simone de Beauvoir, na sua revolta contra a condição da fêmea amordaçada que sempre foi a mulher, escreveu a obra citada, responsável pela autonomia actual da mulher, que lhe permite votar, ascender a cargos governativos, etc., etc., e, sobretudo, desinibi-la a tal ponto que nenhum escrúpulo a impede de se expor em programas de sexo sem tabus, que, naturalmente, pervertem cada vez mais o mundo das crianças que nele vão colher os princípios da sua orientação espiritual.
Mas Simone de Beauvoir tinha razão na sua revolta contra a marginalização a que foi sempre votada a mulher, e nem se estranha que seja a França a detentora de uma obra de tal envergadura intelectual, por muito anterior que tenha sido o Women’s Lib, iniciado nos Estados Unidos, a grande pátria de todas as libertações.
Mas Simone de Beauvoir tinha antecedentes, como escritos defensores dos direitos da mulher, e entre esses a pequena peça em apenas um acto, “Quitte pour la peur”, de Alfredo de Vigny, que focando o adultério da mulher, num nobre casamento imposto, e o medo da sua heroína duquesa suade represálias do marido, ultrajado na sua honra, mau grado o seu parceirismo em idêntica pecha conjugal, por posse de uma também nobre amante, termina em apoteose de alegria, entre a ama e a criada, após a visita do marido, salvadora das aparências e desculpabilizadora da falta da frágil e revoltada duquesa sua esposa, por ele abandonada. Nada, pois, semelhante às nossas histórias machistas de faca e alguidar, mas discursos reveladores de uma plena consciência da injusta desigualdade na repartição da lei para o crime feminino e para o masculino, de que citarei breves excertos.
Uma amostra do diálogo entre a duquesa e a sua camareira:
Cena I: “A Duquesa: …Ai, em que tempo vivemos! – Compreendes isto, que um homem seja meu marido e não me visite? Explicas-me o que é precisamente um amo desconhecido que devo respeitar, temer e amar como Deus, sem o ver, que nada se preocupa comigo e que devo honrar; de quem me devo esconder e que nem se digna espiar-me; que me dá somente o seu nome para usar de longe, como se dá a uma terra abandonada?”
“Rosette: Senhora, eu tenho um irmão dono de uma bela quinta na Normandia, o qual repete sempre que quando não se cultiva uma terra, não se deve ter direito nem sobre as suas flores nem sobre os seus frutos.”….
CenaXII: A Duquesa (para o Duque, erguendo-se, enfurecida) : Senhor Duque…eu não percebo mais nada, nem das vossas ideias, nem dos vossos sentimentos, nem da minha existência, nem dos vossos direitos, nem dos meus; não serei talvez mais do que uma criança! talvez tenha sido sempre enganada. Dizei-me o que sabeis da vida real do mundo. Dizei-me porque é os usos são contra a religião e o mundo contra Deus. Dizei-me se a nossa vida tem ou não razão de ser; se o casamento existe ou não; se sou vossa mulher, porque é que vós nunca mais me vistes, e porque é que não sois censurado por isso; se os juramentos são sérios, porque o não são para vós; se tendes e eu própria também, o direito ao ciúme. (…)
Mas o Duque revelar-se-á em toda a magnanimidade e tolerância de quem tem iguais pecados secretos, deixando a mulher liberta do seu medo, “quitte pour la peur”.
Nos nossos tempos, já tudo se faz mais às claras e até os casais se separam em amizade e desportivamente, “numa boa”, para bem dos filhos, que beneficiam das novas relações dos pais, por vezes mesmo em lucrativos negócios de chantagem disputadora de afectos.
O ciúme é, todavia, causador de muita atitude vingativa, já mesmo nos tempos do Eurípedes, que pôs Medeia a matar os filhos que tivera de Jasão, o primeiro navegador marítimo de que há memória, na conquista do velo de ouro. Afinal, até fora Medeia que, apaixonada por ele, com as suas artes mágicas o fizera conquistar o tal velo que pertencia a seu pai, o rei da Cólchida. Não, não fora Jasão, nem nenhum dos seus argonautas que o conseguira. Fora ela, Medeia, que sabia que por trás dum grande homem está sempre uma grande mulher. E ele atraiçoara-a, amando outra, por isso se vingou atrozmente.
Estas histórias até provam que o segundo sexo também é relevante na condução do mundo. Mas nunca, como hoje, foi tão grande a diferença entre os dois sexos, apesar dos direitos femininos conquistados.
A menos que os grandes escândalos financeiros da nossa e outras praças, geralmente praticados, na actualidade, pelos homens - o primeiro sexo, o do prestígio, das conquistas, das escroquerias - tenham as suas, não medeias mas ninfas a manobrar por trás, como já se vira dantes e se vê ainda a cada passo. Daí que a Simone de Beauvoir não precisa de se preocupar mais, lá onde a eternidade a imortaliza, nem com as mulheres nem com as políticas de chavascal. “Tout va bien qui finit bien.”
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