O texto do Dr. Luís Soares de Oliveira, “Vaticano II, a
revolução que veio de cima”, publicado no blog “A bem da Nação” mostra
como a Igreja se foi actualizando, ao longo da última metade do século XX, em
termos de cooperação com os movimentos de emancipação dos povos, a ponto de desprezar,
na linha de outros povos vomitando impropérios contra o Estado Português
colonialista, o país ínfimo no seu núcleo, dilatado em zonas da sua expansão
marítima feita outrora.
Soares de Oliveira revela a evolução da Igreja católica a
partir do Concílio Ecuménico Vaticano II (1963/65), tendo por objectivo “actualizar
uma Igreja multissecular”, sob a égide do Papa João XXIII (Ângelo Roncali,
1959/1963):
“A Igreja decidia pois libertar-se de peias e compromissos para
crescer no domínio espiritual e realizar a sua missão à escala mundial. Este
sentido foi claramente confirmado quando a assembleia dos Bispos rejeitou in
limine todas as propostas que cheiravam a dogmatismo e autoritarismo2. Apelava-se agora mais
para a consciência do que para a obediência. Condenado estava pois o apoio ao
nacionalismo que caracterizara o posicionamento político da Santa Sé no
pontificado de Pio XII. A Concordata3 estabelecida em 1940 com
o Governo Português estava em perigo.”
Outro papa se lhe seguiu – Paulo VI (1963/78) – empenhado
na mudança, e contra ele escrevi, em texto de 1974, "A
Voz de Moçambique é que quis ser mais papista que o papa, com certeza, embora o
papa presentemente também revele entusiástico apoio aos terroristas, numa
democrática e progressista interpretação do cristianismo: "Matai-vos uns
aos outros..." (“Pedras de Sal”).
Mas foi a referência à Concordata que me fez recordar
dois textos que escrevi em 73 em “Prosas Alegres e Não”, sobre a
indissolubilidade matrimonial dos casamentos religiosos, considerando a sua
extinção como algo positivo dos novos tempos, graças à intervenção do Dr.
Salgado Zenha.
Eis os textos escritos dez anos antes:
«Uma lei
arbitrária»
«Pelo recente Inquérito realizado pela “Página da
Mulher”, tivemos a ocasião de observar as diversas reacções à lei da Concordata
estabelecida há uns anos entre o Estado e a Igreja, que não permite o divórcio
entre pessoas casadas religiosamente.
Não se pode afirmar que houvesse unanimidade de
pareceres, dado que defenderam alguns a posição da Igreja – o que se não deve
estranhar num país fervorosamente católico como é o nosso – tendo, entretanto,
outros, desaprovado tal lei.
Exprimem os seus defensores o conceito de que nem o
Estado nem a Igreja impõem o casamento religioso. Quem se casa pela Igreja já
sabe o que o espera no caso de se não vir a entender com o futuro cônjuge. Por
isso, e de acordo com o provérbio “Mais vale prevenir do que remediar”, quem
não se quer arriscar a uma situação futura irremediável, trate de se casar pela
lei civil, simplesmente.
Tudo isso é certo. Quando a gente se casa deve prever
essa hipótese de se não vir a entender com o cônjuge. Mas não prevê de facto.
Nos casamentos de amor – e há-os, tão sinceros como em
todo o sempre – os jovens vão convencidos da perenidade do seu enlevo.
Geralmente são os que mais depressa falham. Porque nos outros casamentos – os
de interesse – e há-os também, e igualmente “sinceros” – o mesmo interesse
mantém a união, salvando-se mais as aparências. Ao passo que o amor é exaltado,
nervoso e exclusivista, depressa redundando em situações menos serenas que
conduzem tantas vezes ao falhanço.
Mas quando se ama, a perspectiva de um futuro
desentendimento está perfeitamente distante do espírito de quem ama. Por isso
de boa vontade se submete ao casamento religioso, talvez um pouco na convicção
de que Deus abençoará assim melhor o lar em formação. Por vezes nem é tanto a
crença religiosa a impulsionadora de tal decisão. Talvez uma questão de
atavismo, um certo respeito pelas tradições familiares, pois que a ideia do
casamento civil choca ainda as convicções paternas, orientadas nos princípios
que a Igreja há pouco ainda seguia, de pouca validade do casamento civil.
Mas a Igreja, que pelos vistos também evolui nos seus
conceitos, deixou de considerar menos válido o casamento civil. Reconhece-o
perfeitamente, já não considerando precitos aqueles que o fazem. Precitos serão
agora os que, casados pela Igreja, se separaram no Tribunal, continuando,
entretanto, ligados indissoluvelmente pelas leis cristãs.
O objectivo da Igreja, ao impor a indissolubilidade
matrimonial, segundo parece, é o de incutir no homem e na mulher a consciência
dos seus deveres conjugais, abstendo-se de todo o egoísmo, cada um procurando
fazer a felicidade do outro. É pena que para tanto seja necessária a força de
uma autoridade superior.
