Faz hoje
anos, a minha irmã, e recordo-a no meu blogue, para recordar igualmente o meu
pai, que um dia lhe mandou, pelos seus oito anos, uns versos, como a mim me
mandaria posteriormente pelos meus sete, versos que transcrevi no texto sobre
os sete anos da minha neta Mafalda. Em tempos fiz um livro que a Sinapses
colocou na Internet, mas há muito que o não encontro, não sei se foi retirado.
Nele punha em destaque a figura do meu pai, como pessoa invulgar na sua
elegância moral, na sua capacidade intelectual e no seu amor pela família.
Durante seis anos viveu em Moçambique longe de nós, a quem, numas férias à
Metrópole, deixou, numa aldeia da Beira,
com receio da guerra que entretanto eclodira no mundo. De Moçambique nos
escrevia, e ia acompanhando a nossa formação escolar com os belos livros
enviados por barco, de vistosas imagens que nos iam marcando o espírito. Por
vezes eram em verso as cartas, uma delas escrita em Ressano Garcia, em 7 de
Dezembro de 1941. O seu conteúdo pedagógico, de uma seriedade orientadora démodée,
faria rir hoje a maioria dos pais, a totalidade dos filhos. Mas são marca de
uma época, em que o respeito pela disciplina não significava ainda o boicote à
criatividade e ao desenvolvimento livre da personalidade:
«Minha
querida Fernanda:
Como
passas, filha minha?
A
Mamã e a Bertinha?
E a
Avozinha como anda?
Recebi
a tua carta
E tão
contente fiquei,
Tantos
beijinhos lhe dei
Que
nem tos posso contar.
Chegou-me
pelo “Angola”
E, em
paga destas notícias,
Vou-te
mandar mil carícias,
Mil
beijos te vou mandar.
Teu
Papá está de saúde
Cada
vez mais teu amigo;
Pois
se até sonha contigo…
Queres
ouvir um lindo sonho?
Sonhei…
ou pensei que via
Num
jardim entre flores,
Lindas,
de todas as cores,
Teu
rosto meigo e risonho.
E que
brincava contigo
E que
ao peito te apertava
Como
no tempo antigo
E
contigo assim falava:
-
Gostas muito da mamã?
Gostas
de a ver contente?
-
Gosto sim, pois, não sabias?
- Sei
que logo de manhã
Vais
alegre e sorridente
Beijá-la,
dar-lhe os bons dias.
-E
depois? – Vou preparar-me
P’ra
chegar cedo à escola
Com
as lições bem sabidas.
Já
sei vestir-me e lavar-me
E
arrumar o meu quarto
Como
as meninas crescidas.
-
Gostas muito de estudar?
-
Muito, pois quero aprender
A
ler, escrever, contar…
Quero
ser uma Mulher!
- E
quando voltas da escola
Que
fazes? - Os meus deveres.
Não
quero meus afazeres
Deixar
nunca p’r’amanhã
Quando
posso hoje fazê-los.
Depois
é que vou brincar.
Também
gosto de ajudar
A
avozinha e a mamã.
- Os
teus livros e cadernos
Trata-los
bem, não é assim
- Penso
que, quanto a mim,
Não
há muito que dizer.
Sempre
limpos, sem borrões…
Só às
vezes, quando escrevo,
Carrego
mais do que devo
Na
pena… mas é sem querer.
-
Muito bem, gostei de ouvir-te;
Estou
contente contigo
E a
Mamã pensa comigo;
Mas
sempre te digo mais:
O
trabalho, minha filha,
Traz
consigo a recompensa.
Sê
boa, trabalha e pensa
Dar
alegria a teus pais.
Aqui
tens meu lindo sonho
Que
nunca, nunca tem fim.
Se é
lindo sonhar assim,
Mais
lindo assim é viver.
Ele
será verdadeiro
Conforme
a tua vontade.
Mil
beijos, muita saudade
De
alguém que muito te quer.»
Mas foi no
ano seguinte – 8 de Junho de 1942 - que a carta de parabéns chegou, na
sua letra impecável, em papel
branco, contrariamente ao papel azul das cartas normais:
«À Maria Fernanda
(no dia dos
seus anos)
Já oito anos, Miúda?!!!
Um anjo quase mulher!
Voa o tempo, tudo muda…
Fazes-me velho a valer.
Mas que importa? Ao sorriso
Da tua formosa idade
Formou Deus o Paraíso
Da minha felicidade.
Que me importa se até quando
Da vida é triste a lembrança,
Vejo um sorriso brincando
Nos teus lábios de criança?
Saudando a risonha aurora
Que teu futuro anuncia
Longe de ti, muito embora,
Vou festejar o teu dia.
De minh’alma as flores mais belas
P’ra ti as tenho guardado;
Cobrir quero hoje com elas
O teu retrato adorado.
Lindas flores quem me dera
Mandar-tas com estas linhas,
Na brisa da primavera
No voo das andorinhas.
Não posso. Aos meus desejos
Que é dela, a realidade?
P’ra ti só tenho mil beijos
Mil beijos, muita saudade.
Todo o amor, todo o carinho
Que te dedico aqui vai;
Aqui tens todo inteirinho
O meu coração de pai.
Guardando afectos divinos,
Dentro dele hás-de encontrar
Dois corações pequeninos
Muito juntinhos, a par.»
Ficou-se
pelo caminho, o meu pai, éramos nós bem mais novas, deixou-nos, como legado, a
minha mãe, que vai rodando com o tempo, entregue aos nossos cuidados de filhas,
agora na idade com que ele partiu.
E aquela
filha modelo, ajudada a modelar por um pai orientador e por uma mãe sempre
cumpridora, na coesão familiar que foi a vida na nossa infância e adolescência,
é a mesma pessoa que modelou o seu próprio mundo na elegância que criou, é a
mesma filha modelo hoje, companheira habitual da mãe, nas referências aos seus
movimentos diários, nas conversas repetidas, nos cuidados permanentes. Formamos
uma boa equipe - com o auxílio do genro
Vitorino - em volta do legado paterno. Mas eu sou mais rebelde nas boas
maneiras, a responsabilidade maior pesa nos ombros da minha irmã, segundo a orientação
paterna responsabilizante de décadas. Aliás, sempre a minha irmã foi oráculo na
nossa casa, os seus olhos azuis sempre se impondo, no jeito sereno de uma
atitude espiritual que a isolou na superioridade da sua loira presença.
Longa vida,
Nandita, para nós ambas. Para todos os efeitos, uma mãe de 105 anos e sempre a
caminho, é um deslumbramento. Os docemente crentes dirão - uma bênção. Ainda
quando se exibe nas histórias que conta repetidamente ou nos versos que canta,
em frequentes novas versões. Se nos anteceder na partida, como esperamos,
aterradas com a outra eventualidade que a tornaria totalmente infeliz, a
saudade de uma presença tão viva e atenta custará a ultrapassar.
Precisamos,
apenas, de bons ossos e de bons músculos. De alguma paciência também.
Muitos
parabéns para ti. Para ti também as flores que não deixarás de evocar, vindas da
bênção mágica desse pai cuja campa todas as semanas enfeitas, a harmonia e a
elegância como parâmetro essencial do teu viver, os mortos na sua casa florida,
como a dos vivos, a tua:
“De minh’alma
as flores mais belas
P’ra ti as tenho guardado;
Cobrir quero hoje com elas
O teu retrato adorado.”
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