Falei
excitada na notícia que lera no DN sobre uns médicos e companhia que ganharam
milhões à custa de receitas médicas de falcatrua, e logo a minha amiga atirou
com ímpeto: “Cabeceiras de Basto”.
Julguei que
se referia à carta que começa assim “Como eu vi correr pardaus / Por
Cabeceiras de Basto”. que o nosso sisudo Sá de Miranda enviara a “António
Pereira, Senhor de Basto, quando se partiu para a Corte co’a casa toda”,
- o que é muito curioso pela referência toponímica, tal como a “Rua do
Alecrim”, subida “a trote”, pelos negros cavalos que “a espuma
veste” e incongruentemente “velozes como a peste” do nosso brincalhão
Cesário Verde.
Mas a minha
amiga nem se deteve a pensar na minha interrupção, de uma erudição debruçada
sobre as nossas toponímias livrescas, porque retomou, após a localização no
espaço minhoto:
-“Não faço ideia como se faz uma
coisa desse tamanho – 50 milhões de euros de burla ao Estado! Então ninguém
sabia, ninguém deu por isso? Os doentes nem sabiam que o seu nome andava lá… Acho
incrível!
- Parece
que também utilizaram receitas para falecidos… - disse eu, não muito segura de tal
enormidade, mas admitindo que eles poderiam justificar sempre as receitas póstumas
com o grau elevado de afeição por aqueles, em extremos de luta assanhada contra
o infausto fim.
- A
família desta gente – e é uma rede que vai de Cabeceiras de Basto a Pombal, com
um décimo indivíduo como elemento de ligação entre médicos, laboratórios,
armazenistas de medicamentos e não sei que mais… - que não deve saber disto, a
vergonha por que têm de passar! – considerou a minha amiga, sempre
preocupada com a reputação das famílias inocentes dos prevaricadores, o que atesta a sua boa
formação moral, de crença nos bons costumes das famílias em geral, presa em
parte ao ponto de vista do Rousseau com a sua teoria mais que batida do “Bom
Selvagem” inocente, corrompido pela sociedade dos maus costumes.
Mas eu
respondi que essa era mais uma das trafulhices em que somos useiros e vezeiros,
e não são só aqueles que gostamos de atacar, porque mais bem sucedidos em
termos quantitativos. O país dos brandos costumes não era mais do que um país
de branda formação moral e espiritual, e um exemplo significativo dessa
característica comportamental de embrutecimento ambicioso, podê-lo-íamos localizar
no talentoso falsário Alves dos Reis, que larga escola criaria, de elementos de
maior ou menor alcance, mas igualmente escapando às malhas da justiça.
Aliás, tudo
isso começou com a ambição desenfreada, surgida com os Descobrimentos, que por
cá espalhavam os “pardaus” de Goa, e a fuga para a cidade e para o
Oriente, na mira da tal canela, como explica Sá de Miranda no breve excerto da
sua Carta ao Senhor de Basto, no sentimento passadista de desilusão pela
corrupção dos costumes e pelo êxodo dos campos:
«Como eu vi correr pardaus
Por Cabeceiras de Basto,
Crescerem cercas e o gasto,
Vi, por caminhos tão maus,
Tal trilha e tamanho rasto,
Logo os meus olhos ergui
À casa antiga e à torre,
E disse comigo assi:
Se Deus nos não vale aqui,
Perigoso imigo corre.
Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa.
E que algum embique e caia
(Afora vá mau agouro!)
Falar por aquela praia
Da grandeza de Cambaia,
Narsinga das torres d’ouro.
Ouves, Viriato, o estrago,
Que vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e os lumes,
Tudo cheira: eu óleos trago;
Vêm outros, trazem perfumes.
E ao bom trajo dos pastores
Com que saíste à peleja
Dos Romãos tão vencedores,
São mudados os louvores:
Não há quem t’haja enveja.
Entrou, há dias, peçonha
Clara pelos nossos portos,
Sem que remédio se ponha:
Uns dormentes, outros mortos,
Alguém polas ruas sonha.
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quase a natureza:
Medo hei de novo à riqueza
Que nos venha a cativar…..»
Por Cabeceiras de Basto,
Crescerem cercas e o gasto,
Vi, por caminhos tão maus,
Tal trilha e tamanho rasto,
Logo os meus olhos ergui
À casa antiga e à torre,
E disse comigo assi:
Se Deus nos não vale aqui,
Perigoso imigo corre.
Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa.
E que algum embique e caia
(Afora vá mau agouro!)
Falar por aquela praia
Da grandeza de Cambaia,
Narsinga das torres d’ouro.
Ouves, Viriato, o estrago,
Que vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e os lumes,
Tudo cheira: eu óleos trago;
Vêm outros, trazem perfumes.
E ao bom trajo dos pastores
Com que saíste à peleja
Dos Romãos tão vencedores,
São mudados os louvores:
Não há quem t’haja enveja.
Entrou, há dias, peçonha
Clara pelos nossos portos,
Sem que remédio se ponha:
Uns dormentes, outros mortos,
Alguém polas ruas sonha.
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quase a natureza:
Medo hei de novo à riqueza
Que nos venha a cativar…..»
Pude
assim provar à minha amiga que a nossa pecha de tentação pelos pardaus e afins é
antiga, merecendo os reparos de um ilustre doutor em leis e poeta de talento,
que iniciaria o Renascimento em Portugal, com as “riquezas literárias” que importou de Itália, de modo nenhum nisso se irmanando com o pastor
Viriato da sua preferência moral, pela valentia e modéstia de primeiro lusíada
que esse fora.
Mas
a minha amiga também não se dá com os jeitos dos Viriatos de surrão e cajado,
além de que aprecia devidamente o caril e a canela preenchedores dos gozos
gustativos de qualquer ser civilizado, o qual já nem se lembra de quem foram os
primeiros importadores dessas especiarias e outras que ocupam posições privilegiadas
nos supermercados do nosso progresso.
E
retomámos o tema do desfalque ao Estado por conta da burla de uns vigaristas que
se utilizavam de receitas desnecessárias para obter as altas comparticipações
dos Serviços Estatais de Protecção Social.
E
a minha amiga concluiu que talvez esses fossem responsáveis pela falta, nos
laboratórios portugueses, de um determinado medicamento para as supra-renais do
seu marido, medicamento que até já se viu obrigada a mandar vir de Espanha.
Mas
eu respondi que esse medicamento nem era dos mais rentáveis para a trupe,
também não devíamos acusar tão indiscriminadamente assim. Sem provas confortáveis.
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