Todos conhecemos casos de indivíduos não religiosos
sabendo manter um decoro na sua vida que não resultou, certamente, dos
preceitos das doutrinas cristãs. A dignidade humana, o respeito por si próprio,
não é, seguramente, a Igreja que os impõe, embora a sua influência possa ser
benéfica.
Já não vivemos na época em que quase só o terror do
Inferno podia contribuir para adoçar as almas. O homem deve tomar consciência
da sua dignidade de homem e das implicações morais daí consequentes. Deve
respeitar-se a si e aos outros pela própria condição de indivíduo pensante e
não porque a Igreja exige que assim o faça.
Por isso ao casar deve saber o que faz e tentar conduzir
a sua vida harmoniosamente. Mas se as circunstâncias forçarem, um casal a
separar-se – e há tantas e tão trágicas por vezes – nenhum organismo deveria
poder impedir que ele o fizesse como se não se tratasse de um ser pensante mas
puramente de um irracional apenas obedecendo a instintos, e como tal castigado.
Porque é desnecessário salientar-se as situações
infelizes resultantes desse impedimento, ultrajantes da dignidade humana e
humilhantes para as crianças que nascem de novos lares não abençoados de Deus
nem aceites dos homens e a quem o Estado não reconhece a legitimidade da
existência.
Resta-nos perguntar apenas: Com que direito, afinal, se
impõem destas leis drásticas aos homens, porque deverão os homens sujeitar-se
a elas, sempre, afinal, dependentes dos diferentes critérios dos que os
governam? Porque é que os que se casaram anteriormente à Concordata puderam
descasar-se, refazer as suas vidas normalmente, aceites pela sociedade, e os
que se casaram posteriormente à Concordata e por idênticos motivos quiseram
igualmente descasar-se, não o puderam fazer da mesma forma?
Esta anomalia e arbitrariedade da lei torna-se por
demais injusta para necessitar de outros comentários.»
Eis o segundo texto – “Casamento e Divórcio” – com
que concorri a um concurso de um jornal lourençomarquino - “Tribuna”, salvo erro – concurso,
naturalmente, ganho por um concorrente africano:
«Não sou apologista do divórcio que entendo só deve
surgir “in extremis”, quando não seja possível outra solução.
Quando as pessoas se casam, raramente o deverão fazer
com a antevisão de uma derrocada futura. Se o casamento é de amor, os jovens
nem se apercebem de que tal amor possa ter um fim. Se é de interesse, as
perspectivas de um fim estão ainda mais distantes, porque esse mesmo interesse
saberá manter a união.
Infelizmente a vida compraz-se em troçar dos homens,
quando não são os homens que a subestimam, a qual, por isso mesmo, se vinga,
apresentando-lhes as situações mais complexas ou as mais irredutíveis.
O dinheiro é, suponho, um dos maiores causadores das
separações, como chamariz de amigos e, como consequência, de uma certa
dissolução e abandono dos costumes mais familiares dos primeiros tempos de
casados. Os amigos, as amigas, mas sobretudo a falta de honra, de respeito
mútuo, o profundo egoísmo humano, a falta de paciência para com as pequenas
fraquezas e, enfim, o enfastiamento que por vezes surge no homem, eterno
insatisfeito e eterno volúvel, supondo encontrar sempre o melhor naquilo que
não possui, eis alguns dos motivadores de situações irremediáveis conducentes
ao divórcio.
Infelizmente, os casados pela Igreja não têm a
possibilidade de se libertarem dos laços que os prendiam, vinculados como ficam
perante as leis religiosas, embora separados de pessoas e bens perante as leis
civis.
“A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”,
afirmou Cristo, expressão sem efeito actualmente,
dada a aliança entre César e Deus.
Há, no entanto, disparidade de situações no capítulo das
legalidades matrimoniais. Com efeito, sendo perfeitamente válido um casamento
apenas civil – até há poucos anos, todavia, objecto de repulsa – não se aceita
o casamento só religioso, donde a conclusão de que o duo Estado-Igreja não
labora em harmonia de direitos.
Na questão de separação é, porém, o Estado que perde
perante a suserania religiosa, dado que a separação legal fica anulada perante
a autoridade suprema da Igreja.
Aliás, bem vistas as coisas, nem Igreja nem Estado, entidades
abstractas e indiferentes, perdem com o caso, pois os verdadeiros atingidos –
na sua dignidade humana, sobretudo, são os homens sujeitos a esse ostracismo.
É desnecessário encarecer as consequências de um acordo
destes, na formação de uma sociedade onde grande parte dos seus elementos vive
em situação de mancebia injustificada, injusta e unilateral, pois que para todos
os efeitos ela não se estende a todos os passos da vida do cidadão ilegítimo,
perfeitamente integrado na sociedade para prestar serviço militar, por exemplo.
