O meu filho
Ricardo manda-me às vezes, por mail, textos da sua e da nossa revolta, sobre as
contrariedades da existência, causadas por tantos desmandos quantos os
implicados neste contínuo “inverno do nosso descontentamento”,
dificilmente “convertido em verão” já que nos falta o “sol de York”
e que “as nuvens que ameaçavam a nossa casa” se desencadeiam “do mais
interno fundo do oceano”, prestes a subverter-nos, com o auxílio poderoso
de todos nós, que nos deixamos manipular por quem, isento das responsabilidades
de gerir, se entretém a açular, fingindo defender quando está apenas a
destruir, numa estranha manigância de ambição pelo poder e de ódio pelos que o
detêm.
O Ricardo –
o primeiro dos meus cinco filhos, não o terceiro da peça de Shakespeare - faz
hoje anos, e dificilmente apreciará a referência, onde estão implícitos os
desejos de sempre, de uma bênção sobre as suas vidas, mas um blogue serve
também para deixar impresso o mundo que se construiu, e os filhos foram - creio
que são sempre – o fenómeno mais extraordinário que um deus de bondade,
desconhecido ou menos, permitiu que as suas criaturas vivessem, elas próprias
criadoras e continuadoras numa incompreensível e estranha obra que vai rolando
indefinidamente, mau grado a pavorosa consumação dos tempos que alguns auguram,
por mórbida deformação das mentes.
Para o
Ricardo resolvi traduzir uns excertos da tragédia “Coriolano” de
Shakespeare, como forma de felicitação e agradecimento pelos mails que me
envia, uns sérios outros cheios de graça dos seus intercâmbios informáticos.
É sobre o
tema da eterna questão da divisão da sociedade em classes e consequentes
diferenças de tratamento económico e cultural, que provocaram ao longo da
história dos homens inúmeras lutas, pretensamente coroadas de êxito na
Revolução Francesa, a qual impôs a sua abolição - (com a arrogante e falsa asserção
da igualdade entre os homens) - mas, naturalmente, pela inversão dos dados – os
grandes descendo, os pequenos subindo – o que igualmente não resultará, pelas
naturais diferenças a todos os níveis, que faz que a sorte, as ambições, a
esperteza, a falta de escrúpulos também, sejam factores importantes nos
desníveis e diferenciações sociais. O nosso Luís de Camões bem o sentiu, e
muito antes dele, na nossa literatura, um tal
Pero Mafaldo escreveu que “vej’eu ir melhor ao mentireiro / que ao
que diz verdade ao seu amigo”, o que significa que desde sempre tudo anda às
avessas - segundo a velha convenção de que o direito são os velhos conceitos de
verdade, bondade, já pregados por Cristo, e muito antes dele, detectados nas
filosofias de tantos construtores do pensamento, princípios, aliás, rejeitados
pelos da vertente mais céptica.
O drama de
Shakespeare “Coriolano” dá-nos retratos de extraordinário conhecimento
humano sobre a sociedade segundo o ponto de vista das classes, que nos mostram
como pouco ou nada se evoluiu em termos de comportamento social, nos dualismos
pobre-rico ou governante-governado, os primeiros impondo-se pela arrogância de
uma condição que os superioriza, os segundos, quando não amordaçados pelo medo,
e hábeis já, em defesa dos seus direitos, manifestando-se pela violência das
palavras e dos actos.
Vejamos, por exemplo, o retrato traçado pelo Primeiro
Cidadão, numa rua de Roma, quando todos se preparam para matar o patrício
romano Caio Márcio Coriolano, como inimigo público que os reduziu à miséria:
«Chamam-nos
pobres cidadãos: não há dignidade senão para os patrícios. O supérfluo dos
nossos governantes bastaria para nos satisfazer. Se ao menos nos cedessem
apenas restos sãos, poderíamos julgar que eles nos socorrem por humanidade; mas
eles acham-nos demasiado caros. A magreza que nos aflige, por efeito da nossa miséria,
é como um inventário detalhado da sua opulência; a nossa miséria é o seu
proveito. Vinguemo-nos a golpes de lança, antes de nos convertermos em
esqueletos. Porque, os Deuses sabem-no, o que me faz falar, é a fome de pão e
não a sede de vingança.»
Segundo
Cidadão: «Você
pretende agir especialmente contra Caio Márcio?»
Primeiro
Cidadão: «Contra
ele, primeiro: é o carrasco do povo.»
Segundo
Cidadão: «Mas tem
em conta os serviços que ele prestou ao país?»
Primeiro
Cidadão:
«Certamente, e é com prazer que os lembraríamos, se ele não respondesse com um
bruto orgulho.» ……..
Chega Menénius
Agrippa, amigo de Coriolano que se propõe defendê-lo:
- «
Amigos, crede em mim! Os patrícios têm por vós a mais caridosa solicitude.
Pelas vossas necessidades, pelos vossos sofrimentos no meio desta miséria, tanto
valeria bater no céu com as vossas lanças, como erguê-las contra o governo
romano: ele prosseguirá a sua carreira, esmagando dez mil freios mais sólidos
do que aqueles que vocês nunca poderão opor-lhe. Quanto à fome, não são os
patrícios, são os deuses que a fazem; e diante deles, os vossos joelhos
servir-vos-ão melhor que os vossos braços. Ai de mim! Vós sois arrastados pela
calamidade a uma calamidade maior. Vós caluniais os barqueiros do Estado: eles
velam sobre vós como pais, e vós amaldiçoai-los como inimigos!
Primeiro
Cidadão: «Eles,
velarem sobre nós! Sim, com efeito!... Eles nunca velaram sobre nós. Eles
deixam-nos morrer de fome, quando os seus armazéns estão atulhados de grão,
fazem éditos em favor da usura para proteger os usurários, evocam todos os dias
algum acto salutar estabelecido contra os ricos, e promulgam estatutos cada dia
mais vexatórios para agrilhoar e oprimir o povo. Se as guerras não nos devorarem,
serão eles. Eis o amor que nos têm!
E vem a
história exemplificativa do ventre, contada por Ménénius, ventre preguiçoso, segundo
as acusações dos diversos órgãos, limitando-se a receber o alimento, enquanto
todos eles colaboravam na condução do corpo, ao que o ventre responde,
calmamente: “É bem verdade, meus caros confrades, que sou o primeiro a
receber o alimento que vos faz viver; e é justo, pois que sou o celeiro e o
armazém do corpo inteiro. Mas, se bem vos lembrais, eu tudo reenvio pelos rios
do sangue, até ao palácio do coração, até ao trono da razão; e graças às
condutas sinuosas do corpo humano, os nervos mais fortes e as mais pequenas
veias recebem de mim esse simples necessário que o faz viver…. E eu posso
provar-vos, rigorosamente, que vos transmito toda a farinha e para mim guardo o
farelo.”
E Menénio
vá de desmontar a alegoria:
«- O
Senado de Roma é este excelente ventre e vós sois os membros revoltados.
Porque, examinados os seus conselhos e as suas medidas, os negócios devidamente
digeridos no interesse da coisa pública, reconhecereis que os benefícios gerais
que recolheis procedem e vêm dele, e não de vós ……»
Entra Caio
Márcio:
« - … De
que se trata, vis facciosos, que, à força de coçardes a triste vaidade que vos arranha,
fizestes de vós uns sarnosos?
Primeiro
Cidadão: Nós
nunca recebemos de vós uma palavra boa.
