quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

As fitas da nossa auto-estima


Achei estranho que a minha amiga não aparecesse com uma expressão mais prazenteira, pois, tal como eu, escutara um pouco o que uma senhora ainda bastante jovem exprimira ontem no Portugal no Coração à Tânia e ao Baião sobre a necessidade de cultivar a alegria no nosso país, que anda a murchar de pasmo. Até comentámos que iguais propósitos de difusão da gargalhada devem ter estado na origem dos invólucros de algumas saliências nas paredes exteriores dos prédios, colocados por pessoas também defensoras da alegria, entre os quais dois à porta do nosso café matinal, feitos de plásticos e laçarotes berrantes, a fim de elevar o moral, diz-se - não sei se o dos frequentadores se o dos donos do café, que verdadeiramente precisariam de mais frequentadores e de maior calibre consumista do que nós, que nos limitamos a modesta biquita  pois já vimos matabichadas de casa, graças ao atavismo que nos prende aos costumes da nossa ancestralidade comensal em  família.

Já tínhamos, aliás, comentado os plásticos e as fitas - e também os laçarotes nas árvores  que se diz que ali são colocados no mesmo objectivo jubiloso - como coisa parola própria do nosso horizonte espiritual provinciano.  Mas  o discurso da socióloga, ou psicóloga, ou talvez  mesmo astróloga, no “Portugal no Coração”, deixou-nos murchas de todo. De enfado.

A minha amiga ainda tentou entender as razões da senhora entrevistada e a anuência dos simpáticos entrevistadores com a justificação de que somos considerados o povo mais triste dentre os povos europeus, mas eu achei que o que nos torna tristes é a insegurança da nossa modéstia cultural, de povo que viveu sempre na apatia de um sol preguiçoso, geralmente mal governados por reis ávidos, numa sociedade de classes, com um povo escravizado, uma nobreza parasita e fútil, um ensino  de orientação jesuítica desligado das conquistas culturais e técnicas dos povos europeus, sempre na cauda de todos, ao contrário do que afirma Pessoa, que põe no seu país o rosto da Europa fitando um além de valentia, é certo - embora os olhos se tenham fixado paradoxalmente na Grécia - mas de uma ambição de posse que não se concretizou pelo desenvolvimento cultural e social como no resto da Europa.

E hoje, que não sabemos para onde vai um ensino que grande parte dos alunos despreza, com a conivência dos adultos, hoje, em que parece não haver regras nem respeito por coisa alguma, em que se permite que os meninos comecem a beber cedo álcool, em que a droga impera, em que os acidentes na estrada provêm de todos esses factores e sobretudo da falta de consciência cívica, em que a justiça falha e a corrupção alastra impune, falar do cultivo da alegria ou tentar inspirá-la com toscos artifícios de enfeites de bairro, não parece sério nem eficaz.

Porque a alegria não resulta da gargalhada, nem a gargalhada é consequência desta. A alegria é um estado de alma que nasce do amor e da convicção de que a nossa vida tem sentido, sentido que se vai obtendo com o conhecimento e a educação, com o respeito por si e pelos outros.

Não temos motivos para a tal gargalhada de felicidade, num mundo a desfazer-se, entre nós, no pasmo e na desesperança, mas lá fora, também, na tropelia de violências e desacatos igualmente animalescos, exceptuado, naturalmente, tudo o que de bom existe em toda a parte.

Não somos más pessoas. Criámos bancos nos jardins, onde os velhotes apanham o seu sol, solitariamente ou com algum amigo, raramente lendo, desinteressados, blocos graníticos de vidas a extinguir-se. Mas ultimamente até os deixamos aparecer mortos nas suas casas de solidão.

Um país endividado assustadoramente, um governo que o quer desendividar, mas manietado sempre pelos que, tendo anteriormente garantido que o aumento da miséria e do desemprego ia continuar de forma atroz, preferem condenar agora as acções desse governo, a dar-lhe margem para cumprir como promete, sempre emperrando, em auto-saliência de sabedoria que também não provoca alegria, embora por vezes mereça gargalhada de desprezo.

Entretanto, a minha amiga falou na gente hospitalizada  por causa destas tosses e gargantas arranhadas como a nossa, presentemente, de alergia a qualquer  bactéria ou vírus talvez provenientes da falta de chuva, esta sendo mais uma calamidade a acrescentar às outras, de obstáculo à alegria recomendada pelos animadores psicológicos.

E a minha amiga conclui, escandalizada:

- Olha-me esta! Só nos faltava a bactéria!






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