Triste exemplo seremos para as gerações vindouras, já
libertas da opressão, e que apontarão sobre nós a vara acusadora, bramando
contra a sujeição humilde de uns e a prepotência mesquinha de outros, causadora
de uma instabilidade e estagnação social inadmissíveis, numa sociedade pretensamente evoluída mas usando ainda
estranhos processos inquisitoriais.
Porque esse “castigo” imposto pela Igreja aos que ousaram
casar religiosamente e depois quiseram desligar-se, não chega a evitar que as
separações se dêem e outras uniões se formem. O homem atinge, em dada altura da
sua vida, e mais ainda se o sofrimento o amadureceu, um estado de espírito de
libertação interior, que o leva a não se impressionar muito com o choque das
opiniões de outros homens iguais a ele. E embora reconheça que fica do outro
lado da barreira no jogo dos convencionalismos sociais, segue os ditames da sua
consciência ou do seu coração, de preferência a sujeitar-se a esses mesmos convencionalismos.
Não me parece, pois, que a dita “repressão” trazida pela
Concordata exerça grande influência sobre o maior ou menor número de divórcios
reais, pois devemos considerar que o divórcio real se deu desde que deixou de
haver amor. Quantos casos se conhecem, de casais separados de facto, mas
conservando perante o mundo as aparências e o prestígio de um casamento válido!
Talvez uma situação dessas cause tantos ou mais traumatismos e perturbações nos
filhos, do que aquela outra em que, separados os pais, aqueles encontram um
ambiente mais honesto e mais são no lar que a mãe ou o pai formou de novo.
E isso – um viver harmónico, sem disputas nem
desamor – é muito mais importante, suponho, do que essa convenção do matrimónio
indissolúvel – que o homem ou a mulher se apressam quantas vezes a dissolver leviana
e impudentemente, sem tomarem em conta um sem-número de factores, de que os
filhos são o factor mais importante.
Indissolubilidade existe se existe amor, sentimentos e
consciência. A falta destes elementos origina a dissolução matrimonial que nenhuma
Igreja nem nenhum Estado poderão evitar, por muitas medidas repressivas que
tomem.
As medidas a tomar de facto, seriam as de uma sã moral,
onde a honestidade, a modéstia, a lealdade, o trabalho consciente, não fossem
palavras vãs que se pudessem incutir aos cidadãos por meio de exemplos reais e
não mostrar-lhes que realmente a desonestidade, a arrogância, a trampolinice, a
calaceirice, a arteirice e o compadrio é que levam o homem ao triunfo e à sua
realização integral.»
(Dizeres verdadeiros ontem, no tempo do império, acentuados
hoje no desfazer do império e quem sabe se da nação que parece desmoronar-se
como um baralho de cartas, em gritaria e ânsia).
À laia de conclusão, para os jovens desinibidos de hoje,
para quem todas estas questões já obsoletas são irrelevantes, e naturalmente
despidas do significado trágico que constituíram para os seus preconceituosos
avós, transcrevo um parágrafo de um texto -“Aborto” - escrito onze anos depois, do livro “Anuário,
Memórias Soltas”:
“O nosso Estado e a nossa Igreja são um Estado e uma
Igreja muito sensíveis, que sempre se interapoiaram, já desde a Santa
Inquisição, em que se queimavam os corpos para defesa das almas e angariação de
bens, já desde a Concordata que impedia a separação judicial dos casados, com
vista à formação de mancebias, ressalvando-se, embora, a honra do convento, ou
seja, a dignidade da nação, que assim erguia, como um facho, perante o mundo
dissoluto, a indissolubilidade matrimonial”.
Talvez que o Concílio Vaticano II de 1962 tenha sido o
primeiro passo numa actualização que não atingiu ainda o celibato dos padres,
com a liberalização do seu casamento, que já Herculano defendia, mas que,
finalmente, desfez uma lei abjecta e mais recente, a da Concordata instituída
no tempo de Salazar em 1940, no pontificado de Pio XII, e cuja extinção se
preparava já antes do 25 de Abril, cabendo a Salgado Zenha a negociação para a
sua revisão com a Santa Sé em 1975, no sentido da legalização do divórcio em
Portugal.
Afinal, bem pode pensar-se que esses 35 anos de
concubinagem e de ilegitimidade para os filhos “de pai incógnito”, causados
pela lei iníqua, causaram, na revolução dos costumes no nosso país, um impacto superior
aos efeitos de outras tendências de modernidade, entre as quais a droga, visto
que uma percentagem mínima de casamentos “selados” se fazem nele, acompanhando, aliás, uma frieza e indiferença
pelas tradições que têm a ver com o desrespeito generalizado na tessitura da
nossa sociedade, a que o empobrecimento serve, igualmente, como factor de
entrave, e onde já quase só os “casamentos de Santo António” mantêm o
facho dos “bons costumes” ancestrais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário