«Língua
e cidadania», é mais uma bela lição de Vasco Graça
Moura, saída no DN Fórum em 30 de Maio, retomando a sua incansável
análise dos efeitos perniciosos do Acordo Ortográfico sobre as gerações futuras,
e o seu apelo para a reflexão das gerações presentes que o promoveram e o
utilizam, no desprezo pelo bom senso e no desrespeito pelo significado da sua
língua como valioso veículo cultural identificador de uma origem comum a outros
povos europeus – característica que não tira minimamente o sono aos fautores e
seguidores do dito Acordo.
Entende
Graça Moura que «Há uma relação importante entre língua e cidadania. Do
seu correcto entendimento também resulta uma maior eficácia no combate à crise
que o país atravessa.»
Essa
asserção, por justa que seja, não nos diz respeito, todavia, desligados que
estamos, não da crise mas de consciência de cidadania, há tanto tempo já, que o
cepticismo nos não deixa crer em medidas de eficácia para esse combate, por
conta de um qualquer conceito de correcção linguística obsoleta.
“Portugal,
para subsistir enquanto país com uma fisionomia característica e um nível digno
de independência – muito embora os aspectos conceptuais ligados a este termo
sejam cada vez mais problemáticos – carece de reformular por completo as suas
políticas de educação e de reinventar a sua relação com a cultura.»
De tal modo
problemáticos, de facto, que são os próprios governantes que se esmeram em
boicotar tais desígnios de digna independência.
«Uma
das dimensões em que o problema se coloca tem a ver com a chamada herança
cultural, conjunto de elementos que permitem a um determinado grupo
reconhecer-se como portador de uma identidade própria e comunicar ao longo do
tempo. Essa herança cultural passa por muitos factores, e em especial pela
língua, pelo património material e imaterial, pelos costumes e tradições, pela
história e e pela geografia… Dela decorrem consequências importantes para todos
os aspectos da vida política, social e económica.»
Creio que
V.G.M. se exprime em termos genéricos aos factores da herança, aplicáveis aos
países dignos de o ser. De facto, os factores históricos, geográficos,
linguísticos, deixaram de ter sentido entre nós. Restam-nos os costumes e as
tradições, e o património material referente às comezainas, ao artesanato, às marchinhas, pois o nosso património
imaterial vai ficando cada vez mais em levitação, confinado aos estudos
magistrais dos professores universitários, estudos que, felizmente, a Internet
nos vai revelando parcialmente, ou os livreiros empenhados, ou os media, ou os
artistas da nossa dimensão…
“Toda
a gente sabe que, actualmente, há um fosso muito acentuado entre os
portugueses, sobretudo os mais jovens, e as componentes principais integradoras
dessa herança.
«No
que à língua diz respeito, os programas
escolares não têm contemplado nas últimas décadas o contacto exigente e variado
com os grandes testemunhos da nossa língua ao longo da história, que são os
veiculados pela literatura.»
Relativamente
a este último parágrafo, todavia, custa-me a aceitar a drástica asserção
relativamente aos programas de literatura, pelo menos aqueles que foram
leccionados nos anos em que leccionei – de 76 a 93. Com efeito, os manuais de
literatura portuguesa eram, embora não na sua totalidade, um festival de textos
dos escritores portugueses acompanhados por propostas de leitura, por textos de
confronto, por textos didácticos e indicações várias, espécies de didascálias
de orientação, não de actores mas dos alunos, que dificilmente deixariam de
enriquecer docentes e discentes. Bem superiores se mostravam às antologias dos
meus tempos de aluna, circunscritas aos textos dos autores, o que me fez ficar
para sempre grata aos professores de crítica literária e aos professores
organizadores dos manuais actuais. Não julgo que os objectivos tenham mudado
grande coisa de então para cá. O que se tem acentuado é a desordem mental e o
mau comportamento dos alunos proveniente dos factores de laxismo, impertinência e indisciplina por parte dos
alunos, menos rigor na exigência, com permissividade ao erro na orientação
docente. Aliás, V.G.M. o refere na sua análise:
«As gerações
mais novas são confinadas a um pragmatismo comunicacional empobrecedor e
rudimentar cujas consequências nos vão sair muito caras.
