sexta-feira, 8 de junho de 2012

Tempo de irmã, tempo de pai


Faz hoje anos, a minha irmã, e recordo-a no meu blogue, para recordar igualmente o meu pai, que um dia lhe mandou, pelos seus oito anos, uns versos, como a mim me mandaria posteriormente pelos meus sete, versos que transcrevi no texto sobre os sete anos da minha neta Mafalda. Em tempos fiz um livro que a Sinapses colocou na Internet, mas há muito que o não encontro, não sei se foi retirado. Nele punha em destaque a figura do meu pai, como pessoa invulgar na sua elegância moral, na sua capacidade intelectual e no seu amor pela família. Durante seis anos viveu em Moçambique longe de nós, a quem, numas férias à Metrópole, deixou, numa aldeia da  Beira, com receio da guerra que entretanto eclodira no mundo. De Moçambique nos escrevia, e ia acompanhando a nossa formação escolar com os belos livros enviados por barco, de vistosas imagens que nos iam marcando o espírito. Por vezes eram em verso as cartas, uma delas escrita em Ressano Garcia, em 7 de Dezembro de 1941. O seu conteúdo pedagógico, de uma seriedade orientadora démodée, faria rir hoje a maioria dos pais, a totalidade dos filhos. Mas são marca de uma época, em que o respeito pela disciplina não significava ainda o boicote à criatividade e ao desenvolvimento livre da personalidade:


«Minha querida Fernanda:
Como passas, filha minha?
A Mamã e a Bertinha?
E a Avozinha como anda?

Recebi a tua carta
E tão contente fiquei,
Tantos beijinhos lhe dei
Que nem tos posso contar.
Chegou-me pelo “Angola”
E, em paga destas notícias,
Vou-te mandar mil carícias,
Mil beijos te vou mandar.

Teu Papá está de saúde
Cada vez mais teu amigo;
Pois se até sonha contigo…
Queres ouvir um lindo sonho?
Sonhei… ou pensei que via
Num jardim entre flores,
Lindas, de todas as cores,
Teu rosto meigo e risonho.

E que brincava contigo
E que ao peito te apertava
Como no tempo antigo
E contigo assim falava:

- Gostas muito da mamã?
Gostas de a ver contente?
- Gosto sim, pois, não sabias?
- Sei que logo de manhã
Vais alegre e sorridente
Beijá-la, dar-lhe os bons dias.

-E depois? – Vou preparar-me
P’ra chegar cedo à escola
Com as lições bem sabidas.
Já sei vestir-me e lavar-me
E arrumar o meu quarto
Como as meninas crescidas.

- Gostas muito de estudar?
- Muito, pois quero aprender
A ler, escrever, contar…
Quero ser uma Mulher!

- E quando voltas da escola
Que fazes?  - Os meus deveres.
Não quero meus afazeres
Deixar nunca p’r’amanhã
Quando posso hoje fazê-los.
Depois é que vou brincar.
Também gosto de ajudar
A avozinha e a  mamã.

- Os teus livros e cadernos
Trata-los bem, não é assim
- Penso que, quanto a mim,
Não há muito que dizer.
Sempre limpos, sem borrões…
Só às vezes, quando escrevo,
Carrego mais do que devo
Na pena… mas é sem querer.

- Muito bem, gostei de ouvir-te;
Estou contente contigo
E a Mamã pensa comigo;
Mas sempre te digo mais:
O trabalho, minha filha,
Traz consigo a recompensa.
Sê boa, trabalha e pensa
Dar alegria a teus pais.

Aqui tens meu lindo sonho
Que nunca, nunca tem fim.
Se é lindo sonhar assim,
Mais lindo assim é viver.
Ele será verdadeiro
Conforme a tua vontade.
Mil beijos, muita saudade
De alguém que muito te quer.»


Mas foi no ano seguinte – 8 de Junho de 1942 - que a carta de parabéns chegou, na sua letra impecável, em papel branco, contrariamente ao papel azul das cartas normais:


«À Maria Fernanda
 (no dia dos seus anos)

            Já oito anos, Miúda?!!!
Um anjo quase mulher!
Voa o tempo, tudo muda…
Fazes-me velho a valer.

Mas que importa? Ao sorriso
Da tua formosa idade
Formou Deus o Paraíso
Da minha felicidade.

Que me importa se até quando
Da vida é triste a lembrança,
Vejo um sorriso brincando
Nos teus lábios de criança?

Saudando a risonha aurora
Que teu futuro anuncia
Longe de ti, muito embora,
Vou festejar o teu dia.

De minh’alma as flores mais belas
P’ra ti as tenho guardado;
Cobrir quero hoje com elas
O teu retrato adorado.

Lindas flores quem me dera
Mandar-tas com estas linhas,
Na brisa da primavera
No voo das andorinhas.

Não posso. Aos meus desejos
Que é dela, a realidade?
P’ra ti só tenho mil beijos
Mil beijos, muita saudade.

Todo o amor, todo o carinho
Que te dedico aqui vai;
Aqui tens todo inteirinho
O meu coração de pai.

Guardando afectos divinos,
Dentro dele hás-de encontrar
Dois corações pequeninos
Muito juntinhos, a par.»


Ficou-se pelo caminho, o meu pai, éramos nós bem mais novas, deixou-nos, como legado, a minha mãe, que vai rodando com o tempo, entregue aos nossos cuidados de filhas, agora na idade com que ele partiu.

E aquela filha modelo, ajudada a modelar por um pai orientador e por uma mãe sempre cumpridora, na coesão familiar que foi a vida na nossa infância e adolescência, é a mesma pessoa que modelou o seu próprio mundo na elegância que criou, é a mesma filha modelo hoje, companheira habitual da mãe, nas referências aos seus movimentos diários, nas conversas repetidas, nos cuidados permanentes. Formamos uma boa equipe -  com o auxílio do genro Vitorino - em volta do legado paterno. Mas eu sou mais rebelde nas boas maneiras, a responsabilidade maior pesa nos ombros da minha irmã, segundo a orientação paterna responsabilizante de décadas. Aliás, sempre a minha irmã foi oráculo na nossa casa, os seus olhos azuis sempre se impondo, no jeito sereno de uma atitude espiritual que a isolou na superioridade da sua loira presença.

Longa vida, Nandita, para nós ambas. Para todos os efeitos, uma mãe de 105 anos e sempre a caminho, é um deslumbramento. Os docemente crentes dirão - uma bênção. Ainda quando se exibe nas histórias que conta repetidamente ou nos versos que canta, em frequentes novas versões. Se nos anteceder na partida, como esperamos, aterradas com a outra eventualidade que a tornaria totalmente infeliz, a saudade de uma presença tão viva e atenta custará a ultrapassar.

Precisamos, apenas, de bons ossos e de bons músculos.  De alguma paciência também.

Muitos parabéns para ti. Para ti também as flores que não deixarás de evocar, vindas da bênção mágica desse pai cuja campa todas as semanas enfeitas, a harmonia e a elegância como parâmetro essencial do teu viver, os mortos na sua casa florida, como a dos vivos, a tua:

“De minh’alma as flores mais belas

P’ra ti as tenho guardado;

Cobrir quero hoje com elas

O teu retrato adorado.”




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