segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Nem o cabelo escapa


Num mundo de manigância
Até o cabelo tem importância.
É o caso do sujeito
Que quis casar a preceito,
Embora já com idade
Para opção de mais qualidade.
Mas só quando se viu pelado percebeu

A vil falcatrua em que se metia,
E é claro que do casamento desistiu,
Segundo La Fontaine escreveu
Sem qualquer fantasia:

«O homem de meia idade e as suas duas conquistas»

«Um homem de meia idade,
Já a puxar para o grisalho,
Julgou chegado o momento,
De pensar em casamento.
Ele possuía bom metal sonante
E por conseguinte
Tinha por onde escolher.
Todas faziam por lhe agradar;
Daí que o nosso pinga-amor,
Desconfiado,
Não tivesse pressa em se definir.
Não é pequena coisa
Esta coisa de bem acertar.
Duas viúvas, finalmente,
Se impuseram no coração amante:
Uma de verde idade,
A outra um pouco mais madura,
Mas que reparava, com arte,
O que destruíra a mãe-natura.
As duas viúvas brincando,
Rindo, acarinhando,
Iam-no penteando,
A cabeça ajustando.
A cada momento a velha levava
Um cabelo preto que restava
A fim de que o amante ficasse
Mais à sua maneira.
A nova, por seu turno, retirava
Os pelos brancos
Para que com ela ele melhor emparelhasse.
Ambas fizeram de tal maneira
Que a cabeça grisalha
Ficou sem cabelos.
Duvidou da partida canalha.
“Dou-vos as minhas graças, senhoras,
Que tão bem me tosquiastes,
Ganhei mais do que perdi, eu vos garanto:
Porque não há mais casamento.
Aquela que eu escolhesse
Quereria que eu vivesse
Ao modo dela e não ao meu
Pelo Céu!
Não há cabeça calva que suporte tal decisão.
Estou-vos grato, senhoras, pela lição.»


Só La Fontaine, de facto, para nos fornecer
Uma tal história de esperteza
De gente que aproveita qualquer meio
Para comer até à custa do cabelo alheio.
Pela mesma época o nosso Vieira
Lançava uma diatribe estridente,
Contra os comedores dos próprios defuntos,
A o explicar,  em anáfora  estridente,
De frases paralelas em ironia insistente,
De trocadilho mais que penetrante,
No “Sermão de Santo António aos Peixes
Que “ainda o pobre defunto o não comeu a terra
E já o tem comido toda a terra.”
Hoje em dia nem é bom falar,
Nessa coisa do comer,
Tal o regabofe e os meios de espoliar
De alguns, que outros há
Que não têm comer nenhum,
Diz-se por cá.
Até só apetece adormecer,
Ou o “Columbo” ver,
Ou como diz Antero, “deixá-la ir, a vida”.
Mas só como piada despida
De fundamento,
Santíssimo Sacramento!

 

 

 

 

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