«O
sistema tende a incorporar o erro gramatical, legitimando-o, e a aceitar o
empobrecimento lexical e sintáctico.
«A
língua, numa visão cara a George Steiner, é um instrumento de conhecimento e
apreensão do mundo. Esse instrumento
está permanentemente irisado de uma multiplicidade de valores afectivos,
estéticos, sociais, culturais, etc., sedimentados pela memória e pela história
colectivas, pelo uso transgeracional, pelos autores, pelas características dos
lugares onde é falada, por muitos outros factores.
«Disso
não se pode fazer tábua rasa. Há quem não encontre solução para as dificuldades
de definição dessa norma-padrão, mesmo quando se diz reconhecer a conveniência
dela, de modo a ser possível circunscrever o que é “correcto” e o que é
“incorrecto”. Afinal, parece que não se quer legitimar essa distinção pelo
próprio processo evolutivo da língua, num reducionismo pretensamente lógico que
só pode ser empobrecedor e que não compreende que as línguas não se regem
propriamente pelas regras da lógica formal.
«Uma
língua transporta grande parte de uma visão do mundo e de uma cultura. É pela
boa aprendizagem de uma língua que se torna possível a formulação eficaz do
pensamento abstracto nas suas implicações filosóficas, matemáticas,
científicas. E é por aí que se chega ao conhecimento e ao progresso.»
Destes
argumentos pertinentes partiu a justificação do título do meu texto -“Um cidadão doutra cidade” - subentendendo
a homenagem à seriedade e elegância expositiva de um estudioso e de um
português, que, contra ventos e marés, insiste em defender corajosamente –
outros dirão ingenuamente - uma teoria há muito derrotada pelos verdadeiros
dilapidadores do sentido de pátria, repoltreados comodamente e brincalhonamente
na pilotagem dos destinos nacionais.
«Por
isso é imperativo que seja reabilitada a relação dos portugueses com a língua
que falam e com a cultura que se exprime através dela.
«É
claro que isto implica, de par com a responsabilidade da escola e das famílias,
a continuidade de plenas condições de liberdade e expressão, de afirmação da
individualidade criadora, de respeito, de tolerância e de dignidade da criação
cultural. E ainda, que Portugal possa continuar a participar num processo
interactivo, e sem estanquicidades, de elaboração da riqueza cultural da
Europa, bem como de preservação, fruição, divulgação e partilha da herança
cultural europeia.
«A
cultura portuguesa não pode deixar de ser parte dessa realidade em que se
inscreve, de uma herança cultural europeia, entendida na diversidade das suas
expressões e na conjugação das suas matrizes principais, como, entre outras, a
antiguidade grega e latina e a judeo-cristã, o desvendamento do mundo e a
aventura epistemológica do século XVI, o Século das Luzes, o Romantismo, o Realismo,
os Modernismos, tudo o que configurou a Europa ao longo do tempo e alastrou, a
partir dela, para outras zonas do mundo.
«Tratando-se
da cultura portuguesa, temos de ser nós, portugueses, os primeiros a zelar por
esse estatuto e o processo correspondente passa por uma grande atenção ao que
vai acontecendo no plano da escola, da família e das instituições que se preocupam
com a formação e a aprendizagem dos jovens e com os valores insubstituíveis da
cultura.»
Palavras de
uma seriedade elegante, mas paulatinamente incompreensíveis, que têm como efeito um cada vez maior
afastamento do seu sentido, dada a cegueira de entendimento dos responsáveis
pelo desmoronamento linguístico da nossa idiotia.
Acode-nos o
dito “Ninguém” do medroso mas astuto Ulisses desmascarando junto de
Polifemo a sua identidade, para que os outros ciclopes, chamados a defender
este, pelos seus gritos de cego ferido no único olho pelo “sábio grego”, desprezassem
o apelo, já que “Ninguém” o perturbava.
Como
Ulisses que, por astúcia se apelidou “Ninguém”, por astúcia humilde nos fizemos
“Ninguém” junto do “bruto Polifemo” poderoso. Mas enquanto o “Ninguém” salvou
Ulisses dos ciclopes iludidos por um determinante indefinido negativo, o “Ninguém”
da nossa curvatura espinal corresponde à exacta medida da nossa cada vez maior e
vil impotência.
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