Marcius: Aquele que te concedesse uma palavra
boa seria um insípido bajulador. De que precisais, insurrectos, a quem nem a
paz nem a guerra convêm? Uma, assusta-vos, a outra torna-vos insolentes. Aquele
que conta convosco, só encontra, chegado o momento, em vez de leões, lebres, em
vez de raposas, gansos… Não, vós não sois mais confiáveis do que um tição
ardente em cima de gelo, do que a saraiva
ao sol. A vossa virtude consiste em exaltar aquele que os erros perderam
e a maldizer a justiça que o abateu. Quem merece a glória merece o vosso ódio;
e as vossas afeições são os apetites dum doente que deseja sobretudo aquilo que
pode aumentar o seu mal. Apoiar-se sobre o vosso favor, é nadar com barbatanas
de chumbo e querer abater um carvalho com uma cana. Confiar em vós? Vale mais
enforcar-vos. De minuto a minuto mudais de ideias: Achais nobre quem odiastes
há momentos, infame, aquele a quem coroáveis. O que é que há? Porquê, nos
diversos bairros da cidade, gritais assim contra o nobre Senado que, sob a
égide dos Deuses, nos mantém em respeito e impede que vos devoreis uns aos
outros?
Um general romano
conquistador mas demasiado duro com a plebe e por vingança contra o ódio desta
que o baniu, se alia ao inimigo que conquistara – os Volscos, da cidade Corioli
– para cercar Roma. A mãe de Coriolano fá-lo-á desistir do ataque a Roma,
condenando o filho a ser assassinado pelos da cidade inimiga assim atraiçoados.
Trata-se
assim, duma peça de teatro política, que, nos breves excertos transcritos, foca
o problema que a cada passo o mundo vive, de lutas entre governantes e
governados. O retrato que cada um traça do outro – o povo focando o desprezo e
indiferença do chefe pelos problemas do povo, o chefe apontando a versatilidade
e cobardia do povo facilmente “troca-tintas”… onde é que já se viu e ouviu
isto?
Z
Mas o
Ricardo faz anos hoje, uma caminhada já longa e bem vivida, em busca daquilo
que todos buscam – uma felicidade lúcida – aquela que lhe desejam os que o amam
e são muitos. É dele o bonito poema “Elevador da Glória”, que
tenho na margem do meu blog, prova de uma sensibilidade que tenta camuflar sob
uma prestação desconcertante, de brincadeira e seriedade, a quem a vida afinal albergou
nem sempre com o carinho que se sonha. Que vai participando na ajuda aos Sem
Abrigo, como forma de marcar uma presença de generosidade e atenção num
mundo desatento. Foi a ele que fiz o meu
primeiro “soneto”, há 54 anos, em Aveiro,
cujo último terceto em melódica prosa, expressão do encantamento em que vivi,
terminava assim:
“E nos
teus olhos brilhasse a confiança
E eu
visse sempre na boquita amada
O teu
sorriso lindo de criança”.
E foi por
isso que glosei o último verso em novo “soneto” de sentimento, que escrevi no
livro publicado em 2010 – “O maravilhoso livro das “Lendas de Santos de Eça
de Queirós” - que lhe ofereci.
RICARDO:
« "O teu
sorriso lindo de criança”
T Tantas
vezes mudado em crispação
T Talvez mantenha ainda a confiança
S Se desejares manter a ilusão.
Quando em sorrisos consegues transformar
Vivências tristes que o mundo desamou
É És como os santos das lendas de encantar
Que uma dura caminhada transformou. a Mas mais santo ainda tu serias
S Se as tais lendas de Eça fosses ler
E E que este livro sintetiza com amor.
o Em tão dura empreitada erguer-te-ias
Ao patamar de um saber maior
Que todo o homem aspira a vir a ter.»
Ao patamar de um saber maior
Muitos anos de uma vida sempre feliz
para o Ricardo, nas empreitadas que ele próprio escolherá, avesso, hélas!,
a empreitadas impostas.
2 comentários:
Obrigado, Mãe.
Foi bem escolhido o texto pois desde sempre tive um fascínio pelo que ao império romano concerne. No entanto não deixa de ser deprimente o tema quando se faz a trasladação para o tempo presente - e isso faço-o desde sempre na hora. Quanto aos santos do Eça, são da casa - e como todo o mundo sabe, na do ferreiro o espeto é de pau.
Um beijo grande deste teu filho que te ama...
Ainda bem que foi de pau o espeto, menos doloroso do que se de ferro fosse...
Beijinhos
Mãe
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